Improbidade administrativa: alteração relacionada a prescrição deve retroagir em benefício do réu

13/11/2021

A Lei Federal n.º 14.230/2021 mal entrou em vigor e já suscitou verdadeiras controvérsias entre os pensadores do Direito (deixemos “o operar o Direito” para as máquinas, que não pensam) acerca dos mais variados temas. Concentrar-nos-emos, no presente artigo, porém, na retroatividade da Lei de Improbidade Administrativa — lia, em matéria de prescrição.

Parte dos estudiosos que começou a escrever sobre o tema tem se posicionado favoravelmente à retroatividade da lia, ainda que com certas ressalvas, como é o caso de Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega, para quem as “normas benignas, em geral, retroagem para beneficiar aquele que seja alvo de pretensão sancionadora em sede de improbidade administrativa, havendo, contudo, ressalvas a se considerar”.[1] Também defendem a retroatividade da LIA Luiz Manoel Gomes Junior, Diogo de Araújo Lima e Rogerio Favreto[2] e José Miguel Garcia Medina[3].

Sem embargo, há quem defenda a irretroatividade da LIA por interessantes perspectivas, as quais, entretanto, no nosso modo de ver, não podem ser aplicadas coerentemente ao campo do Direito Administrativo Sancionador. A negar a retroatividade da “nova Lei de Improbidade Administrativa”[4], Tiago do Carmo Martins faz alusão à teoria da actio nata e sustenta que a prescrição serviria para punir o negligente, aquele que não age tempestivamente para exercer seu direito.[5]

Em seu artigo, referido autor tece algumas críticas à LIA, no sentido de que a novel legislação seria mais garantista que o próprio Código Penal. Com a devida venia ao autor, o processo comparativo há(veria) de ser inverso: se a LIA é mais benéfica que o Código Penal, é sinal de que nosso código se apresenta vetusto e, portanto, é ele que merece ser modificado, para potencializar direitos e garantias fundamentais, e não a LIA, que deve(ria) “endurecer-se” para não ser “mais branda” que um Código do milênio passado.

O ponto que deve ser entendido e aceito por parte daqueles que defendem a irretroatividade da LIA é que este campo do direito não ostenta apenas natureza cível. Pelo contrário, como já pontuamos em outra ocasião, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm afirmado que as sanções aplicadas na ação dita de “natureza civil”, por se aproximarem sobremaneira às punições penais, merecem tratamento semelhante.[6]

Dessa forma, quando analisamos o instituto da prescrição pela ótica do direito penal e processual penal, vemos que ele funciona não apenas como sanção ao negligente, mas, sobretudo, como garantia do cidadão que se vê submetido ao processo. Aliás, na seara penal, pouco importa o diploma em que determinado instituto esteja previsto: toda vez que amplia o “status libertatis” do cidadão e/ou minora o poder punitivo estatal, deve obediência ao comando constitucional e convencional da retroatividade benéfica, conquanto positivado em lei puramente processual.

É, portanto, essa visão que deve ser conferida à LIA, justamente por sua proximidade ontológica ao direito penal, já reconhecida, reiteradas vezes, pela doutrina e jurisprudência pátrias. Nesse sentido, vale lembrar trecho do voto de Teori Albino Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, proferido no bojo do Ag.Reg. na Petição 3.240/DF, no qual assevera que “embora as sanções aplicáveis aos atos de improbidade não tenham natureza penal, há profundos laços de identidade entre as duas espécies”.

Outrossim, ainda sob o ponto de vista da retroatividade da lei administrativo-sancionadora, Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega trazem vários exemplos[7] e citam diversos precedentes[8] nos quais se reafirma a similitude ontológica entre o campo do direito administrativo sancionador e o direito penal.

Com efeito, é o caráter “quase-penal”[9], trabalhado há anos por Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald, que confere à LIA, nos pontos em que mais benéfica aos cidadãos, a incontornável retroatividade, ressalvadas as disposições exclusivamente processuais. Quanto à ressalva relacionada às questões processuais, a propósito, é necessário assumir uma posição clara: prescrição nunca será matéria processual, independentemente do momento em que ocorra, uma vez que tem, por um lado, repercussão direta na esfera de liberdades públicas dos cidadãos, assim como ostenta, por outro, inegável contenção ao poder punitivo estatal.

