Por Cyro Marcos da Silva - 18/03/2015
“Um irmão ofendido é mais do que uma cidade forte, e os litígios são como os ferrolhos dum castelo. Cada um se nutre dos frutos de sua boca e sacia-se com o produto de seus lábios.
A morte e a vida estão em poder da língua;
Qual o uso que dela fizeres, tal o fruto que dela colherás”
(Provérbio, 19 e 20) (Sentenças de Salomão)
“A nossa alma, assim como os pássaros, escapou do laço dos caçadores. Láquevs contritvs est, et nos liberáti svmvs, ou seja, o laço foi partido e nós ficamos livres” (Salmo 123, v. 7)
O litígio é, antes de tudo, um laço. Um laço do qual se pede ser liberado. Este último laço, que envolve sujeitos, escondendo as possíveis funções e disjunções do sujeito com o objeto, remete-nos ao aviso de Freud.
Freud nos avisa que o sujeito “explora sem compensar a capacidade de trabalho do outro, utiliza-o sexualmente sem seu consentimento, humilha-o, o faz sofrer, tortura-o, enfim, o mata.”
Um litígio ou lide, no conceito de Carnelutti é um conflito de interesses com pretensão resistida. Portanto, é preciso haver interesses que estejam em conflito, não bastando tão somente uma pretensão. Só surge a lide, fato pré-processual, quando esta pretensão encontra resistência. Presentifica-se o mal estar, fruto da própria incidência da lei, mal estar este sobre que o Direito ainda vem tentar uma regulação apontando um lugar de dizer. Estamos pois, diante da Jurisdição, encarnada num Juiz nomeado e investido.
Direito e Juiz: às vezes a língua aponta aí uma conjugação uma conjugação: Das Rechts e Der Richter É com Giuseppe Chiovenda, renomado processualista italiano que temos agudamente a percepção do lugar do Juiz. Este construiu uma teoria, segundo a qual a jurisdição[1] se coloca como substituição de atividades. É pois, para Chiovenda, a substitutividade que possibilita aferir o conceito de Jurisdição. Esta substituição, digamos, esta metáfora, substituindo e dando nova significação, acontece em dois estágios: a cognição, quando a atividade intelectiva do Juiz substitui a das partes e de todos os cidadãos, e na executividade, quando o Juiz age quanto à atuação definitiva da lei que seria exequível pela parte em causa.
A Jurisdição traduz pois um juízo em causa alheia. E Chiovenda adverte: é exercida no lugar de outrem, não em representação de outros.
A radicalidade desta leitura é grávida de consequências. Assim, enquanto o poder executivo, expressando-se na administração, impõe-se direta e indiretamente pela lei, agindo por conta própria, não em lugar de outrem, o Juiz, por seu turno, atua a lei. A administração julga sobre a própria atividade, enquanto o Juiz julga sobre a atividade alheia. Portanto, se o Juiz só é possível em causa alheia, aí se demonstra a operação do significante, uma operação da palavra. Substituindo, metaforiza.
O Juiz não faz das partes um todo, está entre elas, intervém, intercede, faz intermédio. Talvez na autocomposição do litígio tal elemento da estrutura processual, elemento tertio, fique mais nítido. No entanto, ainda na heterocomposição, quando a solução é imposta às partes, mesmo aí, sua atividade é substitutiva, por conceito, portanto, mediadora.
Sabemos que a estrutura processual, a relação processual forma-se com a presença do que pede, — tese —, do que impede, a antítese — e do que decide — a síntese, ainda passível de relançar-se, quando haja recurso que venha enfim, apontar o ponto de basta. Todos estão modulados pelo processo, quais sejam, o autor do pedido, e consequentemente da demanda, — ato que deslancha o processo —, o réu, em face do que se pede, e o Juiz, chamado a dar direção ao processo e ao final, dizer o Direito, dentro dos limites do pedido. Jamais extra ou ultra petita, ainda que caiba infra petita. Sua posição no processo, portanto, não é de titular de direitos e deveres, como acontece com as partes, mas de implicado em funções, poderes e atividades. A posição é portanto dissimétrica, de Lugar, não de imagem, não de semelhante.
Porém, como a encarnação deste lugar cobra a presença de um sujeito, a neutralidade é impossível. Não estamos com isso admitindo a vileza, a corrupção, a imparcialidade. É preciso sim, uma certa distância, mesmo porque, a distância, o intervalo, indicam sua posição. Com isto estamos dizendo que embora os epítetos de Excelência possam lhe conferir uma imagem fálica de ser total e absoluto, esta falácia nada mais é que imaginária. O ser não é e nem total.
Seu lugar é de entre, Outro lugar, apontado para Outra cena, além da especular.
