I
A Constituição Federal de 1988 é a planta baixa do edifício político-institucional do Brasil. Nela, mediante um corte horizontal, o jurídico desenha em escala normativa a geometria constritiva do político. Compõe, traceja, arranja e nomina os ambientes dentro dos quais o poder realiza os seus movimentos confinados. Permite a pré-visualização em 2D da estrutura e do funcionamento dirigido da vida jurídico-política do País. Sob o ponto de vista estático, a Constituição diagrama as separações entre i.i) o Estado e os cidadãos, entre i.ii) os subpoderes em que o Estado se segmenta e entre i.iii) os andares e pavimentos hierárquicos de cada subpoder. Já sob o ponto de vista dinâmico, ela rascunha os relacionamentos ii.i) cidadão-cidadão, ii.ii) cidadão-Estado, ii.iii) cidadão-subpoderes, ii.iv) subpoderes-subpoderes e ii.v) supoderes-Estado. Depois, esboça o layout interno das circunscrições acionais do cidadão, dos subpoderes e do Estado. É um design marcado por semi-abertura e semirrigidez: complementa-se por leis, suplementa-se por decretos e atualiza-se por emendas constitucionais. As cláusulas constitucionais pétreas formam as fundações profundas; as cláusulas constitucionais não-pétreas, as fundações rasas; as leis complementares e completantes, as vigas e colunas; os decretos regulamentares, as paredes, o teto e a laje; as portarias, as portas e janelas. E, com isso, a construção político-institucional do País se lança ortogonalmente sob uma perspectiva 3D, mas como uma obra mutável, em acabamento constante, posto que compacta e estável. Uma «instabilidade estável», pois. Assim sendo, para a compreensão correta de cada uma das partes desse edifício, é fundamental que se lhes atente aos respectivos loci de regulação. O papel de cada microinstituição regulada constitucionalmente é determinado pelo lugar de visibilidade que ela ocupa no projeto macroinstitucional da Constituição. Cada região habitada por um instituto na estrutura arquitetônico-constitucional lhe orienta o sentido e lhe indica a função. Aliás, essa regionalidade de pertencimento funda uma ambivalência estrutural: ao mesmo tempo em que localiza o instituto no texto constitucional, fixando-o num ponto e permitindo que ele seja visto [abertura], limita as possibilidades desse ver [retração]. Daí a importância da topologia institucional na hermenêutica constitucional (para uma recuperação do caráter espacial da hermenêutica em geral, v. p. ex., MELO, Rebeca Furtado de. Lugar e espacialidade: contribuições para uma hermenêutica topológica. Ekstasis: revista de hermenêutica e fenomenologia. v. 6. n. 1. 2017, p. 66-83). Sem essa analysis situs das instituições no prédio constitucional, o próprio prédio ruiria por perda de robustez e firmeza: no limite, uma rede de conexões de todos os dispositivos constitucionais entre si [fully conected topology] mergulharia a Constituição numa neurastenia interpretativa e, por via de consequência, o sistema político numa desordem. Ou seja, marchar-se-ia de uma utopia jurídico-constitucional a uma distopia político-sociológica. Não se trata, obviamente, de transformar cada dispositivo constitucional em uma ilha de sentido. Uma interpretação topológica não denega uma interpretação sistemática; aliás, não raro, está implicada nela. No entanto, todo dispositivo deve antes ser compreendido dentro do seu específico campo de mostração na estrutura topológica. Devem ser considerados os contextos titular, capitular e secional dentro dos quais o instituto é textualmente posicionado e, portanto, o espaço regulatório que a Constituição lhe reserva e delimita.
