LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA, PLENITUDE DE DEFESA E SOBERANIA DOS VEREDICTOS

04/03/2021

Foi com grande surpresa e preocupação que recebemos o teor da medida cautelar concedida pelo Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779/DF, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) com o objetivo de que fosse dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, “caput” e parágrafo único, do Código Penal, e ao art. 65 do Código de Processo Penal, a fim de se afastar a tese jurídica da legítima defesa da honra e se fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos, pleiteando, ainda, que fosse dada interpretação conforme à Constituição ao art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal.

De início, urge deixar claríssimo o nosso ponto de vista no sentido da impropriedade e da inaplicabilidade da tese de legítima defesa da honra em casos envolvendo infidelidade conjugal. Somos absolutamente contrários a qualquer forma de violência contra a mulher, e temos sempre sustentado a rigorosa e severa punição do agressor, não apenas em várias obras jurídicas de nossa autoria, como também em diversos artigos de nossa lavra, inclusive, por várias vezes, publicados nesta coluna.

O inconformismo com a referida medida cautelar reside justamente no cerceamento de defesa ínsito na decisão mencionada e na violação de dois dos pilares básicos da instituição do Júri, que são justamente a plenitude de defesa e a soberania dos veredictos.

Como já tivemos oportunidade de ressaltar em outros artigos publicados nesta coluna, o Júri é uma instituição bastante antiga, sustentando alguns estudiosos a origem mosaica do instituto, que teria surgido entre os judeus do Egito, através de relatos constantes do Pentateuco, sob orientação de Moisés, onde o Conselho dos Anciãos, reunidos sobre árvores, decidia em nome de Deus, garantindo ao acusado amplitude de defesa e cercando o julgamento da necessária publicidade, sem punições predefinidas.

Entretanto, é na Grécia que a maioria dos estudiosos encontra o antepassado mais remoto do Júri. Na Grécia, o sistema de tribunais era subdividido em dois importantes órgãos, a Heliéia e o Areópago. As Heliéias, verdadeiros tribunais populares, em número de doze, eram formadas por quinhentos membros sorteados entre os cidadãos gregos de, no mínimo, trinta anos, de conduta ilibada e não devedores do erário. Os membros das Heliéias eram sorteados pelos Arcontes, magistrados gregos, e perfaziam o número total de seis mil heliastas.

Na história mais recente, por volta de 1215, o Júri foi implantado na Inglaterra, quando o Conselho de Latrão aboliu as ordálias e os juízos de Deus.

No Brasil, a instituição do Júri foi implantada em 1822, para julgar os crimes de imprensa. Em 1824, na Constituição do Império, passou a compor o Poder Judiciário, cuja competência foi ampliada para julgar as infrações civis e criminais.

A instituição foi mantida na Constituição de 1891 e nas demais Cartas e Emendas Constitucionais brasileiras que a sucederam, à exceção da Constituição de 1937.

Atualmente, na Carta de 1988, dispõe o art. 5º, XXXVIII:

“Art. 5º (...) XXXVIII -  é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;  

c) a soberania dos veredictos;  

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”

Assim, além dos princípios constitucionais assegurados a todos os julgamentos (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, dentre outros) o art. 5º, XXXVIII, da Constituição Federal, enumera os quatro princípios fundamentais pertinentes ao Tribunal do Júri, dentre eles os da plenitude de defesa e da soberania dos veredictos, os quais, a nosso ver, são os mais importantes, uma vez que consagram a verdadeira democracia judicial e conferem a magnitude e pujança de um julgamento popular isento. O Tribunal do Júri, inegavelmente, constitui uma instituição visceralmente democrática, existente desde a Grécia antiga, que areja o sistema judiciário penal e confere a oportunidade de o povo decidir soberanamente, sem as amarras preestabelecidas de um sistema muitas vezes preconceituoso e forjado para a proteção da casta dominante.

O ilustre Ministro Dias Toffoli, entretanto, nos autos da ADPF 779/DF, concedeu parcialmente a medida cautelar para:

1) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF);

2) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, “caput” e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,

3) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Ora, as questões que se colocam em face do que foi decidido são basicamente as seguintes: haveria plausibilidade em uma decisão originária de uma Corte constitucional que coloca obstáculos ao sagrado direito de defesa do acusado, ao arrepio do devido processo legal (ampla defesa e contraditório) e do princípio da plenitude de defesa também assegurado constitucionalmente? Não estaria a decisão monocrática extrapolando os limites decisórios da Corte, impedindo o livre exercício de uma garantia constitucional? Princípios e garantias constitucionais fundamentais podem ser moduladas restritivamente por meio de uma penada monocrática de um dos ministros do Tribunal ou ainda pela maioria ou totalidade de seus integrantes? Não estaria sendo aberto um precedente perigosíssimo, em cuja senda caminharia o embrião do totalitarismo judicial e da supressão de liberdades e garantias fundamentais, a pretexto de ser conferida “interpretação conforme à Constituição”, muitas vezes baseada em convicções pessoais, políticas e ideológicas, e em pressão de grupos organizados que, no mais das vezes, estão dissociados do interesse sociais?

Enfim, por mais abjeta que seja a tese de legítima defesa da honra, não se pode, em absoluto, tolher o direito pleno da defesa em alegá-la e debate-la, em salutar contraditório judicial, que já conta, inclusive, com ferramentas recursais (art. 593, II, “d”, e §3º, CPP) para sanar eventuais desacertos que porventura possam ocorrer na decisão dos jurados. Mas é bom que se diga que a decisão mencionada não é definitiva e será submetida a referendo do Colegiado na próxima sessão virtual do Supremo Tribunal Federal, a qual está designada para início em 05 de março de 2021.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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