Inviolabilidade do domicílio na favela não pode(ria) ser mitigada

21/06/2017

Por Redação - 21/06/2017

Não resta dúvida de que a sociedade brasileira é extremamente desigual, sendo certo que essa realidade decorre de um perverso processo histórico. Apesar de a Constituição da República já ter adquirido a sua maioridade, a sua efetivação ainda depende da classe social do titular do direito fundamental em jogo.

A comunidade jurídica, aliás, possui uma importante parcela de culpa nessa letárgica efetivação plena dos direitos e garantias fundamentais, uma vez que abaliza diversos comportamentos ilícitos por meio de malabarismos hermenêuticos. O Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 603.616./RO, trouxe limites para a violação do domicílio sem autorização judicial. No entanto, o caso trazido na petição inicial de habeas corpus abaixo transcrita demonstra a dificuldade em fazer valer o Texto Constitucional, que não pode depender de um CEP para ser realidade para todos.

Confira a íntegra de habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro contra prisão proveniente de violação ilegal de domicílio:

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EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR – PRESIDENTE DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Eduardo Januário Newton, brasileiro, divorciado, Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, matrícula nº xxxxx, vem, com lastro nas disposições constitucionais, convencionais e legais, em especial o contido no artigo 5º, incisos XI e LXV, Constituição da República, artigo 11, 2, Convenção Americana de Direitos Humanos e artigo 17, 1, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ajuizar a presente ação de HABEAS CORPUS, com pedido liminar, em favor de xxxxxxxxxxxx, mantido indevidamente no cárcere cautelar por ordem do r. Juízo de Direito da Central da Audiência de Custódia – autos do processo nº xxxxxxxxxx – sendo, por essa razão, apontada como autoridade coatora, a partir dos fatos e fundamentos jurídicos a seguir delineados.

I – DOS FATOS E DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS

O ora paciente teve, em 06 de junho de 2017, a sua liberdade ambulatória cerceada, inicialmente por ordem de autoridade policial, em razão de suposto cometimento de condutas, que, em tese, se amoldariam aos tipos penais previstos nos artigos 33 e 35, Lei de Drogas.

Desde já, é importante ter em mente o que veio a ser declarado pelo Policial Militar xxxxxxxxx, diante da autoridade policial:

Que, em 06/06/2017, às 14h30min, o GAT e GTPP do 14º BPM realizou operação na Vila Kennedy para checar Disque Denúncia de roubo de cargas; Que a guarnição desembarcou do blindado na Rua Sudão, onde houve intenso confronto com traficantes; Que o declarante viu um ‘elemento’ correr com uma mochila nas costas em direção à xxxxxxxxxxx e entrar na xxxxxxxxxxxxx; Que, ao adentrar, na referida residência, foi localizado xxxxxxxxx com vasto material entorpecente e material para endolação (...)” (destaquei)

A referida versão não é diferente daquela que veio a ser prestada pelo outro servidor público ouvido pela autoridade policial. Eis um trecho do depoimento do Policial xxxxxxxxx:

(...) Que o declarante viu um ‘elemento’ correr com uma mochila nas costas em direção à xxxxxxx e entrar na residência xxxxxxx; Que, ao adentrar, na referida residência, foi localizado XXXXXXX com vasto material entorpecente e material para endolação (...)” (destaquei)

Além da notória dificuldade dos ditos agentes da lei compreenderem o estado de inocência, tanto que usam o termo ‘elemento’, os trechos dos depoimentos indicam que o ingresso na casa localizada na xxxxxxx, Vila Kennedy não se deu de forma autorizada tampouco precedida da existência de mandado judicial de busca e apreensão.

Em razão desse cenário, quando da realização da audiência de custódia, a defesa técnica do paciente apontou para a ilegalidade da prisão, uma vez que a inviolabilidade do domicílio foi golpeada fatalmente.

A autoridade coatora, após ouvir os argumentos defensivos que apontavam para a necessidade de deferir o relaxamento da prisão, proferiu a seguinte decisão:

Compulsando os autos, verifico que os custodiados foram presos, em flagrante delito, pela prática, em tese, dos crimes de tráfico de drogas e de associação para o tráfico (...) A regularidade dos flagrantes, portanto, encontra-se verificada, tendo sido observadas as formalidades legais, ousando discordar do Ilustre Defensor Público. No caso em exame, a garantia da ordem pública impõe a prisão dos custodiados porque não se pode admitir que as pessoas de bem de nossa sociedade fiquem expostas à ação criminosa dos flagrados (...)Diante do exposto, CONVERTO EM PRISÃO PREVENTIVA A PRISÃO EM FLAGRANTE DOS CUSTODIADOS. Expeçam-se os competentes mandados, bem como os ofícios de praxe.” (destaquei)

Eis a ilegalidade praticada!

