IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PRISIONAL E A NOVA RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA  

08/10/2020

Foi aprovada no dia 02 de outubro de 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça, durante a 74ª sessão do Plenário Virtual, resolução estabelecendo diretrizes e procedimentos a serem observados pelo Poder Judiciário, no âmbito criminal, com relação ao tratamento da população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo que seja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente.

De acordo com a referida resolução, as pessoas condenadas devem ser direcionadas a presídios e cadeias conforme sua autoidentificação de gênero. A medida permite que lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis ou intersexo (LGBTI) condenados e privados de liberdade possam cumprir suas penas em locais adequados ao seu gênero autodeclarado.

Vale lembrar que no Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), somente 3% das unidades prisionais, ou seja, 36 (trinta e seis) unidades, possui alas destinadas ao público LGBTI, sendo certo que outras 100 (cem) unidades possuem celas exclusivas para essa comunidade. No geral, 90% das penitenciárias não possuem cela ou ala destinada a esse público.

Nesse sentido, já tivemos oportunidade de ressaltar, em artigo anterior, nesta coluna, que o combalido sistema penitenciário brasileiro, como é evidente, tem encontrado sérias dificuldades em se adaptar aos novos tempos, de diversidade sexual, em que as autoridades se vêem premidas pelas circunstâncias e pelos novos paradigmas sociais relacionados à sexualidade que, desafiando os postulados estabelecidos e os estereótipos ligados aos sexos, colocam em xeque a legislação penal positivada e obrigam os julgadores a visitar novas fronteiras, nem sempre fáceis de ser vislumbradas.

Foram considerados, na edição do novo ato normativo pelo Conselho Nacional de Justiça, os princípios de direitos humanos consagrados em documentos e tratados internacionais, em especial a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), o Protocolo de São Salvador (1988), a Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata (Durban, 2001), as Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras – “Regras de Bangkok” –, as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos – “Regras de Nelson Mandela” -, as Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade - “Regras de Tóquio”; além dos Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (Yogyakarta, 2006), cujo Postulado 8 propõe a implementação de programas de conscientização para atores do sistema de  justiça sobre os padrões internacionais de direitos humanos e princípios de igualdade e não discriminação, inclusive em relação à orientação sexual e identidade de gênero, e cujo Postulado 9 reconhece que toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com humanidade, respeito e reconhecimento à orientação sexual e identidade de gênero autodeterminadas, bem como indicando obrigações aos estados no que tange ao combate à discriminação, à garantia do direito à saúde, ao direito de participação em decisões relacionadas ao local de detenção adequado à sua orientação sexual e identidade de gênero, à proteção contra violência ou abuso por causa de sua orientação sexual, identidade ou expressão de gênero, assegurando tanto quanto seja razoavelmente praticável que essas medidas de proteção não impliquem maior restrição a seus direitos do que aquelas que já atingem a população prisional em geral, à garantia de visitas conjugais e de monitoramento independente das instalações de detenção pelo Estado e organizações não governamentais.

A nova resolução tem por objetivos a garantia do direito à vida e à integridade física e mental da população LGBTI, assim como à sua integridade sexual, segurança do corpo, liberdade de expressão da identidade de gênero e orientação sexual; o reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero e sexualidade da população LGBTI; e a garantia, sem discriminação, de estudo, trabalho e demais direitos previstos em instrumentos legais e convencionais concernentes à população privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitoração eletrônica em geral, bem como a garantia de direitos específicos da população LGBTI nessas condições.

Além disso, o reconhecimento da pessoa como parte da população LGBTI será feito exclusivamente por meio de autodeclaração, que deverá ser colhida pelo magistrado em audiência, em qualquer fase do procedimento penal, incluindo a audiência de custódia, até a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, garantidos os direitos à privacidade e à integridade da pessoa declarante. Nos casos em que o magistrado, por qualquer meio, for informado de que a pessoa em juízo pertence à população LGBTI, deverá cientificá-la acerca da possibilidade da autodeclaração e informá-la, em linguagem acessível, dos direitos e garantias que lhe assistem, nos termos da resolução. Nesse sentido, os tribunais deverão manter cadastro de unidades com informações referentes à existência de unidades, alas ou celas específicas para a população LGBTI.

No caso de autodeclaração da pessoa como parte da população LGBTI, o Poder Judiciário fará constar essa informação nos seus sistemas informatizados, que deverão assegurar a proteção de seus dados pessoais e o pleno respeito aos seus direitos e garantias individuais, notadamente à intimidade, privacidade, honra e imagem. Inclusive, o magistrado poderá, de ofício ou a pedido da defesa ou da pessoa interessada, determinar que essa informação seja armazenada em caráter restrito, ou, nos casos previstos pela lei, decretar o sigilo acerca da autodeclaração.

Outrossim, em caso de prisão da pessoa autodeclarada parte da população LGBTI, o local de privação de liberdade será determinado pelo magistrado em decisão fundamentada após consulta à pessoa acerca de sua escolha, que poderá se dar a qualquer momento do processo penal ou execução da pena, devendo ser assegurada, ainda, a possibilidade de alteração do local.

Deve ser ressaltado, entretanto, que a alocação da pessoa autodeclarada parte da população LGBTI em estabelecimento prisional, determinada pela autoridade judicial após escuta à pessoa interessada, não poderá resultar na perda de quaisquer direitos relacionados à execução penal em relação às demais pessoas custodiadas no mesmo estabelecimento, especialmente quanto ao acesso a trabalho, estudo, atenção à saúde, alimentação, assistência material, assistência social, assistência religiosa, condições da cela, banho de sol, visitação e outras rotinas existentes na unidade.

Dispõe a referida resolução, ainda, que deverá ser garantido à pessoa autodeclarada como parte da população LGBTI, quando do cumprimento de alternativas penais ou medidas de monitoração eletrônica, o respeito às especificidades elencadas na resolução, no primeiro atendimento e durante todo o cumprimento da determinação judicial, em todas as esferas do Poder Judiciário e serviços de acompanhamento das medidas, buscando-se apoio de serviços como as Centrais Integradas de Alternativas Penais, Centrais de Monitoração Eletrônica ou instituições parceiras onde se dê o cumprimento da medida aplicada.

As garantias previstas na resolução se estendem também, no que couber, a outras formas de orientação sexual, identidade e expressões de gênero diversas da cisgeneridade e da heterossexualidade, ainda que não mencionadas expressamente na resolução.

Por fim, para o cumprimento do disposto na nova resolução do Conselho Nacional de Justiça, os Tribunais, em colaboração com as Escolas de Magistratura, poderão promover cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados e serventuários que atuam nas Centrais de Audiências de Custódia, Varas Criminais, Juizados Especiais Criminais, Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Varas de Execução Penal em relação à garantia de direitos da população LGBTI que esteja custodiada, acusada, ré, condenada, privada de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitorada eletronicamente.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Deusa da Justiça // Foto de: pixel2013 // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/justitia-deusa-deusa-da-justi%C3%A7a-2597016/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura