Jurisprudência não se tem! Cria

07/06/2016

Por Danielle Mariel Heil e Mauro Granemann de Souza Neto – 07/06/2016

O problema do (não)cumprimento da lei, em sentenças, nos requerimentos dos advogados em audiências, até mesmo no tratamento com relação as partes em litígio, onde for e com quem for, está acontecendo muitas vezes porque os próprios defensores estão arredios ao combate da aplicação adequada das leis e da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Isso tudo, além do fato de que muitos juízes e tribunais, sem contar o Ministério Público (uma vez que muitos dos seus profissionais enfrentam forte amnésia de sua prerrogativa de fiscal da ordem jurídica, transformando o órgão ministerial em exclusivo órgão acusador), julgarem, porque acham que “assim o é”, ou seja, “eu acho que tem que ser assim e ponto”.

A temática é polêmica, mas real e preocupante. Esse comportamento dos magistrados e demais operadores do Direito ocorre em razão da tendência contemporânea no chamado ativismo/protagonismo judicial, através da máxima “o Direito é aquilo que o juiz diz que é”.

Tendências incorporadas cada vez mais em solo brasileiro e advindas do sistema anglo-saxônico da common law.

Diferente do Brasil, nos países de tradição do common law, o juiz desenvolve o direito, é da essência desse sistema que o direito opere pelo judiciário. O direito, portanto, é aquilo que o juiz diz que é[1].

Tendo por base a diretriz do sistema common law que o “juiz faz o direito”, a atividade dos juristas anglo-saxônicos pode ser entendida como “[...] na direção da resolução dos casos concretos do que na formulação de princípios abstratos, o que pode caracterizar o uso do método indutivo, pois é feita a partir do confronto entre o caso em exame e outro similar”[2].

A tentativa de simplificar a regra de aplicação de precedentes para o sistema jurídico brasileiro resultou em uma única situação: o Direito e consequentemente seus operadores estão reféns de práticas e instrumentos equívocos da teoria do Direito na contemporaneidade.

O sistema brasileiro encontra-se fragilizado e assolado por um bombardeio de metas, convicções, teorias e informações, que compõem a aposta nessa recepção de experiências anglo-saxônicas.

Percebe-se, no dia-a-dia forense que o defensor está arredio ao combate (não defendendo-se qualquer forma agressiva de discussão), o ponto nevrálgico não é esse, o ponto é que os advogados muitas vezes deixam de questionar o direito tolhido do cidadão, mesmo diante de uma decisão ilegal, ilegítima e em alguns casos arbitrária.

Todos esses elementos: consciência, subjetividade, convicções particulares, sistema inquisitório e poder discricionário, acabam por ignorar por completo a doutrina, a lei e principalmente a CRFB/88.

Muitas explicações de causídicos mais experientes, são no seguinte sentido “aclaração”, se é que ela existe nesse tipo de atitude (leia-se covardia): “Não discuta com juiz e promotor, eles irão se vingar em cima de seus clientes”.

Diante de tal cenário, não surpreende que o advogado tenha certa ressalva de levantar uma divergência sobre o direito de seu cliente em uma audiência. É difícil de imaginar o advogado advertindo o juiz ou promotor de que sua decisão ou parecer está equivocado ou que contraria a legalidade.

Parece-me o caos aos olhos de muitos julgadores e seu “braço direito” (Órgão Ministerial). “Como assim?! Minha decisão é legal, até porque eu passei em um concurso público, e o Promotor também, concorridíssimo, diga-se de passagem, e você é advogado”, diria o nobre magistrado.

Aqui já nos desdobramos em duas crises atuais no mundo jurídico, um, o medo da “vingança” que partiu para o lado pessoal, já que advertido e “contrariado”, mesmo que de maneira educada, sutil e fundamentada, e; dois, o julgamento conforme a “minha opinião”, nos moldes dos meus códigos civil, penal e processual. “Ora, a sociedade clama por isso. A imprensa toda está acompanhando o caso, afinal estudei e passei no concurso, fiz cursinho preparatório, comprei milhares de livros esquematizados e cheios de chavões, e ainda tive um coaching”, diria novamente o juiz, mesmo que aviltando a Constituição Federal, e consequentemente as demais leis.

Oportuno o questionamento: como resguardar os direitos dos cidadãos que são reiteradamente ameaçados com as decisões de consciência política/moral e não legal?

