IMPLICAÇÕES JURÍDICAS E SOCIAIS DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE E DA POSSE DE MACONHA PARA CONSUMO PESSOAL

11/07/2024

A descriminalização do porte e da posse de maconha para consumo pessoal é um tema de grande relevância no cenário jurídico brasileiro. A recente decisão do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 635.659 (Tema 506) levantou debates significativos sobre os impactos legais, sociais e de saúde pública dessa medida.

No Brasil, a Lei nº 11.343/06, conhecida como Lei de Drogas, dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e estabelece medidas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas. O art. 28 da referida lei criminaliza o porte de drogas para consumo pessoal, prevendo sanções como advertência, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programas educativos, mas não penas privativas de liberdade.

No RE 635.659, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a posse de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal (40 gramas ou 6 pés) continua sendo proibida, mas não constitui mais crime, sendo considerada tão somente uma infração administrativa. No caso específico, um indivíduo foi condenado a prestar dois meses de serviços à comunidade por portar 3 gramas de maconha. O Tribunal absolveu o réu, argumentando que o tratamento criminal do usuário de maconha não reduz o consumo e incentiva atividades criminosas associadas ao tráfico.

A decisão do Supremo Tribunal Federal se restringiu à maconha, não dispondo sobre outros tipos de drogas.

A maconha, também conhecida como “cannabis”, é uma planta que tem sido utilizada há milênios por suas propriedades medicinais, recreativas e industriais. Originária da Ásia Central, a maconha possui várias espécies e subespécies, cada uma com características e efeitos distintos. Textos históricos e arqueológicos indicam seu uso medicinal e recreativo em várias culturas, incluindo a chinesa, indiana e persa.

Existem três principais espécies de “cannabis”: a “Cannabis sativa”, conhecida por seu efeito energizante e estimulante, geralmente utilizada durante o dia – é o tipo mais comum de maconha; a “Cannabis indica”, que produz efeitos relaxantes e sedativos, sendo preferida para uso noturno; e a “Cannabis ruderalis”, espécie menos comum, que possui baixos níveis de THC (tetra-hidrocanabinol) e é frequentemente usada em cruzamentos genéticos para criar novas variedades.

Estudos revelam que a maconha contém mais de 100 compostos químicos conhecidos como canabinoides. Os dois mais conhecidos são o THC e o CBD (canabidiol). O THC é responsável pelos efeitos psicoativos, enquanto o CBD não é psicoativo e é conhecido por suas propriedades terapêuticas, inclusive já havendo várias decisões dos Tribunais Superiores permitindo o seu uso medicinal, no tratamento de epilepsia, Parkinson, glaucoma, câncer, esclerose múltipla e outras doenças.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, como dito acima, estabelece que a posse de pequenas quantidades de maconha para consumo pessoal continua sendo proibida, mas não pode mais ser considerada crime. O fundamento principal reside nos direitos à privacidade e à liberdade individual, conforme o artigo 5º, X, da Constituição Federal. Além disso, o tratamento criminal dos usuários de maconha é visto como um incentivo ao tráfico, sem evidências de que essa abordagem reduza o consumo.

Um dos pontos mais controversos nos debates que levaram à decisão do Supremo Tribunal Federal é, segundo foi alegado, a ausência de critérios claros na Lei de Drogas para diferenciar usuários de traficantes, muito embora seja sabido que a referida lei estabelece diversos critérios objetivos e subjetivos, no art. 28, § 2º, possibilitando essa diferenciação (natureza e quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, bem como conduta e antecedentes do agente). Atualmente, como deve ser, a decisão de enquadramento é feita com base na avaliação das circunstâncias de cada caso pela polícia, pelo Ministério Público e pelo Judiciário, o que, na visão do Supremo Tribunal Federal, resultaria em uma aplicação desigual da lei. A Corte, então, estabeleceu um critério presuntivo: a posse de até 40 gramas de maconha ou 6 plantas-fêmeas caracteriza consumo pessoal, salvo prova em contrário de intenção de tráfico. Esse critério, contudo, não é absoluto. A autoridade policial poderá apreender a droga e prender a pessoa em flagrante por tráfico se houver indícios de intenção de mercancia, tais como a presença de embalagens, balanças ou registros de operações comerciais.

