INSIGNIFICÂNCIA E REINCIDÊNCIA: O PERIGOSO CAMINHO DA IMPUNIDADE  

04/02/2021

Recentemente, no julgamento do “Habeas Corpus” 176.564/SP, a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, invocando a aplicação do princípio da insignificância, houve por bem absolver um réu condenado a 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão, em regime fechado, pelo furto de um conjunto de panelas avaliado em R$ 100,00 (cem reais).

O que nos chamou a atenção, inicialmente, no caso analisado, foi justamente o fato de ser o réu reincidente, o que afastaria, em tese, a aplicação do princípio da insignificância, haja vista que referido princípio, sendo tomado como instrumento de interpretação restritiva do Direito Penal, deveria ser reservado tão somente a casos excepcionais, onde a mínima lesividade da conduta e o ínfimo grau de reprovação social aconselhassem a não punição do agente não dotado de periculosidade. Não se ignora a existência de precedentes no Supremo Tribunal Federal esgarçando o escopo de incidência do combatido princípio ante a sua aplicação a réus reincidentes, inclusive específicos, e portadores de péssimos antecedentes criminais.

Outro ponto que nos causou espécie foi o fato de a própria Ministra relatora reconhecer que haveria “óbice ao conhecimento do presente ‘habeas corpus”, uma vez que não foi esgotada a jurisdição do Tribunal Superior antecedente. O ato impugnado é decisão monocrática e não o resultado de julgamento colegiado. O exaurimento da instância no Tribunal Superior é condição para instaurar a competência desta Suprema Corte com base nos artigos 102, I, i, e 102, II, a, da Constituição Federal.”

Mesmo assim, descabendo, no caso, a impetração de “habeas corpus”, foi a ordem concedida de ofício pela ilustre Ministra, que identificou nos autos “situação excepcional” de “flagrante ilegalidade”, uma vez caracterizada “hipótese de atipicidade material da conduta” atribuída ao paciente.

Urge trazer à memória que o princípio da insignificância, também chamado de princípio da bagatela, deita suas raízes no Direito Romano, onde se aplicava a máxima civilista “de minimis non curat praetor”, sustentando a desnecessidade de se tutelar lesões insignificantes aos bens jurídicos (integridade corporal, patrimônio, honra, administração pública, meio ambiente etc.). Aplicado ao Direito Penal, restaria apenas a tutela de lesões de maior monta aos bens jurídicos, deixando ao desabrigo os titulares de bens jurídicos alvo de lesões consideradas insignificantes.

Mais recentemente, esse princípio foi desenvolvido pela doutrina penal alemã, a partir do início do século XX, principalmente por conta das nefastas consequências causadas pelas duas guerras mundiais, que assolaram a Alemanha de maneira peculiar, fazendo proliferar na sociedade da época, devido à miséria de grande parte da população, uma gama de pequenos furtos, no mais das vezes tendo por objeto alimentos e gêneros de primeira necessidade.

Tendo em vista, então, o que se convencionou chamar, à época, de “Bagatelledelikte”, Claus Roxin formula as bases do princípio da insignificância (“das Geringfügigkeitsprinzip”), buscando fundamentar seus postulados em outros princípios penais como o da lesividade, o da fragmentariedade e o da adequação social, considerando que este último foi desenvolvido com maestria por Hans Welzel em sua consagrada obra “Das Deutsche Strafrecht”.

Na obra “Politica Criminal y Sistema del Derecho Penal” (2ª ed., Ed. Hammurabi, 2000, p. 73/74), Claus Roxin sustenta que “bajo el prisma del principio ‘nullum crimen’ es precisamente lo contrario lo justo: es decir, una interpretación restrictiva que actualice la función de carta magna del Derecho penal y su ‘naturaleza fragmentaria’ y que atrape conceptualmente sólo el ámbito de punibilidad que sea indispensable para la protección del bien jurídico. Para ello hacen falta principios como el introducido por Welzel, de la adecuación social, que no es una característica del tipo, pero si un auxiliar interpretativo para restringir el tenor literal que acoge también formas de conductas socialmente admisibles. Aesto pertenece además el llamado principio de la insignificancia, que permite en la mayoría de los tipos excluir desde un principio daños de poca importancia: maltrato no es cualquier tipo de daño de la integridad corporal, sino solamente uno relevante; análogamente deshonesto en el sentido del Código Penal es sólo la acción sexual de una cierta importancia, injuriosa en una forma delictiva es sólo la lesión grave a la pretensión social de respeto. Como ‘fuerza’ debe considerarse únicamente un obstáculo de cierta importancia, igualmente también la amenaza debe ser ‘sensible’ para pasar el umbral de la criminalidad. Si con estos planteamientos se organizara de nuevo consecuentemente la instrumentación de nuestra interpretación del tipo, se lograría, además de una mejor interpretación, unaimportante aportación para reducir la criminalidad en nuestro país.”