A presente provocação do Poder Judiciário, que se materializa por intermédio desta ação mandamental, não se volta contra a argumentação metajurídica empregada pela autoridade coatora, uma vez que o integrante do Poder Judiciário não possui competência para agir como se agente de segurança pública fosse.

Muito embora não seja esse o ponto, é relevante colacionar preciso entendimento decisório assumido por esse Egrégio Tribunal de Justiça, que repudia a confusão entre as funções de magistrado e daquelas próprias de um “xerife”, in verbis:

A justiça criminal acaba consagrando um apartheid racial nos presídios, sem se preocupar com o direito de defesa dessas pessoas e tudo em nome de uma política de economia, celeridade processual e de segurança pública como se dentro dos autos do processo criminal não houvesse GENTE, ser humano.

 O juiz se transforma em secretário de segurança. Ele passa a ser o responsável pela segurança pública mantendo os indivíduos encarcerados numa postura típica de um juiz Hércules, isto é, ‘um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade’.

A necessidade de dar segurança à sociedade sai das mãos do poder executivo (secretário de segurança) e passa às mãos do juiz que se transforma no juiz/Batman: o defensor da sociedade. O homem que amedronta os bandidos com sua capa preta, depois de assistir ao assassinato dos seus pais, quando criança, lutando contra o crime. É este o papel que os magistrados criminais estão exercendo e não se dão conta: juiz/Batman.

Segurança pública não é função do juiz. Não é papel a ser desempenhado pelo magistrado enquanto guardião dos direitos e garantias fundamentais no processo criminal.”[1] (destaquei)

Superada esse obter dictum, é forçoso volver os olhares para a ilegalidade da prisão, uma vez que não observou um intransponível mosaico normativo composto por normas constitucional e convencionais.

E sequer se mostra possível arguir a natureza permanente do crime de tráfico como manobra hermenêutica para reconhecer a legalidade do ingresso dos policiais militares na casa localizada na XXXXXXXXXX, Vila Kennedy, uma vez que o Colendo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o RE 603.616/RO, traçou limites para o afastamento da norma fundamental contida no artigo 5º, inciso XI, Constituição da República.

Eis a ementa do decisório:

“Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso.”[2] (destaquei)

Ainda nesse momento expositivo, é imprescindível ter em mente trechos do voto do E. Relator proferido no citado Recurso Extraordinário, sendo essa a justificativa da transcrição nas linhas que se seguem.

A proteção contra a busca arbitrária exige que a diligência seja avaliada com base no que se sabia antes de sua realização, não depois. Esse princípio é adotado pelo direito norte-americano, na medida que não dispensa o mandado em situações de crime em curso, salvo se a busca imediata decorrer de circunstâncias exigentes – ‘exigent circumstances’ –, assim consideradas ‘as circunstâncias que levariam uma pessoa razoável a crer que a entrada era necessária para prevenir o dano aos policiais ou outras pessoas, a destruição de provas relevantes, a fuga de um suspeito, ou alguma outra consequência que frustre indevidamente esforços legítimos de aplicação da lei’ – ‘Those circumstances that would cause a reasonable person to believe that entry (or other relevant prompt action) was necessary to prevent physical harm to the officers or other persons, the destruction of relevant evidence, the escape of a suspect, or some other consequence improperly frustrating legitimate law enforcement efforts’ [United States v. McConney, 728 F. 2d 1195, 1199 (9th Cir.), cert. denied, 469 U.S. 824 (1984)].” (destaquei)

Ora Excelências, o ingresso na casa se efetivou porque uma pessoa com uma mochila nas costas correu e isso quando havia supostamente situação de confronto entre agentes da lei e criminosos.

Indaga-se: quem ficaria no meio de um tiroteio parado?

E mais. Que indício existe no fato de portar uma mochila nas costas?

A resposta é de fácil obtenção: nenhuma!

Não se trata, portanto, de qualquer exagero em afirmar que não se encontravam presentes as apontadas exigent circumstances, o que indica para a ilegalidade do ingresso na mencionada casa e, por via de consequência, da prisão em flagrante.

Da forma como veio a ser apresentada no curso da audiência de custódia, o reconhecimento da ilegalidade da prisão em flagrante há de ser tido como um marco para o Poder Judiciário.

Explico: um direito fundamental, qual seja, a inviolabilidade do domicílio, para a sua efetivação, não pode depender do CEP.

O mais humilde casebre, o barraco, a casa de palafita também se encontram protegidos pela norma fundamental prevista no artigo 5º, inciso XI, Constituição da República.