Dessa forma, não há que se fazer cisão alguma entre prescrição ordinária, instituto de Direito material, e prescrição intercorrente, de índole processual, como defende Tiago do Carmo Martins, ao sustentar que, “em se tratando de prescrição intercorrente, tendo em vista sua natureza processual, é de ser reconhecida sua aplicação imediata aos processos em curso (artigo 14 do CPC), no que tange a atos processuais não concluídos”.[10]

Na visão do autor, “para processos em curso em 26 de outubro, é inviável aplicação retroativa da Lei 14.230/2021, pelo que não se há de exigir que esses processos sejam julgados em quatro anos a contar do ajuizamento”[11], ao passo que “estando o processo em curso, e sendo a prescrição intercorrente norma de direito processual, aplica-se desde logo, a contar da entrada em vigor da alteração legal”[12], naquilo que ele chama “aplicação prospectiva, não retroativa, da nova norma de processo”.[13]

O problema da perspectiva de Tiago do Carmo Martins, nos parece, é a divisão que faz incidir sobre o tema prescrição, o qual não deve(ria) comportar grandes controvérsias. As premissas que defendemos são claras e nos permitem chegar a conclusões validadas pela lógica: (i) normas penais mais benéficas retroagem, por força de disposição constitucional e convencional; (ii) prescrição é norma penal que sempre deve retroagir em benefício do réu; (iii) normas de direito administrativo sancionador, inclusive as relacionadas ao instituto da prescrição, possuem similitude ontológica com normas penais. Logo, normas de direito administrativo sancionador, inclusive as relacionadas ao instituto da prescrição, quando mais benéficas, devem retroagir. 

 

Notas e Referências

[1] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-out-22/improbidade-debate-reforma-lei-improbidade-administrativa-retroatividade >. Acesso em 09 nov. 2021.

[2] GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; LIMA, Diogo De Araújo; FAVRETO, Rogério. O Direito Intertemporal e a nova Lei de Improbidade Administrativa. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-out-18/opiniao-direito-intertemporal-lei-improbidade>. Acesso em 09 nov. 2021.

[3] MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente? Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente#sdfootnote5sym>. Acesso em 09 nov. 2021.

[4] Chega-se a falar em nova Lei, tendo em vista a amplitude das modificações implementadas pela Lei Federal n.º 14.230/2021, que não se limitaria a uma mera reforma. MEDINA, José Miguel Garcia. A nova Lei de Improbidade Administrativa deve ser aplicada retroativamente? Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/processo-lei-improbidade-aplicada-retroativamente#sdfootnote5sym>. Acesso em 09 nov. 2021.

[5] MARTINS, Tiago do Carmo. A prescrição na nova Lei de Improbidade Administrativa. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/martins-prescricao-lei-improbidade-administrativa#_ftnref2>. Acesso em 09 nov. 2021.

[6] BROETO, Filipe Maia; MELO, Valber. Prerrogativa de foro também é aplicável em ações de improbidade. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2017-mar-21/prerrogativa-foro-tambem-aplicavel-acoes-improbidade>. Acesso em 09 nov. 2021.

[7] “Mesmo que se ignorassem aqueles elementos, amostras contundentes de aplicação do citado princípio nos diversos segmentos do Direito Administrativo sancionador militam em favor de sua assimilação por esse ramo como um todo. A esse respeito, vale mencionar: 1) o artigo 106 do Código Tributário Nacional e o Parecer nº 11.315/2020/ME PGFN, na seara tributária; 2) o Processo Administrativo Sancionador nº 12/03, junto à Comissão de Valores Mobiliários; 3) o Parecer 0427/2012/PHE-ANEEL-PGF/AGU, junto à Agência Nacional de Energia Elétrica; 4) o acórdão no Processo Administrativo 08012.001183/2009-08, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e 5) o Acórdão nº 1.036/2019, proferido pelo Tribunal de Contas da União”. MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-out-22/improbidade-debate-reforma-lei-improbidade-administrativa-retroatividade >. Acesso em 09 nov. 2021.

[8] Por todos: AgInt no MS 64.486, da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça; REsp 1.353.267, da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça e RMS 37.031. MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Reforma da Lei de Improbidade Administrativa e retroatividade. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-out-22/improbidade-debate-reforma-lei-improbidade-administrativa-retroatividade >. Acesso em 09 nov. 2021.

[9] MENDES, Gilmar Ferreira; WALD, Arnoldo. Competência para julgar ação de improbidade administrativa. In: Revista de Informação Legislativa, v.35, n.138, abr./jun. 1998, p. 215.

[10] MARTINS, Tiago do Carmo. A prescrição na nova Lei de Improbidade Administrativa. Revista Consultor Jurídico – Conjur. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/martins-prescricao-lei-improbidade-administrativa#_ftnref2>. Acesso em 09 nov. 2021.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Idem.

 

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