O Supremo Tribunal Federal enfrentou recentemente dois julgamentos de extrema relevância que versam sobre o direito de Testemunhas de Jeová recusarem transfusões de sangue em razão de suas convicções religiosas.
Os casos em análise envolvem a complexa relação entre o direito à liberdade religiosa, a autonomia individual e o dever do Estado de proteger a vida e a saúde dos seus cidadãos.
Foram dois os julgados em questão: Recurso Extraordinário 1.212.272 e Recurso Extraordinário 979.742, ambos com repercussão geral, fixando teses que impactam profundamente a jurisprudência constitucional brasileira sobre o tema.
O julgamento do RE 1.212.272 teve como cerne a análise da validade da recusa de uma paciente, Testemunha de Jeová, em assinar um termo de consentimento para a realização de transfusão de sangue, caso esta se fizesse necessária durante um procedimento cirúrgico cardíaco (substituição de válvula aórtica). A paciente buscava realizar o procedimento sem a transfusão, em conformidade com sua crença religiosa, que advoga uma interpretação bíblica restritiva sobre o uso de sangue. De acordo com a doutrina das Testemunhas de Jeová, a ingestão ou a transfusão de sangue violaria mandamentos expressos nas Escrituras Sagradas, notadamente em textos como Gênesis 9:4, Levítico 17:14 e Atos 15:29, os quais ordenam que o sangue seja abstido, visto como símbolo da vida. Essa interpretação religiosa se traduz em uma recusa categórica à transfusão de sangue, mesmo diante de situações de risco de morte.
Nesse RE 1.212.272, relatado pelo ministro Gilmar Mendes, o Tribunal analisou se a recusa, motivada por crenças religiosas, poderia ser validamente imposta pelo paciente adulto e capaz, ainda que enfrentasse uma potencial situação de risco. O STF concluiu que a liberdade religiosa confere ao paciente o direito de recusar tratamentos que conflitem com suas convicções religiosas, desde que a decisão seja tomada de forma inequívoca, livre, consciente e informada. Essa compreensão está amparada no princípio da dignidade da pessoa humana e no direito à autodeterminação, ambos pilares do ordenamento constitucional brasileiro. No entanto, o Tribunal impôs certos limites à recusa, exigindo que a escolha fosse acompanhada de uma manifestação clara e antecipada, após uma explicação completa dos riscos envolvidos. Assim, o médico, embora obrigado a prestar esclarecimentos ao paciente, não poderia realizar o procedimento recusado, mesmo sob risco de morte, uma vez preenchidos esses requisitos. A tese fixada nesse julgamento (Tema 1.069 da Repercussão Geral) foi a seguinte: “1. É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se
a se submeter a tratamento de saúde, por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade. 2. É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnicocientífica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente”.
O segundo julgamento relevante, o RE 979.742, também envolveu uma Testemunha de Jeová, que recusava transfusão de sangue. O paciente, morador de Manaus, necessitava de uma cirurgia específica (artroplastia total) não oferecida sem a possibilidade de transfusão de sangue nos hospitais locais. Ele requereu que o Poder Público custeasse seu tratamento em São Paulo, onde o procedimento poderia ser realizado em conformidade com suas convicções religiosas. A União recorreu da decisão que a obrigava, juntamente com o Estado do Amazonas e o município de Manaus, a arcar com os custos de deslocamento e tratamento, alegando que não caberia ao Estado financiar uma opção terapêutica que fosse de natureza estritamente religiosa.
Nesse julgamento, relatado pelo ministro Luís Roberto Barroso, o STF enfrentou a questão do custeio de tratamentos alternativos pelo Poder Público, em respeito à liberdade religiosa. A decisão do Tribunal foi unânime em reconhecer que, quando existirem tratamentos alternativos viáveis e disponíveis no SUS, o Estado tem a obrigação de oferecê-los, inclusive custeando a realização desses tratamentos em outra localidade, caso não sejam oferecidos no domicílio do paciente. A recusa à transfusão de sangue foi considerada válida, desde que a decisão fosse tomada por um adulto capaz, de forma livre, consciente e informada. Porém, no caso de menores de idade, prevalece o princípio do melhor interesse da criança, não sendo permitido aos pais recusarem tratamento essencial para salvar a vida dos filhos. A tese fixada no julgamento (Tema 952 da Repercussão Geral) foi a seguinte: “1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa. 2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde – SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.”
Como se percebe, ambos os julgados refletem a complexidade da tensão entre a proteção da vida, um direito fundamental indisponível, e a liberdade religiosa, igualmente fundamental. O STF, nesses casos, reforçou a autonomia individual como aspecto essencial da dignidade humana, ao mesmo tempo em que estabeleceu parâmetros claros para a recusa de tratamento. Essa autonomia, no entanto, não é absoluta, e o Tribunal delineou uma linha divisória particularmente nítida no caso de menores de idade, em que a proteção da vida da criança e do adolescente assume primazia sobre as convicções religiosas dos pais.
Do ponto de vista médico, os avanços científicos têm permitido que Testemunhas de Jeová sejam tratadas com segurança, mesmo sem a utilização de transfusões de sangue. Alternativas terapêuticas, como a hemodiluição normovolêmica, a utilização de eritropoetina para estimular a produção de glóbulos vermelhos, o uso de agentes coagulantes e a recuperação intraoperatória de sangue, têm sido empregadas com sucesso. Essas técnicas são reconhecidas tanto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto pelo Ministério da Saúde como eficazes e seguras. O Sistema Único de Saúde (SUS), embora ainda não ofereça essas alternativas em todos os hospitais do país, já conta com algumas dessas técnicas em determinados centros de referência, conforme destacado no julgamento do RE 979.742.
A questão da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová também evoca um debate mais amplo sobre o papel do Estado na garantia do direito à liberdade religiosa e na prestação de cuidados de saúde que respeitem as escolhas dos pacientes. O STF, ao decidir em favor dos pacientes, reafirmou que a pluralidade religiosa no Brasil exige um tratamento diferenciado por parte do Estado, o que inclui a disponibilização de alternativas terapêuticas compatíveis com as crenças individuais, desde que tecnicamente viáveis e seguras. Esse entendimento consolida a posição do Tribunal em prol de um equilíbrio entre os direitos à vida, à saúde e à liberdade religiosa, sem que um anule o outro.
As duas decisões também têm um impacto relevante sobre a atuação dos profissionais de saúde, que devem respeitar as escolhas dos pacientes, desde que tomadas de maneira informada e consciente. O dever de informar, contudo, permanece, e os médicos são obrigados a expor claramente os riscos e benefícios dos tratamentos, sem qualquer imposição ou coerção, mas com o cuidado de assegurar que o paciente esteja plenamente ciente das consequências de sua decisão.
Em síntese, os julgamentos do STF nos Recursos Extraordinários 1.212.272 e 979.742 estabelecem precedentes de grande relevância jurídica, ao reafirmar a importância da liberdade religiosa e da autonomia individual no campo da saúde, ao mesmo tempo em que impõem limites proporcionais para garantir a proteção de vidas vulneráveis, especialmente no caso de crianças. A jurisprudência consolidada pelo Tribunal em ambas as teses de repercussão geral, busca harmonizar esses direitos fundamentais, oferecendo um modelo jurídico que valoriza tanto a fé quanto a ciência na preservação da dignidade humana.
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