Ignorou o Supremo Tribunal Federal, entretanto, na polêmica decisão, que há comprovação científica, de longa data, demonstrando que o consumo de maconha pode causar diversos malefícios à saúde individual, incluindo problemas respiratórios, prejuízos à memória e ao aprendizado, além de potencializar transtornos psiquiátricos em indivíduos predispostos. A exposição prolongada à droga pode levar à dependência e à redução da motivação e do desempenho em atividades diárias. Além disso, o uso de drogas, incluindo a maconha, pode gerar conflitos familiares, desestabilização emocional e financeira, além de influenciar negativamente outros membros da família, especialmente crianças e adolescentes. Invariavelmente, o ambiente familiar se deteriora devido à necessidade de lidar com as consequências do uso da droga.

E o mais grave, a nosso ver, é que a descriminalização do porte de maconha sem a criação de um mercado legal regulamentado, onde o usuário possa adquiri-la de maneira lícita, certamente exacerbará o tráfico de drogas. No Brasil, atualmente, não há autorização para o comércio legal de maconha, o que significa que os consumidores continuam a depender do mercado ilegal para adquirir a droga. Isso mantém o tráfico ativo e não oferece uma solução real para os problemas associados ao uso e à aquisição da substância, até porque o mercado ilegal permanece sendo a principal fonte de aquisição da substância, perpetuando a violência associada ao tráfico. Além disso, a percepção de que a maconha é inofensiva pode aumentar o consumo e os problemas de saúde pública associados.

Não obstante, como referido, o Supremo Tribunal Federal, em sua decisão, por maioria, considerou que a posse de pequenas quantidades de maconha para consumo pessoal deve ser tratada como uma infração administrativa, sem consequências penais. As sanções devem ser apenas advertência sobre os efeitos da droga e medida educativa de comparecimento a programas ou cursos educativos, conforme prescreve o art. 28 da Lei de Drogas. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, como pena restritiva de direitos, ficou vedada nesses casos. Essas sanções serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem gerar repercussões criminais, o que, certamente, ainda irá ensejar intensos debates.

É importante ressaltar que, quando houver suspeita de tráfico, mesmo que a quantidade de droga apreendida seja inferior ao limite estabelecido, o delegado de polícia deverá justificar detalhadamente as razões para o afastamento da presunção de uso pessoal. Essa justificativa não poderá se basear em critérios subjetivos arbitrários, sob pena de responsabilidade civil, disciplinar e penal. Em casos de prisão, o juiz, na audiência de custódia, avaliará as razões apresentadas e poderá afastar o enquadramento como crime se houver provas suficientes da condição de usuário.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal determinou que o Conselho Nacional de Justiça, em articulação com o Executivo e o Legislativo, deverá adotar medidas para implementar a decisão, promovendo mutirões carcerários para corrigir prisões realizadas fora dos parâmetros estabelecidos pelo Tribunal. Até que o CNJ delibere sobre novos regulamentos, a competência para julgar as condutas previstas no art. 28 da Lei de Drogas permanecerá com os Juizados Especiais Criminais, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença.

Enfim, do ponto de vista constitucional, a pergunta que fica é a seguinte: estaria o Supremo Tribunal Federal legitimado a descriminalizar uma conduta típica prevista em uma lei democraticamente votada e aprovada pelo Congresso Nacional?

Como se sabe, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 delineia claramente as atribuições dos três Poderes da República: Executivo, Legislativo e Judiciário. O Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, é o órgão legislativo responsável por criar leis e deliberar sobre questões de interesse nacional. No entanto, tem-se observado um crescente protagonismo do Supremo Tribunal Federal, que, em diversas ocasiões, tem se aventurado em áreas tradicionalmente reservadas ao Legislativo. Esse fenômeno tem suscitado debates acerca da legitimidade democrática dessa Corte e da constitucionalidade de suas intervenções.

A falta de legitimidade popular do Supremo Tribunal Federal é o ponto central nesse debate, uma vez que os Ministros da Corte são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, não sendo eleitos diretamente pelo povo. Isso pode levar a uma desconexão entre a vontade popular expressa nas urnas e as decisões proferidas pelo Tribunal. Embora a proteção de direitos fundamentais seja crucial a uma democracia, decisões como a descriminalização da posse de maconha para consumo pessoal levantam questionamentos sobre a competência do Supremo para legislar de fato, em vez de esperar a deliberação dos representantes eleitos.

A preservação da separação dos poderes é essencial para a manutenção do equilíbrio institucional e para garantir que o Congresso Nacional, legitimado pelo voto popular, exerça plenamente suas funções legislativas. É imperativo que o Supremo Tribunal Federal respeite os limites de sua competência constitucional, atuando como guardião da Constituição, mas sem avocar o papel do Legislativo, assegurando assim o funcionamento harmonioso da democracia brasileira.

 

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