Se a mediação é da própria natureza de sua função e de seu lugar Outro, é importante que esta posição se expresse inequivocamente desde a articulação do litígio em juízo. Articulado o litígio em juízo, será doravante denominado causa. Causa de um ulterior dizer.
Pensemos em sempre apostar nas oportunidades de mediações, digamos metonímicas, apontadas pelo processo. Digo metonímicas porque é possível que o “ninguém é Juiz em causa alheia” resvale eticamente para “cada um é Juiz de suas próprias implicações”.
O procedimento, o rito, explicita os momentos da conciliação, momento estes em que as partes, cada qual trabalhando um certo ponto de perda, assinam a decisão de seus destinos frente ao litígio, Este momento é sempre esperado e estimulado antes da heterocomposição da lide.
Nas demais Varas que não a de Família, tais tentativas ficam sempre a cargo dos advogados das partes, às vezes do Ministério Público. São sempre convidadas pelo Juiz a uma conciliação.
Aliás, nas Varas de Família vamos assistindo felizmente, a interessantes trabalhos da assim nominada “psicologia jurídica”. Este trabalho, braço da posição do Juiz deve-se nortear por uma ética em implicar o sujeito litigante nas questões que traz sempre como culpa do Outro, realizando assim, um enxugamento do núcleo da causa, um desossamento do litígio. No entanto, não se pode confundir esta mediação com tentativas terapêuticas, como a de curar as partes de seus litígios, ou mediar para ganhar, conforme uma certa mentalidade do direito americano, às vezes despudoradamente confessada. Não se pode também pensar a mediação como apenas rito, isolando-a de uma estrutura, como se fala por aí. Se há processo, numa conceituação, digamos, no mínimo, bem pensada, há rito em estrutura e tão determinada pelo simbólico, que podemos nominá-la como estrutura simbólica mediadora.
Por que é uma estrutura? Porque no processo existem lugares ou posições vagas, que podem ser ocupados por distintos personagens: autor, réu e Juiz. Algo circula entre eles: a causa, que pode ser vista como a expressão jurídica do conflito ou a causa de um dizer.
Mas, pensemos agora: que poderá nortear esta nomeação? Será a ética de alcançar um bem qualquer, reflexo de um Bem supremo, ou uma outra ética poderia ser pensada?
CENAS DE UM CASAMENTO
Quando o sujeito se dispõe a ajeitar uma saída para: “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor[2], é possível que encontre alguém e lhe diga “eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer, como é grande o meu amor por você”.[3] Entusiasmado, faz ferver a canção e assegura um “eu sei que vou te amar, por toda minha vida eu vou te amar”.[4] Assim, como modernamente expressa-se o Direito, une-se estavelmente ou então para o altar, “branca e radiante vai a noiva e logo a seguir o noivo amado”, agora sob os efeitos do art. 229 do Código Civil Brasileiro.
Pois bem. O casamento, “visto assim do alto, mais parece um céu no chão; sei lá, não sei.”[5] Enfim, “como este bem demorou a chegar, e já não sabe se terá o olhar toda a ternura que quer lhe dar”[6], pouco a pouco, insidiosamente, diante de “todo dia ele faz tudo sempre igual”[7], o indestrutível desejo, como sempre, aponta o desejo de outra coisa. Começam a surgir, as chuvas de verão, trazendo “estranha no meu peito, estranha na minh’alma, um ‘agora vivo em calma’ (será), não te conheço mais”.[8] Ela desconfia de que “o homem que diz ‘sou’ não é, porque quem é mesmo é ‘não sou”.[9] Observa que ele “vestia uma camisa listrada e saía por aí e sorria, quando o povo dizia sossega Leão, sossega Leão”.[10] Ele começa a observar que “são demais os perigos desta vida pra quem tem paixão e que aí, então, preciso ter cuidado, porque deve andar perto uma mulher”.[11] Algo lhe toca mais ainda quando vê “a mulher preparando outra pessoa e que o tempo parou para ele olhar para aquela barriga”.[12] A seguir, “meu mundo caindo”,[13] a travessia se impõe. E o sujeito confessa que “quando você foi embora fez-se noite em meu viver. Forte eu sou, mas não tem jeito, hoje eu tenho que chorar. Minha casa não é minha e nem é meu esse lugar. Estou só e não resisto. Muito tenho pra falar.”[14]
Desce o pano!