Tomem-se três exemplos:
A) O Supremo Tribunal Federal
O Título IV da CF/1988, que trata da organização dos subpoderes, traz quatro capítulos: o Capítulo I cuida do Legislativo; o Capítulo II, do Executivo; o Capítulo III, do Judiciário; o Capítulo IV, das chamadas «funções essências à Justiça» (Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública). O STF se situa na Seção II do Capítulo III; logo, como órgão judiciário. Mais: como órgão judiciário cupular (art. 92, I). Daí por que não é ele um tribunal constitucional. Seria se a CF/1988 lhe tivesse reservado: 1) capítulo destacado, anterior aos capítulos dos três subpoderes; 2) sobreposição aos três subpoderes, como se um «supra-poder» fosse; 3) vagas para indicados por cada um dos três subpoderes; 4) competência para desfazer - em âmbito recursal ou acional - qualquer ato inconstitucional emanado dos três subpoderes. A Constituição nada disso fez, porém. Por isso, o Supremo está no mesmo andar político-hierárquico do Congresso Nacional (órgão de cúpula do Legislativo) e da Presidência da República (órgão de cúpula do Executivo). Assim, só é possível entender o STF como órgão de cúpula do Judiciário no exercício anômalo de funções de tribunal constitucional. Essa é sua natureza jurídico-constitucional. Não por outra razão, em controle difuso de constitucionalidade, o STF não retira sponte sua a lei inconstitucional do mundo jurídico: aí é preciso resolução do Senado Federal para que – quando muito – se «suspenda a execução», no todo ou em parte, da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF (CF/1988, art. 52, X). Tendo em vista que o STF não é um tribunal constitucional, não há «retirada de validade da lei» ope tribunalis, mas «retirada de eficácia» ope senatus.
B) A eficiência
A eficiência consta do artigo 37 da CF/1988. Seu lugar de visibilidade é o Capítulo VI («Da Administração Pública») do Título III («Da organização do Estado»). Ex ratione loci, coarcta o exercício da função administrativa. É garantia contra-administrativa do cidadão. Integra o rol das garantias individuais (CF, art. 5º, § 2º). Não é garantia contrajurislativa nem contrajurisdicional, pois (sobre as garantias contrajurislativas, contra-administrativas e contrajurisdicionais, v. nosso Notas para uma garantística. <http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-40-notas-para-uma-garantistica>) (obs.: o art. 126, parágrafo único, da CF/1988, prescreve pontualmente a presença do juiz «no local do litígio», «para dirimir conflitos agrários», «sempre que necessário à eficiente prestação jurisdicional»). Todavia, visto que Legislativo, Executivo e Judiciário exercem igualmente função administrativa, pode-se falar em eficiências 1) administrativo-legislativa, 2) administrativo-executiva e 3) administrativo-judiciária (o que é corroborado pelo art. 74, II, da CF/1988). Nada obsta que lei ordinária exija eficiência jurisdicional; contudo, por princípio de hierarquia, jamais se sobreporá às garantias constitucionais contrajurisdicionais (juiz natural, contraditório etc.). No afã de atingir metas de produtividade, o juiz não pode afrontar garantias das partes. Ademais, ainda que a CF/1988 impusesse uma eficiência jurisdicional tout court, não seria invocável para relativizar garantias constitucionais contrajurisdicionais mediante juízo de ponderação. Afinal, «colisão de garantias» é falso problema: cada uma delas tem o seu exclusivo âmbito de incidência, demarcável por critérios dogmáticos e dentro do qual as demais garantias não fazem sentido.
C) O processo
O processo (o «devido processo legal» a que alude o inciso LIV do artigo 5º) é mostrado no Capítulo I do Título II da CF/1988, que trata das garantias individuais do cidadão, não nos Títulos III e seguintes, que tratam da organização e do funcionamento do Estado e dos seus subpoderes. É no interior do círculo familiar das garantias individuais contrajurisdicionais que o processo é acessado e se apresenta, conquistando consistência própria. Assim, não há fundamento topológico-constitucional para se afirmar o processo como um «instrumento ou um método a serviço da jurisdição», mas «apenas» como uma garantia de liberdade a serviço dos jurisdicionados. Nem poderia ser diferente: como utensílio ou ferramenta de poder, o processo perderia a sua autonomia ontológica e se reduziria à própria «jurisdição-em-manifestação-escalonada», à própria «jurisdição-em-funcionamento-encadeado» (como, aliás, tem sido reduzido nas mãos da doutrina tradicional instrumentalista). Decididamente, o processo é uma instituição de garantia, não uma instituição de poder. Atende às partes, não ao juiz (obs.: por força do art. 5º, § 2º, da CF/1988, há instituições de garantia localizadas a) dentro do rol do artigo 5º [ortotópicas], e b) fora do rol do artigo 5º, mas decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte [heterotópicas]; entretanto, não há instituições de poder localizadas dentro do rol do artigo 5º).