Pensar e, o pior, decidir em sentido contrário, tal como o realizado pela autoridade coatora, representa a permissão de uma outra seletividade no controle penal. Ao lado da seletividade de bens jurídicos, estará se legitimando uma seletividade de classes sociais, isto é, a depender do status social a Constituição da República poderá, ou não, ser observada para determinada pessoa.

Independentemente de suposta culpa do paciente, o que deverá se efetivar no curso do devido processo legal, não podem direitos e garantias fundamentais lhe serem suprimidas, sob pena de soçobrar o prometido Estado Democrático de Direito.

Em assim sendo, postula o impetrante pelo reconhecimento da ilegalidade existente, qual seja, ingresso em domicílio de maneira ilegal, não sendo sequer possível enquadrar nos limites excepcionados pelo Colendo Supremo Tribunal Federal – autos do Recurso Extraordinário nº 603.616/RO - , o que implicará no relaxamento da prisão imposta ao paciente.

II – DA COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS EXIGIDOS PARA A CONCESSÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA

Para a concessão da tutela de urgência, conforme iterativo entendimento jurisprudencial e doutrinário, é imprescindível a comprovação cumulativa de 2 (dois) requisitos: a plausibilidade do direito invocado e o real perigo na demora da prestação da tutela jurisdicional.

O primeiro dos requisitos é aferido no curso desta petição inicial, sendo relevante apontar, por mais enfadonho que esse labor possa representar, que o ingresso na casa localizada à Travessa Nagazaui, nº 13, Villa Kennedy não foi consentido tampouco precedido de autorização judicial.

Ademais, o caso em tela não se enquadra nos limites excepcionados nos parâmetros estabelecidos pelo Colendo Supremo Tribunal Federal.

E que não se invoque o fato de a prisão em flagrante ter sido convertida em preventiva, uma vez que a alteração do título prisional não afasta a mácula existente.

O outro requisito decorre da caótica situação do sistema prisional fluminense, o que, inclusive, ensejou a criação de Comitê Interinstitucional de Enfrentamento à Superpopulação Carcerária.

De nada adianta criar um comitê e requerer a participação de outras instituições públicas, se o estado das artes não for alterado.

Aliás, não se pode desprezar o fato de que, de acordo com dados elaborados pela SEAP, somente no mês de janeiro de 2017, dentro do sistema prisional fluminense ocorreram 22 (vinte e duas) mortes.

O risco na demora da prestação da tutela jurisdicional é, portanto, decorrente da concreta ameaça existente à integridade física do paciente, que se encontra ilegalmente preso.

Forte nessas considerações, postula pela concessão de medida liminar, no sentido de que seja reconhecida a ilegalidade da prisão, o que implicará no relaxamento da prisão.

Caso o E. Relator entenda que o pedido liminar se confunda com o mérito desta ação penal, considerando a primariedade e bons antecedentes do paciente, requer a revogação da prisão preventiva pela cautelar de comparecimento periódico em juízo, tal como previsto no artigo 319, inciso I, Código de Processo Penal.

III – DOS PEDIDOS

Em face de todo o exposto, postula o impetrante:

Pela concessão da ordem e habeas corpus, no sentido de que seja reconhecida a ilegalidade da prisão, uma vez que ocorreu patente violação de domicílio, não sendo possível enquadrar a atuação policial em qualquer das exceções previstas no Recurso Extraordinário nº 603.616/RO, o que implicará no relaxamento da prisão do paciente;

Pela admissão da documentação que acompanha a presente petição inicial, até mesmo como forma de elidir eventual alegação que aponte para a necessidade de uma indevida dilação probatória; e,

Pela intimação do E. Defensor Público em exercício junto a esse Colendo Colegiado para, querendo, acompanhar o presente feito, apresentar memoriais, realizar sustentação, interpor recursos e adotar quaisquer outras medidas que, nos limites de sua independência funcional, entender adequadas e necessárias para a efetivação da ampla defesa.

Pede deferimento.

São Sebastião do Rio de Janeiro, 07 de junho de 2017.

Eduardo Januário Newton

Defensor Público do estado do Rio de Janeiro

. Fonte: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
Notas e Referências: [1] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Agravo regimental no habeas corpus nº 0011249-55.2015.8.19.0000 julgado, em 15 de abril de 2014, pela 3ª Câmara Criminal. [2] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 603.616/RO julgado, em 05 de novembro de 2015, pelo Tribunal Pleno. Relator Ministro Gilmar Mendes.
Imagem Ilustrativa do Post: Combate à criminalidade e ao tráfico de drogas // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agecombahia/5906658879 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
 

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