Juiz de Santa Catarina reconhece a incompatibilidade do crime de desacato com a Convenção Americana de Direitos Humanos e absolve acusado

15/01/2017

 

Por Redação -15/07/2017

O juiz Fernando  de Castro Faria Juiz de Direito, em sentença proferida em  11 de janeiro de 2017 , absolveu um acusado de suposto crime de desacato, reconhecendo a incompatibilidade do artigo 331, do Código penal com a Convenção Americana de Direitos  Humanos.

Em sua decisão, o magistrado menciona o carater supralegal dos Tratados Internacionais o que: "Significa dizer que as leis infraconstitucionais, como é o caso do Código Penal, devem ser analisadas à luz da Constituição da República e dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos."

Ainda consignou que  "o Superior Tribunal de Justiça, ao efetuar o controle de convencionalidade, decidiu no Recurso Especial n. 1.640.084 - SP pela incompatibilidade do crime de desacato, previsto no art. 331, do Código Penal, com o art. 13, da CADH. Coaduno, doravante, com tal entendimento."

Confira a decisão:

Autos n° 0007563-64.2016.8.24.0091

Ação: Ação Penal - Procedimento Sumaríssimo/PROC

Autor do Fato: D. M. A. e S. SENTENÇA

Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público de Santa Catarina em desfavor de D. M. A. e S. em razão da suposta prática do delito de desacato (art. 331, do Código Penal).

Vieram os autos conclusos.

Decido.

Ao compulsar detidamente os autos, verifico que o reconhecimento da atipicidade da conduta descrita é medida que se impõe.

Consabido que a Constituição da República assegura de forma expressa a livre liberdade de manifestação do pensamento como direito fundamental (art. 5º, IV), garantia esta que ganhou força com a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro, em 1992, por meio do Decreto n. 678, da Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH (também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica), que resguarda expressamente em seu art. 13 a liberdade de pensamento e de expressão.

Além disso, oportuno destacar que no julgamento do Habeas Corpus n. 88.240 o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que "a esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante [...]" (HC 88240, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, j. 07.10.2008).

É o que se ajustou chamar de controle de convencionalidade: a análise de compatibilidade de normas infraconstitucionais internas com tratados e convenções internacionais de direitos humanos, que, como dito, possuem força supralegal. Significa dizer que as leis infraconstitucionais, como é o caso do Código Penal, devem ser analisadas à luz da Constituição da República e dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, ao efetuar o controle de convencionalidade, decidiu no Recurso Especial n. 1.640.084 - SP[1] pela incompatibilidade do crime de desacato, previsto no art. 331, do Código Penal, com o art. 13, da CADH. Coaduno, doravante, com tal entendimento.

Isso porque o delito de desacato, que, nas lições de Bitencourt (2009, p. 179), consiste em "desrespeitar, ofender, menosprezar funcionário público no exercício da função ou em razão dela"[2], vai nitidamente de encontro ao direito de manifestação em desfavor da administração pública, caracterizando verdadeira inversão da ordem democrática ao permitir a punição do cidadão que expresse seu descontentamento com o Estado.

Veja-se trecho do julgado proferido pelo STJ:

 “DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO, DESACATO E RESISTÊNCIA. APELAÇÃO CRIMINAL [...] DESACATO. INCOMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE [...] "a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação da inconformidade do art. 331 do Código Penal, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão. 10. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH já se manifestou no sentido de que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário. 11. A adesão ao Pacto de São José significa a transposição, para a ordem jurídica interna, de critérios recíprocos de interpretação, sob pena de negação da universalidade dos valores insertos nos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos. Assim, o método hermenêutico mais adequado à concretização da liberdade de expressão reside no postulado pro homine, composto de dois princípios de proteção de direitos: a dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos. 12. A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado - personificado em seus agentes - sobre o indivíduo. 13. A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito. 14. Punir o uso de linguagem e atitudes ofensivas contra agentes estatais é medida capaz de fazer com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão, por temor de sanções penais, sendo esta uma das razões pelas quais a CIDH estabeleceu a recomendação de que os países aderentes ao Pacto de São Paulo abolissem suas respectivas leis de desacato. 15. O afastamento da tipificação criminal do desacato não impede a responsabilidade ulterior, civil ou até mesmo de outra figura típica penal (calúnia, injúria, difamação etc.), pela ocorrência de abuso na expressão verbal ou gestual utilizada perante o funcionário público. 16. Recurso especial conhecido em parte, e nessa extensão, parcialmente provido para afastar a condenação do recorrente pelo crime de desacato (art. 331 do CP).”

A propósito, como bem salientado no julgado, eventuais críticas perpetradas em desfavor do agente estatal podem ser resolvidas na esfera cível, por exemplo, não se mostrando crível a intervenção do direito penal em tais casos, notadamente à luz dos princípios da fragmentariedade e intervenção mínima que norteiam o direito penal.

Inclusive, sobre o tema, bem discorreu o Juiz Alexandre Morais da Rosa nos autos de n. 0067370-64.2012.8.24.00233[3]:

"Nesse prisma, tenho que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação, reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia constitucional da liberdade de expressão."

Logo, o que se tem é a incompatibilidade do crime de desacato com a ordem constitucional e com a CADH, que asseguram o direito de qualquer pessoa expressar sua insatisfação sem receio de posterior punição estatal por tais atos. E, com isso, não se está a dizer que eventuais danos não podem ser reparados, mas, sim, que a tutela penal é prescindível para a solução de tais impasses.

Ante o exposto, ABSOLVO sumariamente D. M. A. e S. do crime previsto no art. 331, do Código Penal, ante a atipicidade da conduta, com fundamento no art. 397[4] , III, do Código de Processo Penal. Cancelo a audiência agendada para o dia 09.02.2017, às 17 horas (p. 18). Intime-se o autor dos fatos sobre o cancelamento, preferencialmente por telefone. Sem custas. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Após o trânsito em julgado, intime-se o autor dos fatos para, querendo, retirar o objeto apreendido à p. 06, no prazo de 90 (noventa) dias, sob pena de perdimento. Caso não se manifeste, o bem deverá ser destruído. Tudo cumprido e nada requerido, arquivem-se.

Florianópolis (SC), 11 de janeiro de 2017.

Fernando de Castro Faria Juiz de Direito

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Referências:

[1] Disponível em: http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/RECURSO%20ESPECIAL%20N%C2% BA%201640084.pdf Acesso em: 11.01.2017.

[2] Cezar Roberto Bitencourt. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 5. 3ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

[3] Disponível em: https://esaj.tjsc.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=0N000MCYC0000&processo.foro=23&uuidCa ptcha=sajcaptcha_ececaffff59c47c393394198feaa3884 Acesso em: 11.01.2017

[4] "Embora a absolvição sumária esteja prevista como fase seguinte à apresentação de resposta (art. 396 e art, 396-A, incluindo a citação, por óbvio), nada impede que o juiz inverta a cronologia legal e, desde logo, absolva sumariamente o acusado, com fundamento em algumas das hipóteses do art. 397, do CPP." (PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2014, 685)

   
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