Como advertir o juiz em uma audiência de que o pedido é legal e não está sob o seu subjetivo entendimento e que a lei assim lhe ampara? Advogados devem comprar essa “briga”? Lutar até o último suspiro pela aplicação, única e exclusiva, da lei, doa a quem doer?

Neste momento lembramos-nos da célebre frase “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei.” O receio da retaliação está vivo e presente em todo advogado. O combate deve ser polido e educado, mas não esquecido e jamais vencido!

É hora de efetivamente superar “o juiz como a boca da lei”, e não mais desmerecer os estudos de juristas brilhantes que coadunam com a Constituição e a lei, não nos deixando vencer a mediocridade.

Essa mentalidade já toma conta do consciente acadêmico, do ensino jurídico e da doutrina, e, infelizmente, atinge a prática de maneira consolidada. Aí surge mais uma questão: Por que advogados existem? Já que direito é o que nos dizem ser, nosso papel não é mais indispensável. De igual forma, de que adianta a doutrina, se não é aplicada? Para que pesquisar?

O combate não é necessário. “É assim mesmo e nada vai mudar”, já diria o acovardado.

Insistimos que NÃO!

Por tudo isso, conforme pontua Streck[3], cumprir a letra da lei significa, nos marcos de um regime democrático como o nosso, um avanço considerável.” Hoje, é revolucionário aquele que aplica a CRFB/88 e as leis.

Atualmente, o Novo Código de Processo Civil[4], destinou um capítulo inteiro para normatizar os precedentes judiciais, enfatizando a utilização do direito jurisprudencial e o claro momento de transição que o ordenamento jurídico brasileiro está passando.

Com isso, a tendência da utilização dos precedentes se faz cada vez mais presente em nossa realidade jurídica romano-germânica.

Essa jurisprudencialização que vem ocorrendo desenfreadamente em solo brasileiro merece atenção e cautela. Entendemos e afirmamos como equivocada essa formação e aplicação do direito jurisprudencial no Brasil, com a utilização de diretrizes do sistema common law, sem que tenhamos efetivamente nos dado conta do contexto histórico e cultural dos dois sistemas jurídicos.

O juiz, portanto, não pode ser só a boca da jurisprudência (como já o fora da lei, no tempo dos exegetas), repetindo ementas ou trechos de julgados completamente descontextualizados dos fatos - “Jurisprudência não se tem! Cria-se!

O NCPC estabelecerá a necessidade de os juízes seguirem alguns dos entendimentos dos Tribunais Superiores, mas tal aplicação não pode se dar de modo mecânico nem impedir que o juízo prolator da decisão promova a possibilidade de melhoria do sistema[5].

A ideia que trata o Direito como sendo aquele produzido pelos juízes, nas palavras de Streck[6] merece ser severamente combatido:

Combater a discricionariedade, o ativismo, o positivismo fático etc. – que, como se sabe, são algumas das várias faces do subjetivismo – quer dizer compromisso com a Constituição e com a legislação democraticamente construída, no interior da qual há uma discussão no plano da esfera pública, das questões ético-morais da sociedade.

Aury Lopes[7] alerta sobre a necessidade de uma postura corajosa dos profissionais jurídicos e da superação do senso comum teórico dos juristas[8]:

Não há mais espaço para o juiz exegeta, paleopositivista e burocrata, fiel seguidor do senso comum teórico dos juristas[9]. E, acima de tudo, está superada a mera subsunção à lei penal ou processual penal: deve o juiz operar sobre a principiologia constitucional. Destarte, impõe-se uma postura mais corajosa por parte dos juízes e tribunais em matéria penal. Julgadores conscientes de que seu poder só está legitimado enquanto guardiões da eficácia do sistema de garantias previstas na Constituição. (Ler http://emporiododireito.com.br/formacao-humanistica/)

Assim, em um sistema que tem por base a lei, a percepção do ativismo judicial se apresenta como um mal maior. Contudo, este ativismo judicial, ao menos no Brasil, “possui raízes mais profundas, como o desprestígio da lei, a ineficiência do executivo, a desestruturação do sistema, a irracionalidade das instituições, a ausência de uma boa política e a falta de consenso sobre pontos fundamentais”[10].