II
Na tradição textual constitucional brasileira, os dispositivos sobre as instituições de poder sempre antecederam os dispositivos sobre as instituições de garantia. O habitat natural das garantias individuais dos cidadãos sempre foram os últimos artigos dos respectivos diplomas constitucionais (Constituição de 1824, art. 179; Constituição de 1891, art. 72; Constituição de 1934, art. 113; Constituição de 1937, art. 122; Constituição de 1946, art. 141; Constituição de 1967, art. 153; «Constituição de 1969» (Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional nº 1/1969), art. 153). Esse traço topológico-textual tinha fundamental significação jurídico-hermenêutica. Sob o ponto de vista locativo-redacional, o Estado precedia o cidadão; o poder, a garantia; a autoridade, a liberdade. Consequentemente, sob o ponto de vista hierárquico-axiológico, o Estado [servido] precedia ao cidadão [servente]; o poder, à garantia; a autoridade, à liberdade. Em outras palavras: a liberdade nada mais era que um furo no manto autoritário, um «vácuo funcional», um «vazio de circunscrição», um espaço inocupado pelo Estado. Onde terminava a autoridade, só ali começava a liberdade. O edifício político-institucional do País se fundava a partir do primado do Estado e, portanto, a partir da primazia da autoridade sobre a liberdade. O Estado era a «porta de entrada» da ordem constitucional, não o cidadão. Os textos constitucionais anteriores se davam a conhecer pela moldura inaugural do poder, não da cidadania e das garantias contrapotestativas que a municiam. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 foi - em tese - uma viravolta copernicana. Nela, ineditamente, as garantias individuais passaram a ostentar topografia frontispicial (art. 5º), tal como se constata hoje, por exemplo, nas constituições da Argentina (Primeira Parte), do Chile (Capítulo III), do Uruguai (Seção II), da Colômbia (Título II), do Peru (Título I), do Paraguai (Parte I), do México (Título I, Capítulo I), da Costa Rica (Título IV, Capítulo Único), do Panamá (Título III), da Espanha (Título I), de Portugal (Parte I), da Itália (Parte I), da Grécia (Parte II), da Alemanha (Capítulo I), da Suíça (Título II), dos Países Baixos (Capítulo 1) e do Japão (Capítulo III). Enfim, essas garantias receberam um upgrade de dignidade topológica. Passaram a integrar o groundfloor da predialidade político-institucional brasileira. Tornaram-se o piso de acesso à ordem constitucional do País. Com isso, o cidadão [servido] passou a vir antes do Estado [servente], a garantia antes do poder, a liberdade antes da autoridade. A lógica inverteu-se, portanto: a autoridade começa somente onde termina a liberdade. Os espaços são antes ocupados pela cidadania; ao poder é dado apenas preencher ulteriormente os «terréus regulatórios», as «sobras regionais», os «restos baldios», os vazios inaproveitados pela autonomia individual. Não sem motivo a Constituição de 1988 foi chamada pelo Deputado Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã. A expressão não é mero slogan nem bordão: o adjetivo assume ali conotação técnico-constitucional, não retórico-propagandista. Na CF/1988, o edifício político-institucional do País se funda a partir do primado da cidadania e, portanto, a partir da primazia da liberdade sobre a autoridade. Contudo, embora transcorridos trinta anos da sua promulgação, em vários pontos os seus intérpretes-aplicadores continuam reproduzindo o jaez autoritário das constituições anteriores. Nossa cultura de mando ainda se opõe à revogação do primado do Estado. O constitucionalismo pré-cidadão tem resistido à eliminação revolucionária de sua hegemonia histórica.
