Por Valter Guerreiro – 28/04/2016
Um dos debates mais interessantes a respeito do novo Código de Processo Civil – já em vigor desde o dia 16/03/2016 – refere-se à questão da fundamentada decisão judicial, ou seja, de uma intensificação da necessidade do magistrado demonstrar os motivos que levaram à sua decisão ser assim e não de outro jeito. No CPC anterior vigorava tal imperativo de modo vinculado ao princípio da motivação das decisões. No CPC vigente, a inovação segue no sentido de definir melhor como deve ser feita essa fundamentação, sob pena de nulidade como consequência de uma possível negligência do magistrado quanto à decisão judicial.
Diante da breve exposição acima como ponto de partida, vejamos alguns dispositivos atinentes à matéria. A priori, o Art. 93, IX, CF/88 expressa o seguinte teor formal:
“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).”
Percebe-se que todas as decisões, como sentenças e acórdãos, devem conter a característica de fundamentação, para que o próprio dispositivo legal seja adequado da melhor forma possível ao caso. O Art. 165 do CPC de 1973, vigente outrora, registrava entendimento semelhante, senão vejamos:
“Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.”
Nota-se que as fundamentações superficiais são combatidas até certo ponto. A mudança dessa lógica, trazendo para a atualidade, não concerne, especificamente a um dos pontos essenciais da nova legislação processual civil, qual seja: a celeridade procedimental. Muitas alterações tiveram como critérios basilares a referência em um processo mais condizente com a necessidade de justiça feita para com a sociedade, ao acometimento de decisões satisfatórias, em conformidade com o oportuno Estado Democrático de Direito. Destarte, ressalto que tal modificação visa enfrentar decisões arbitrárias ou o que o reluzente Prof.º George Marmelstein (Juiz Federal da JFCE) chamou de Lazy Judge[1].
Obstante a isso está a interpretação de que certos juízes de direito não seriam preguiçosos, como a própria tradução aduz, mas seriam magistrados econômicos, que entendem a simplificação das suas decisões judiciais como um equilíbrio judicante, em que pese uma fuga de fundamentações consideradas excessivas. Portanto, observamos que não se trata – na ótica dos minimalistas – de decisões judiciais de natureza superficial, mas, do contrário, de expressões refesteladas a um convir-necessário, ou seja, basta aquilo que foi posto como sentença, nem mais, nem menos.
É notório que o NCPC traz um desconforto para esse tipo de magistrado. Afinal, são muitas as exigências, como a explicação sobre a incidência de determinado artigo no processo ou da exigência de enfrentamento a cada um dos argumentos apresentados pelas partes, fazendo referência, desta feita, à plenitude do princípio do contraditório material. Outro ponto que pode ser citado é o de adequação do precedente ao caso concreto, informando, evidentemente, como se chegou àquela conclusão. Os dispositivos normativos (ainda não são normas até que haja uma interpretação significante, como nos ensina Friedrich Müller[2]) estão assim enunciados no NCPC:
“Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;
II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem.
§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;
II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
§ 2º No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
§ 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé.”
Podemos olhar para esse tópico normativo tendo como pano de fundo a constitucionalização do processo. Aqui se trata de um ponto fulcral para quem quer se posicionar sobre essa obrigatoriedade de fundamentação exaustiva dos magistrados nos processos a partir do advento do NCPC. Não restam dúvidas de que o pós-positivismo ou o neoconstitucionalismo moldaram as relações jurídicas em torno do nosso ordenamento jurídico. A dignidade da pessoa humana foi colocada no centro da nova ordem jurídico-constitucional. De direitos humanos mais conhecidos, como os relacionados com o garantismo jurídico-penal à teoria geral dos contratos, todo o sistema jurídico incluiu as novas teorias constitucionais, muito em conformidade com o já citado Estado Democrático de Direito, ou mesmo em ajustamento à moderna teoria dos direitos fundamentais.
O neoprocessualismo foi amplamente influenciado por esse movimento, visto em situações como a de orientação constitucional da atuação dos juízes, uma vez que os mesmos não são mais, tão somente, declaradores de vontade segundo a lei (extinguindo, de vez, o que Gustav Radbruch chamou de gesetz ist gesetz[3]). O direito fundamental ao processo justo passa a viger como uma marca inflexível ou fechada a qualquer tipo de negociação. Como bem nos ensinou o jurista Daniel Miranda[4] (cearense, processualista civil renomado), princípios como o efetivo contraditório, direito de ação, ampla defesa, entre outros, expandiram-se numa perspectiva de reconhecimento e, sobretudo, de legitimidade. Todo o direito perdeu a lógica patrimonialista para servir ao entendimento de que o ser humano em si e por si é o mote de todo o Direito. Então, pois, se não podemos ter direito e processo como figuras distintas (tese central do neoprocessualismo), não há porque não se atentar para a importância dos direitos fundamentais entrelaçados com o direito processual, na medida em que a garantia de um processo justo é algo nodal para o bom funcionamento das relações sociais e, por consecução, da democracia.
À guisa de conclusão, incumbe o apontamento de que podemos defender, teoricamente, essa fundamentação exaustiva por parte dos juízes de direito a partir de um viés neoprocessualista, sendo isso compreendido como um direito de todos. No entanto, se não há uma estrutura judiciária que possa garantir, minimamente, uma atuação dos seus valorosos profissionais, correspondendo às expectativas do NCPC, não adianta em nada, em termos de efetividade, a adoção de uma possível exacerbação do princípio da motivação das decisões. Por outro lado, realmente não podemos ficar reféns de juízes desleixados ou preguiçosos. No ensaio intitulado Looking for Cass Sunstein[5], o saudoso Ronald Dworkin critica a posição do Prof.º Cass Sunstein (Harvard Law School), justamente na tese de que fundamentar minimamente guarda alguma afinidade com fundamentação de qualidade. A extensão desse debate é intensa e como está longe de mim querer esgotar o tema, abro espaço para considerações, embora reitero a posição a efetivação dos direitos fundamentais no processo civil pode se dar melhor, numa visão neoprocessualista, com essa exigência trazida pelo novo Código de Processo Civil. Resta saber se a estrutura judiciária vai permitir e se vai haver compatibilidade real com a celeridade processual. O tempo dirá!
Notas e Referências:
[1] http://direitosfundamentais.net/2016/03/16/lazy-judge-e-fundamentacao-das-decisoes-judiciais-ou-quando-exigir-demais-pode-gerar-um-efeito-contrario-do-pretendido/
[2] http://institutoconceito.com/?p=234372
[3] https://de.wikipedia.org/wiki/Radbruch%E2%80%99sche_Formel
[4] Daniel Miranda é professor de Teoria Geral do Processo na Escola de Direito da FA7. O ensinamento citado refere-se ao que foi exposto em termos de matéria da disciplina durante o semestre vigente.
[5] http://docslide.us/documents/looking-for-cass-sunstein-ronald-dworkin.html
. . Valter Guerreiro é acadêmico de Direito da Escola de Direito da FA7 e estagiário profissional do Gomes Pinheiro Advogados S/S. . .
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