Mas para o Bruno não – Por André Sampaio

19/03/2017

Não se pode negar que o processo penal se encontra diante de um tensionamento inexorável: ao tempo que precisa prover o acusado de todas as garantias necessárias com o escopo de evitar a condenação do inocente, necessita, outrossim, buscar fornecer, dentro do mais breve espaço de tempo possível, uma resposta institucional ao caso penal a ele trazido.

Não quero aqui reduzir a complexidade do fenômeno processual à pobre e falaciosa dicotomia interesse público versus interesse privado,[1] porém, tratam-se de elementos que devem estar presentes diante de qualquer questionamento acerca da duração razoável do devido processo penal, tal qual pretendo fazer: está o inciso LXXVIII do artigo 5ª de nossa Carta Magna[2] a serviço de quem?

Caso respondamos “da sociedade”, chegaríamos à inelutável conclusão de que o processo deve sempre ser o mais breve possível, e às favas com as garantias do acusado – afinal de contas são excessivas e só protegem bandidos, diriam os incautos. Tal perspectiva demandaria que, tomando a liberdade de usar expressão cara a Lênio Streck, exclamássemos “Alvíssaras!” ao magistrado da Comarca de Xapuri, no Acre, que conseguiu concluir um processo em míseros três dias. Resultou em uma condenação, alguma surpresa?

O adjetivo “razoável” opera, no mencionado inciso, em uma dupla função: ele clama por um processo penal que não se estenda excessivamente, mas que tampouco seja um processo “drive thru” – denuncia em uma cabine, “prova” na outra, e retira a sentença pronta e acabada na terceira. Ambas as funções aqui servem tanto ao interesse público quanto ao particular, insistindo na distinção com a qual iniciei esse texto.

O processo não pode durar demais, porque tanto a sociedade precisa de respostas institucionais com certa brevidade, até mesmo para evitar “reações informais”,[3] como também o réu, que submetido à inevitável dimensão penalógica imanente à liturgia processual, terá seu prolongamento desnecessário como mero incremento de dor.[4] Entretanto, ele também não pode ser excessivamente célere, visto que o processo – cuja semântica já traz inerente a chaga do desdobramento temporal – precisa de tempo de maturação para evitar a condenação do inocente, e é também do interesse social que este não seja condenado por um crime que não cometeu. Pelo menos assim quero crer eu.

Quando Bruno, o goleiro, é posto em liberdade em virtude de uma apelação que não fora julgada há quatro anos, o STF não faz nada além de corrigir, com as ferramentas legais à disposição, a injustiça da mora processual com a qual nem o réu e nem sua defesa compactuaram. Sim, o óbvio precisa ser dito: Bruno não terminou de cumprir sua pena, nem ao menos progrediu de regime, ele simplesmente não teve ainda sua culpa formada com o devido processo penal, visto que este impende um duplo grau de jurisdição jamais realizado.

Nem mesmo a (ilegal) pseudodromologia posta em prática pelo STF no julgamento das ADCs (Ações Declaratórias de Constitucionalidade) 43 e 44, quando autorizou a execução provisória da sentença penal após condenação em segunda instância, foi capaz de saciar a voracidade das massas, quando o assunto é pulsão vingativa. Quem sabe se os “dromólogos” de plantão não fizerem mais uma pequena perversão na cláusula pétrea já vilipendiada? Talvez pudessem criar um, apenas um precedente: deixemos como está, mas para o Bruno não.

Talvez (e frisemos o “talvez”), se puséssemos no plano ideal os elementos presentes na situação – réu, condenado por um júri (juízo de primeiro grau), tendo apelado, há quase 7 anos preso, desses, 4 apenas aguardando o julgamento de sua apelação – conseguíssemos certa compreensão social para o fato de que não seria o réu quem deveria arcar com o dano ocasionado pela lerdeza institucional. “Mas ele cometeu um crime fria e cruelmente!”, bradarão alguns, “além do mais ele confessou!”, complementarão outros. Como explicar a estes que nem a gravidade do crime e tampouco a confissão possuem o condão de manter alguém preso aguardando eternamente o Estado se lembrar de seu recurso?