Desse modo, existem alguns lags entre o constitucionalismo pré-1988 e o constitucionalismo pós-1988. Ou seja, existem zonas de atraso temático no âmbito das quais a Constituição Federal de 1988 ainda é lida com os olhos das constituições anteriores. Um desses temas sob injustificável descompasso é a jurisdição (e, em consequência, o processo, que a limita). Até agora, o poder jurisdicional não sofreu uma profunda releitura republicana (sobre a necessidade republicanização da jurisdição, v., e. g., nosso Processo, jurisdição e república. <http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-61-processo-jurisdicao-e-republica-ao-ensejo-do-129-aniversario-da-proclamacao-da-republica>). A enorme massa inercial do autoritarismo jurisdicional brasileiro ainda luta contra a sua reformulação cidadã. O selo da autoridade sempre marcou no Brasil a relação entre cidadãos e Estado-juiz; no entanto, até hoje nossos constitucionalistas não ressignificaram essa relação sob o selo da liberdade, relegando irresponsavelmente a tarefa aos «processualistas» [rectius: procedimentalistas e jurisdicionalistas], que jamais a quiseram empreender. Por ora, não foram estruturados ex ante a autonomia individual dos jurisdicionados e ex post os poderes do Estado-jurisdição. Enfim, ainda não se destinaram à liberdade das partes os espaços principais e à autoridade do juiz os espaços subsidiários. Os diferentes códigos procedimentais ainda reservam uma topologia privilegiada à jurisdição e à competência e uma topologia subalterna às partes e aos seus procuradores. Ainda se faz «direito processual» como o direito da jurisdição ou o direito jurisdicional, não direito processual como o direito da cidadania em juízo. Nossos «processualistas» ainda são jurisdicionalistas (que se dedicam ao poder jurisdicional), não genuínos processualistas (que se dedicam à respectiva garantia contrajurisdicional maior, que é o processo). Ainda falam do processo não como uma garantia de liberdade em si salpicada de alguns poderes jurisdicionais (que é o autêntico garantismo processual, tal como defendido, por exemplo, por JUAN MONTERO AROCA, ALVARADO VELLOSO e FRANCO CIPRIANI, em que a liberdade faz concessões pontuais à autoridade), mas como um instrumento do poder jurisdicional salpicado de algumas garantias de liberdade [que é o inautêntico «garantismo processual», tal como defendido recentemente, por exemplo, pelo professor da USP JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE, em que a autoridade faz concessões pontuais à liberdade]. Ainda pensam o fenômeno sob a equação «maximum de autoridade + minimum de liberdade», não sob a equação «maximum de liberdade + minimum de autoridade». Logo, nos procedimentos civil e penal, a combinação entre liberdade e autoridade não se faz em proporções discricionárias. Não se trata de um mero exercício de política legislativa. O legislador infraconstitucional não pode fazer preponderar o critério da autoridade sobre o da liberdade. Tampouco se pode tratar simetricamente o duo autoridade-liberdade dentro de uma bipolaridade antagônica em constante equilíbrio. Isso reduziria a lógica do direito processual à lógica do direito administrativo oitocentista. A presença exagerada do juiz pode despotenciar a força garantista do processo, conquanto uma dose mínima de autoridade sempre seja inafastável: o excesso faz do processo um regnum-iudicis despótico; a falta, um laissez-faire anárquico. Além do mais, tendo em vista o princípio da supremacia da liberdade sobre a autoridade (e um de seus corolários axiais, que é o princípio da maximização das garantias), podem as partes ostentar garantias de liberdade tanto explícitas [ex.: contraditório; ampla defesa; juiz natural; fundamentação; vedação da prova ilícita; publicidade] quanto implícitas [ex.: presunção de inocência civil; imparcialidade judicial; independência judicial; duplo grau de jurisdição; proporcionalidade; razoabilidade]; entretanto, um juiz somente pode ostentar poderes textualmente explícitos.