CENAS DE UMA VARA DE FAMÍLIA
Na Vara de Família, ali, chegam restos, mas restos ainda gordos, muito nebulosos, a serem emagrecidos, enxutos. Neste espaço, tem que ser ouvido aquele que diz: “estou só e não resisto; muito tenho que falar”.[15] O outro poderá dizer: ah, eu vim aqui só pra me despedir, e as últimas palavras deste nosso amor, você vai ter que ouvir”.[16]
A mediação, quer pelo Juiz, quer pelos auxiliares da Justiça —, papel aí da psicologia jurídica — deve apostar em trabalhar com os sujeitos a perda. Perda para que, deste vendaval enorme que chega à Vara de Família, permaneça a brisa. A brisa deve ficar. “Fica, oh, fica brisa, pois talvez quem sabe, o inesperado faça uma surpresa e traga alguém que queira te escutar”.[17] Quem bate à Vara de Família, deve descobrir um pouco — ou talvez já descobriu e veio chancelar a descoberta de que a conjugalidade trata de conjugar o universal e o singular em tempo e modos diferentes.
Será que se casaram sabendo que a morte já separa e que a morte insiste na singularidade apesar das tentativas contrárias? Ou casaram-se esperando que todo dia e a cada dia a morte ou una?[18] Será mais produtiva a posição do profissional mediador da Vara de Família, quando estiver avisado de que, na conjugalidade, se articulam o necessário e o impossível. O necessário que não cessa de se inscrever, a ordem fálica sempre presente e, por outro lado, o que não cessa de não se inscrever, o impossível, o indizível, o que não tem juízo, nem nunca terá, conjugam-se na vida dita “a dois”. Mas a vida conjugal, tem suas produções. Produções nos falam mais de perdas que de lucros ou ganhos.
A vida conjugal produz bens, bens que os cônjuges tomam às vezes como “oh, pedaço de mim, oh, metade amputada de mim”, doendo a perda como “fisgada no membro que já perdi”.[19]
É ali ainda, no mencionado espaço de fala e escuta da mediação, que se faz o trabalho de deixar cair as metades amputadas, para que não venha gangrenar o que deve restar. Este trabalho, sabemos, não é fácil, enquanto estamos diante de um mercado que tem suas leis: empanturrar o sujeito de objetos que o façam feliz. Como se isto fosse possível.
Tal não escapou a Freud. Assim, diz-nos Lacan, no Seminário da Ética, pág. 22:
“Não escapa a Freud que a felicidade é, para nós, o que deve ser proposto como termo a toda busca, por mais ética que seja. Mas o que decide, e cuja importância não se vê o suficiente com o pretexto de que se deixa de escutar um homem a partir do momento em que ele parece sair de seu âmbito puramente técnico, o que eu gostaria de ler no ‘Mal estar da civilização é que, para esta felicidade, nos diz Freud, não há absolutamente nada preparado, nem no macrocosmo nem no microcosmo’”.(LACAN, Jaques – Le séminaire, livre VII – Seuil – Paris).
A mediação, pois, tem que apontar uma direção a este trabalho de luto das partes agora se separando. Luto da perda do dito objeto amado e todas suas metonímias. E para isto, só há um caminho de palavras. Se o litígio atesta uma certa falência da palavra (fallere — em latim significa faltar coma palavra), se o litígio comprova a falta de uma palavra que não podia faltar, até mesmo para sustentar a falta, será pela palavra que este litígio poderá ser decantado e mesmo desencantado como lugar último de manter o laço, forma cruel de se manter casado.
Volto à Lacan, no já mencionado Seminário da Ética:
“A palha das palavras só nos aparece como palha na medida em que delas separamos o grão das coisas, e é, de início esta palha quem carregou o grão.” (pág. 57).
E os filhos, hein?
Por toda essa andança que fiz no que canta nossa música popular, pouco ou quase nada se fala do filho. É há algo duro de seu constatar: o filho da “dona de tudo, da rainha do lar, que vale mais para o filho que o céu que a terra, que o mar” é aquele que o samba canta: “toma que o filho é teu, meu senhor, toma que o filho é teu!”[20]
Chico Buarque não recua e mostra mais longe ainda que: “saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”.[21] Mas o desejo no que se refere ao filho vivo, mais especificamente à filha mulher, é de “tornar azeite o leite, do peito que mirraste / no chão que engatinhaste salpicar mil cacos de vidro”.[22]
E arremata:
“pelo cordão perdido te recolher pra sempre à escuridão do ventre, curuminha, de onde não deverias nunca ter saído”.
É na mesma Ópera do Malandro que encontramos uma resposta da filha, aludindo a um certo saber:
“Eu quero que mamãe me veja pintando a boca em coração. Será que vai morrer de inveja ou não?
Ai, se o papai me pega agora abrindo o último botão. . . será que ele me trata a tapa e me sapeca um pescoção?”