Trabalhar com categorias abstratas permite a utilização de uma dose maior de racionalidade, se comparado à sua aplicação a casos concretos, quando a dimensão afetual,[5] com todas as suas pulsões, as rasga, clamando sempre por aquele preciso elemento que poderá sutilmente dobrar a regra posta e fazer emergir glamourosamente o reino da exceção,[6] só para esse caso, ao menos para o Bruno, pelo menos por hoje...

Outro aspecto relevante revelado pelo episódio aqui explorado diz respeito à leve sacolejada do manto da hipocrisia que recobre pulsões vingativas com o verniz da ressocialização: “o preso precisa trabalhar para se tornar um cidadão de bem (mas não o Bruno)!”, “precisa estudar para se ressocializar (mas não a Suzane)!”. Lembra-me vividamente o preso normalmente entrevistado por um programa policial de quinta, que ao ser interpelado pelo repórter, se chorar são lágrimas de crocodilo, se sorrir é cinismo, se permanecer inerte é frieza, e eis que não há resposta certa! O preso é posto em um lugar de fala no qual está errado, sempre, perpetuamente.

Um outro ponto absolutamente diferente é a reação de acolhimento ou até mesmo de idolatria exarada por alguns em relação a Bruno. Fotos, autógrafos, aclamações públicas, tudo isto pode perfeitamente ser objeto – como tudo em sociedade – de censura moral, mas vejamos melhor, por que censurar? Se partirmos do pressuposto de que podem ser pessoas verdadeiramente abnegadas, que compreendem com perfeição seu erro, o qual ainda está, e provavelmente continuará por algum tempo, pagando e decidiram espontaneamente perdoá-lo? Devemos censurar o livre exercício do perdão? Submetê-lo ao enquadramento da normalização social?

E a vítima? Estaríamos esquecendo dela? Bruno terá uma segunda chance quando a vítima não teve, verdade. Isso se chama “opção político-criminal”; entre se igualar ao infrator, sobre quem debruçamos nossa censura jurídica e moral, e preservar axiomas mais “elevados” – cientes de que esse tipo de gradação moral se dá através de referenciais prévios, como nossa matriz social judaico-cristã ou nosso débito com a filosofia kantiana – optamos, enquanto corpo social, por este último.

Desde outra perspectiva, pode-se argumentar também que ainda que Bruno fosse açoitado em praça pública, desmembrado lentamente e, por fim, fosse queimado até a morte, Eliza não regressaria; a única mudança concreta para nosso modelo político-criminal seria, talvez, uma maior possibilidade de gozo do ódio ao infrator. Seria, então, mais interessante uma sociedade erigida por valores desse jaez?

Parece-me que todos somos livres para odiar o infrator ou para amá-lo, para perdoá-lo ou não, tudo isso se encontra inserido no campo das liberdades civis, mas a execração pública da opção pelo perdão revela mais de quem execra do que de quem é execrado. É estranho, de fato, que um réu de um crime tão bárbaro, ainda mais após sua confissão – meio de prova que, para a sociedade em geral, corresponde à culpa indubitável –, seja alvo de certa “idolatria” por certa parcela da população.

É perfeitamente possível, até extremamente provável, que nessa conduta haja a interferência do fator “ex-goleiro de um dos maiores clubes de futebol do Brasil”. Mas o que tudo isso nos revela, ao cabo? Hipocrisia. A hipocrisia de quem “perdoa” o goleiro do flamengo por homicídio triplamente qualificado, mas não perdoa o desconhecido por furto; a hipocrisia de quem quer fazer valer a ressocialização e acredita que valores capitalistas como o trabalho e educação) é a via, mas para o Bruno não.


Notas e Referências:

[1] Cf. LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[2] “LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. trad. Ana Paula Zomer Sica, et. al..2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

[4] No mesmo sentido, cf. LOPES JR. Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.

[5] Sobre o “afetual”, cf. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos. 5ª Ed. São Paulo: Forense Universitária, 2014.

[6] AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder sobrenao e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. 2. Ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


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