Assim sendo, os juízes e tribunais não podem substituir o amparo omni-lateral da lei pelo amparo uni-lateral da própria vontade com o objetivo de, por exemplo: a) flexibilizar o procedimento definido em lei; b) conceder ex officio tutela provisória; c) definir c.1) as situações em que se deve cooperar, c.2) quem deve cooperar com quem, c.3) o que significa cooperar em cada uma dessas situações, c.4) qual o prêmio em caso de cooperação e c.5) qual a sanção em caso de não cooperação; d) definir as situações jurídicas irradiáveis do chamado «princípio da eficiência processual» (CPC, art. 8º); e) definir hipóteses extralegais de litigância de má-fé; f) julgar - sob o pretexto de uniformizar a jurisprudência e promover segurança jurídica - mérito de recurso do qual a parte já tenha desistido; g) flexibilizar os efeitos da revelia fora das hipóteses legais; h) negar a formação de coisa julgada material a sentença de improcedência por ausência de provas; i) ampliar, restringir ou modificar a causa de pedir e o pedido; j) criar requisitos extralegais de admissibilidade recursal como «jurisprudência defensiva»; l) encurtar prazos peremptórios estabelecidos em lei; m) corrigir o error in postulando vel aduocando; n) definir quando as partes são desiguais e as medidas de igualação praticáveis; o) emprestar eficácia jurídica a prova ilícita mediante juízo de ponderação; p) admitir modalidades extralegais de intervenção de terceiros; q) admitir espécies extralegais de recursos; r) excepcionar as regras de fundamentação contidas no art. 489, § 1º, do CPC; s) fixar honorários advocatícios abaixo do mínimo legal; t) compelir a parte a produzir prova contra si própria. De todo modo, ainda que esses exemplos tivessem previsão legal, a maior parte deles seria inconstitucional. Isso sem falar da inconstitucionalidade de outros tantos poderes já previstos na lei [ex.: o poder de ordenar prova de ofício, que fere a garantia da imparcialidade judicial em geral e as garantias da inércia funcional do juiz e da dispositividade em particular; os poderes de indagar às testemunhas e de inquirir a parte em depoimento pessoal ou interrogatório, que ferem a garantia da imparcialidade judicial em geral e a garantia do desinteresse judicial em particular; o poder de inverter o ônus probatório, que fere a garantia da presunção de inocência civil ou penal; o poder de conceder tutela de evidência inaudita altera parte, que fere a garantia do contraditório; o poder de julgar liminarmente improcedente o pedido do autor, que fere a garantia do contraditório; o poder de inventar medidas executivas atípicas, que fere a garantia da não-criatividade judicial em geral e a garantia da legalidade procedimental em particular; o poder de punir a parte ausente à audiência de conciliação, que fere a garantia de liberdade das partes; o poder de decidir sob fundamento não invocado pelas partes, ainda que se dê às partes oportunidade de manifestação, que fere a garantia da não-criatividade judicial em geral e a garantia da adstrição em particular; o poder de provocar a revisão da própria sentença de mérito proferida em desfavor da Fazenda Pública, que fere a garantia da isonomia entre as partes; o poder de produzir precedentes obrigatórios fora das hipóteses constitucionais, que fere o princípio da separação de poderes] (sobre as mencionadas garantias do cidadão em juízo e outras tantas, v., por exemplo, nosso As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade.
III
O instrumentalismo processual e o neoconstitucionalismo, que é a sua versão mais abrangente e sofisticada, têm feito caos do sistema constitucional em geral e do subsistema processual em particular [direito processual = direito constitucional do «devido processo legal»], destruindo 1) a ciência do processo (que é a ciência da garantia dos cidadãos contra o Estado-juiz) e substituindo-a por 2) uma parceria improvisada entre a ciência da jurisdição e a ciência do procedimento (que hoje opera como uma tecnologia de dominação dos jurisdicionados pela jurisdição). Como se vê, a «invasão vertical dos bárbaros» [Mário Ferreira dos Santos] tornou confusa a delimitação epistêmica entre a processualística, a jurisdicionalística e a procedimentalística (sobre essa distinção, v. nosso Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. <http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-8-ciencia-processual-ciencia-procedimental-e-ciencia-jurisdicional-por-eduardo-jose-da-fonseca-costa>). Por conseguinte, o «processualista» não sabe mais bem a que se deve dedicar. Decerto a restauração da harmonia perdida levará anos. Todavia, decerto ela perpassará pela necessidade de diálogo entre o pensamento processual e o pensamento topológico. Talvez uma filosofia topológica nos possa salvar. Uma filosofia que nos ajude a devolver cada coisa - incorrupta - ao seu devido lugar...
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