Necessário que se faça uma análise acerca do crescente movimento de fortalecimento do judiciário, que juntamente com o ativismo judicial aparece como uma “praga” que precisa ser contida e utilizada de forma moderada, para não se tornar uma acentuada e discricionária atuação do Poder Judiciário.

De igual forma Streck[11] discorre “não pode ser o juiz, com base na sua particular concepção de mundo, que fará correções morais de leis defeituosas.”

O direito, voltamos a insistir, não é aquilo que o judiciário diz que é. E tampouco, é e será aquilo que a jurisprudência (commonlização) diz que é, a partir de meros enunciados superficiais e muitas vezes descontextualizados.

Uma das grandes modificações no NCPC foi a nova redação dada ao artigo 131, atual artigo 489, que estabeleceu critérios que devem estar presentes na fundamentação da decisão judicial.

Com o NCPC, portanto, o direito processual brasileiro sofreu uma das principais rupturas com o ativismo judicial ao excluir a possibilidade do livre convencimento dos magistrados.

Ao retirar o poder de livre convencimento ou livre apreciação, o NCPC assumiu um sentido claro de não ser ativista-protagonista, e de acordo com Streck[12], com essa exclusão, o legislador sepultou o que restou do socialismo processual do final do século XIX – início do século XX.

Em uma democracia e com uma Constituição compromissória como a brasileira, não é possível pensar a figura do juiz como “acima das partes” e “acima dos demais profissionais jurídicos”.


Notas e Referências:

[1] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 383.

[2] CASTRO JÚNIOR, Osvaldo Agripino de. Introdução à História do Direito: Estados Unidos x Brasil. Florianópolis: IBRADD. CESUSC, 2001, p.33.

[3] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. ver. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 95.

[4] Sigla NCPC para referir-se ao Novo Código de Processo Civil.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. 2. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 138.

[6] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 110.

[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1105.

[8] Sobre o senso comum teórico, Gerivaldo Neiva sustenta que é um conjunto de representações, provenientes de conhecimentos morais, teológicos, estéticos, políticos, científicos, profissionais e familiares, que os operadores do Direito aceitam em suas atividades por intermédio da dogmática jurídica. NEIVA, GERIVALDO. Warat e o Senso Comum Teórico dos Juristas. Disponível em: http://www.gerivaldoneiva.com/2012/10/warat-e-o-senso-comum-teorico-dos.html.

[9] A expressão “senso comum teórico dos juristas” é de WARAT (apud STRECK) e bem retrata o conjunto de crenças e valores do discurso (manualístico) que impregna nossos tribunais. Valores e conceitos são repetidos ao longo de anos sem maior questionamento ou reflexão por parte dos operadores jurídicos, retratando um perigosíssimo conformismo. Exemplo típico dessa postura do “saber comum” é a paixão arrebatadora, por parte de alguns juízes, pelos repertórios de jurisprudência. Invocar a “jurisprudência pacífica”, “reiteradas decisões de tal tribunal” etc., é considerado por eles como “fundamentação”. Como explica STRECK, Lenio Luiz. (Tribunal do Júri. 3. ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1998. p. 51), “com esse tipo de procedimento, são ignorados o contexto histórico e social no qual estão inseridos os atores jurídicos (acusado, vítima, juiz, promotor, advogado, etc.), bem como não se indaga (e tampouco se pesquisa) a circunstância da qual emergiu a ementa jurisprudencial utilizada. Afinal de contas, se a jurisprudência torrencialmente vem decidindo que..., ou a doutrina pacificamente entende que..., o que resta fazer? Consequência disso é o que o processo de interpretação da lei passa a ser um jogo de cartas marcadas. Ainda se acredita na ficção da vontade do legislador, do espírito do legislador, da vontade da norma”.

[10] REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. Ativismo Judicial e Estado de Direito. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 4, n. 1, 2009, p. 06. Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/revistadireito/article/view/7028/4246#.UvbAZGJdX_E>.  Acesso em: 08 mai. 2016.

[11] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. ver. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 119.

[12] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5. ed. ver. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 34.


Danielle Heil (1). Danielle Mariel Heil é especialista em Direito Constitucional pela Fundação Educacional Damásio de Jesus, em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina e em Direito Ambiental pela Verbo Jurídico. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Advogada, atualmente Sub-procuradora do Município de Brusque-SC. .


Mauro Granemann de Souza Neto. Mauro Granemann de Souza Neto é advogado criminalista. Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Superior Verbo Jurídico. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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