O princípio da insignificância,outrossim, é bastante debatido na atualidade, principalmente ante a ausência de definição do que seria irrelevante penalmente (bagatela), ficando essa valoração, muitas vezes, ao puro arbítrio do julgador.

Entretanto, o princípio da insignificância vem tendo larga aplicação nas Cortes Superiores (STJ e STF), não devendo ser considerado apenas em seu aspecto formal (tipicidade formal — subsunção da conduta à norma penal), mas também e fundamentalmente em seu aspecto material (tipicidade material — adequação da conduta à lesividade causada ao bem jurídico protegido).

Assim, acolhido o princípio da insignificância, estaria excluída a própria tipicidade, desde que satisfeitos quatro requisitos estabelecidos em vários precedentes jurisprudenciais pelo Supremo Tribunal Federal: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de total periculosidade social da ação; c) ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.

No caso julgado pela Ministra Rosa Weber, acima mencionado, o furto ocorreu em 2017, em uma modesta loja de utilidades domésticas na cidade de São Paulo/SP, tendo a condenação sido imposta pelo juízo da 4ª Vara Criminal do Foro Central. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao recurso da Defensoria Pública. Impetrado “habeas corpus” substitutivo de recurso especial junto ao Superior Tribunal de Justiça (HC 520.686/SP), foi negada a liminar quanto ao pedido de acolhimento do princípio da insignificância.

Na decisão do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador convocado do TJ/PE) destacou com muita propriedade a inaplicabilidade do debatido princípio ao caso em análise, ressaltando não somente a reincidência específica do paciente, como também as condições patrimoniais do estabelecimento comercial vítima, além do expressivo valor da coisa subtraída, que não se revestiria de insignificância, não se enquadrando no conceito de “bagatela”.

Nas palavras do Ministro: “Ademais, a ‘res furtiva’ apresenta valor econômico, tanto que estava exposta à venda no comércio da vítima. E mais, não há que se confundir coisas de pequeno valor, com coisas de valor insignificante. Estes são os de valor nenhum e não chegam a incomodar o patrimônio da vítima; aqueles representam desfalque, ainda que de pequena monta, tornando típica a ação. Para estes últimos, a lei indica o privilégio do § 2º, do art. 155, do Código Penal, descabido, também, no caso. A hipótese não se encaixa na figura do privilégio, posto que, quando se considerada a atual realidade brasileira e o fato de que a maioria da população sobrevive à base de um salário mínimo, o valor dos bens acima mencionados, que somaram R$ 100,00, não pode ser considerado de pequeno valor. Ademais, de se notar que o acusado quando ouvido explicou que consumia drogas e passava por dificuldades financeiras, por isso, furtou a mercadoria e a revendeu.”

Com absoluta razão o Ministro Leopoldo de Arruda Raposo.

Inaplicável, no caso, o princípio da insignificância, considerando que o réu ostentava maus antecedentes, sendo reincidente específico em crimes de furto, indicando habitualidade criminosa (‘perseveratio in crimine’), o que afasta, de plano, o requisito do ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento. Além disso, a vítima é um modesto estabelecimento comercial de bairro, que certamente sobrevive a duras penas aos percalços da economia brasileira, não podendo suportar desfalques, ainda que modestos, sem comprometer a sobrevivência de seus proprietários e empregados.

Some-se a isso que, no mínimo, representa um acinte à população brasileira, que na sua maioria sobrevive com parcos recursos mensais, considerar “insignificante” a quantia de R$ 100,00 (cem reais), uma vez que, apenas a título de comparação, o benefício básico pago pelo programa Bolsa Família, à época, era de R$ 85,00 (oitenta e cinco reais) por família, para sobreviver por um mês.

Decerto que o valor de R$ 100,00 (cem reais) pode parecer insignificante em face dos polpudos vencimentos de ministros das cortes superiores e de outros brasileiros privilegiados, mas isso não pode significar a garantia da não punição de ladravaz contumaz, que faz do crime seu modo de vida, em desrespeito à parcela humilde da população brasileira, que luta pela sobrevivência com honestidade e se vê aviltada e maltratada com a proliferação do crime em um país onde grassa a bandalheira e impera a impunidade.

Respeitamos profundamente a ora vergastada decisão do Supremo Tribunal Federal, mas não podemos com ela concordar, mantendo-nos firmes na convicção de que a aplicação do princípio da insignificância deve ser reservado a réus primários e sem antecedentes, em situações realmente excepcionais, de ínfima lesão ao bem jurídico e de ausência de total periculosidade social da ação, revestindo-se a conduta do agente de baixíssima ou nenhuma reprovação social.

 

 

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