Juiz pode determinar que acusado não beba e vá à igreja?

29/01/2016

Por Thiago M. Minagé e Alexandre Morais Da Rosa - 29/01/2016

O poder geral de cautela no campo penal impressiona pelo decisionismo e o bom mocismo. É o paroxismo da democracia processual. O juiz, autorizando-se em si mesmo, dado que inexiste previsão legal e em alguns bizarros manuais da graduação, decide decretar as condições de vida do acusado, limitando sua liberdade pelas razões mais absurdas.

No processo penal as limitações da liberdade devem estar previstas em lei. Não podem ser inventadas pela prodigiosa cabeça do magistrado. No caso do Código de Processo Penal são as previstas no art. 319 onde vigora o princípio da tipicidade processual, ou seja, não há que se falar em medida cautelar diversa das previstas no referido artigo. Tratando-se verdadeiramente de rol taxativo[1]. Em todas elas deve existir necessidade (como ultima ratio), adequação (entre o objetivo preservado e a medida) e proporcionalidade em sentido estrito, a saber, as cautelares devem se adaptar aos requisitos e lógica de não intervenção do devido processo legal substancial (CPP, art. 282).

Após a conduta criminosa, de regra, organiza-se uma cruzada pela salvação moral do acusado. A função materna acaba sendo incorporada pela Justiça Penal. Assim, lotados de boas intenções, claro, o juiz, o promotor de justiça, todos charlatães da democracia, buscam agarrar o cajado e indicar o caminho da redenção ortopedicamente. Para além da pena (que os iludidos acreditam possuir uma função ressocializadora, haja paciência), inventam medidas cautelares atípicas, as quais mereceriam um prêmio pela criatividade. E assim mantemos a relação crime = pecado e pena = penitência refletindo um sistema eclesiástico que insiste assombrar um país que se auto proclama laico.

Exemplo disso é o remetido pelo colega Paulo Silas. Por exemplo, em caso de condenação, a sentença condenatória, ao fixar o regime aberto a um dos acusados, estabeleceu as condições de “não portar armas, não ingerir bebidas alcóolicas, não frequentar bares, boates e congêneres.” Embora se possa discutir as condições do regime aberto, não se pode tolerar que o acusado seja restringido do exercício de seus direitos não previstos em lei. A invenção da impossibilidade de ingerir álcool ou mesmo frequentar bares transcende, em muito, o que poderia se esperar democraticamente de magistrados que levassem a sério a liberdade individual. Podemos, assim, imaginar, quem sabe, o juiz que decide proibir o sujeito de frequentar “lugares de reputação duvidosa”, “frequentar a Igreja”. Aliás, estamos lançando um concurso para que você, caro leitor, nos ajude a descobrir o que de mais interessante foi inventado pela magistratura brasileira no tocante às cautelares.

A pretensão velada é a de normatização e a disciplina (Foucault), no que pode ser chamado de ‘McDonaldização’ das medidas cautelares, a saber, por imposições que restringem a liberdade do sujeito para além do possível democraticamente. De regra, impõe-se tratamento, educação, disciplina, independentemente do sujeito, então objetificado. Logo, sem ética (Lacan). Na maternagem ilimitada e, muitas vezes, perversa, ao se buscar imaginariamente o sujeito, culmina-se com o afogamento de qualquer resto de sujeito que pretenda se constituir. Assim é que o estabelecimento de engajamento ao laço social exige, primeiro, que o sujeito enuncie seu discurso, situação intolerada pelo modelo fascista aplicado no Brasil. Sabe-se, com efeito, que qualquer postura democrática não pode pretender melhorar, piorar, modificar o sujeito, como bem demonstra Ferrajoli. Caso contrário, ocupará sempre o lugar do Outro, do canalha. Portanto, no Brasil, qualquer pretensão pedagógica-ortopédica será sempre charlatã, de boa ou má fé.

A nossa luta, portanto, está em dizer que em Direito Penal inexiste poder geral de cautela e, muito menos, pode-se depender da “criatividade jurisdicional”, sob pena de cometer as mais diversas atrocidades, claro, em nome do bem. Juiz não pode obrigar ninguém a nada além do previsto em lei. Se o fizer é um ditador vestido de Juiz. Não quer reconhecer seus limites.

O discurso retórico é assustador, a interpretação restrospectiva parece um fantasma que assombra os textos de sentenças criminais, a imaginação criativa dos magistrados supera os devaneios de Monteiro Lobato, e Galeano[2] alerta como o uso da linguagem pode ser traiçoeiro no quesito imaginação:

O capitalismo se chama globalização;

As vitimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento, que é como chamar meninos aos anões;

O oportunismo se chama realismo;

Os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias como se a metade da humanidade masculina fosse a maioria;

em lugar da ditadura diz-se processo;

as torturas são chamadas constrangimentos legais ou também pressões físicas e psicológicas.

Um negro é um homem de cor

E assim, a grande maioria, ditos majoritários, aceitam e legitimam com o silêncio, violações de direitos de forma institucionalizada, como bem define Ana Sabadel[3], os súditos legitimam a violência legal. Mas sempre pensamos que, consentimento não necessariamente reflete vontade, logo, aqui, jamais legitimaremos e bizarrices como estas aqui expostas.

Mas sinceramente, aguardemos a quantidade de insatisfeitos que possivelmente embarquem nessa viagem textual (des) legitimadora de atrocidades.


Notas e Referências:

[1] MINAGÉ. Thiago M. Minagé. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. Lumen Juris. 2013. Rio de Janeiro.

[2] GALEANO. Eduardo. De Pernas Pro Ar – A Escola do Mundo ao Avesso. L& PM POCKET. 2013

[3] SABADEL. Ana L. Manual de Sociologia Juridica. RT. 2002.


Sem título-15

Thiago M. Minagé é Doutorando e Mestre em Direito. Professor de Penal da UFRJ/FND. Professor de Processo Penal da EMERJ. Professor de Penal e Processo Penal na Graduação e Pós Graduação da UNESA. Advogado Criminalista.

E-mail: thiagominage@hotmail.com


. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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