Mais adiante, abre uma possibilidade:
“Será que ele me estende a mão / será que o pai dança comigo, ou não?”[23]
Canta-se pouco o filho ou a filha. Talvez, dada a impossibilidade jurídica de divorciar-se ou separar de filhos, a ilusão de não perdê-los fique mais presente. Seria desejável, no entanto, que o mediador, o Juiz, não se deixasse enganar tanto na atribuição da guarda. Salomão, ao decidir a sorte de uma criança disputada por duas mulheres que se diziam mães, nos deixa seu saber. Decidindo partir a criança ao meio, faz o julgador pensar em duas direções. A primeira é que compete, a cada parte, no litígio, implicar-se no seu pedido, cada qual responsabilizando-se e tocando e sendo tocado pela parte que lhe cabe no latifúndio da disputa. Por outro lado, aponta para o Juiz que a mãe é aquela que cede a uma mulher, eis que, Salomão encontrou a mãe ali, na mulher que se dispôs a perder para a Outra que não era a mãe.
CONCLUSÃO
Enxuto o litígio, duas possibilidades de compô-lo continuam presentes: primeiramente a autocomposição, o resultado de um trabalho em que os assujeitados à lide tornam-se sujeitos de uma decisão, celebrando um acordo ou uma transação. Outra alternativa é a heterocomposição, quando houver questão nas quais as partes não conseguiram acordar (escute-se essa palavra como puder) e esperam que o Juiz faça assim adormecer o litígio.
Em qualquer das duas situações, e frise-se, em qualquer situação em que se ´presentifica a formação processual e decisão do litígio, o resultado final será uma sentença que julgue o mérito ( art. 269 CPC ) ou não.
É interessante notar que no caso das partes celebrarem um acordo, o julgamento será com o mérito, eis que este não advém tão somente da heterocomposição, mas também da autocomposição e, se pensarmos bem, com muito mais razão.
Assim, o dito final será daquele que ocupa o Lugar de aplicador do simbólico, proferindo uma decisão ou homologando a decisão que as partes souberam se aplicar, este ato final, que em qualquer hipótese extingue um processo, é uma sentença.
Sentença, diz o dicionário etmológico de Antenor Nascentes, vem do latim sententia, sentimento, opinião. Portanto, como dito, pode enganar e enganar-se.
A sentença cai na dimensão do dito, do universal, do enunciado. Por isto, o vere-dito, estruturado efetivamente em ficção, como é próprio da verdade e do direito, esconde em si um dizer, pérola singular do indizível, incrustrada e inacessível, contornada pela ostra do dito, a partir do que se ouve.
Enfim, da dimensão de sujeito não se escapa, ainda que a deneguemos et pour cause.
Se uma ética para a mediação nos aponta o indestrutível do desejo, Lacan não deixa de nos apontar algo que podemos pensar sobre o objeto do litígio:
“É de sua natureza que o objeto esteja perdido como tal. Não será jamais encontrado. Alguma coisa está ali esperando melhor, ou esperando pior, mas esperando.”[24]
Avisados disto, que possamos, terminar escutando o casal litigado despedir-se da Vara de Família, cantarolando: “Eu não quero mais a morte, tenho muito que viver”.
Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira.
[1] . CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. GUIMARÃES, Menegali. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 1943. (v. II)
[2] Fernando Lobo e Antônio Maria – “Ninguém me ama”.
[3] Roberto Carlos – “Como é grande o meu amor por você”.
[4] Tom Jobim e Vinícius de Moraes – “Eu sei que vou te amar”.
[5] Paulinho da Viola e Hermínio de Carvalho – “Sei lá, Mangueira”.
[6] Dolores Duran – “Noite do meu bem”.
[7] Chico Buarque – “Cotidiano”.
[8] Fernando Lobo – “Chuvas de Verão”.
[9] Baden Powel e Vinícius – “Canto de Ossanha”.
[10] Assis Valente – “Camisa Listrada”.
[11] Toquinho e Vinícius – “São demais os perigos desta vida”.
[12] Caetano Veloso – “Força estranha”.
[13] Maysa – “Meu mundo caiu”.
[14] Milton Nascimento e Fernanda Brandt – “Travessia”.
[15] “Travessia”
[16] Roberto e Erasmo – “De tanto amor”.
[17] Johnny Alf – “Eu e a brisa”.
[18] Chico Buarque – “O casamento dos pequenos burgueses”.
[19] Chico Buarque – “Ópera do Malandro”- “Pedaço de mim”.
[20] Evaldo Rui e Fernando Lobo – “Nega Maluca”.
[21] Pedaço de mim – cit.
[22] Chico Buarque – “Canção Desnaturada”.
[23] Chico Buarque – “Aí se eles me pegam agora”.
[24] LACAN, Jaques. Seminário da Ética.