Idade da vítima e vulnerabilidade nos crimes contra a dignidade sexual – Por Ricardo Antonio Andreucci

19/05/2016

A discussão acerca da vulnerabilidade (anteriormente caracterizada como presunção de violência), nos crimes contra a dignidade sexual, se a vítima é menor de 14 anos, é questão recorrente nos processos criminais perante os foros de todo o país.

Vulnerável significa frágil, com poucas defesas, indicando a condição daquela pessoa que se encontra suscetível ou fragilizada numa determinada circunstância.

Pode ainda indicar pessoas que por condições sociais, culturais, étnicas, políticas, econômicas, educacionais e de saúde têm as diferenças, estabelecidas entre elas e a sociedade envolvente, transformadas em desigualdade.

O termo “vulnerável” foi introduzido no Código Penal pela Lei n. 12.015/2009, ao tratar dos crimes sexuais contra vulneráveis.

O Código Penal, entretanto, limitou a abrangência do termo “vulnerável”, indicando ser:

a) pessoa menor de 14 anos, para os crimes de estupro, corrupção de menores e satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente;

b) pessoa menor de 18 anos, para o crime de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual;

c) pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;

d) pessoa que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

A denominação “crimes contra a dignidade sexual” é mais recente, sucedendo os chamados “crimes contra os costumes”, na redação originária do CP de 1940. O código anterior os definia sob a rubrica “dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. Na legislação vigente, o bem jurídico protegido é a dignidade sexual, que, no fundo, significa a moral pública sexual, no mesmo diapasão dos antigos “costumes”.

Nesse aspecto, a noção de moral pública sexual não pode ser analisada em apartamento da mentalidade vigente em determinada época, em determinada sociedade e em função de determinados aspectos dominantes e correspondentes ao interesse social em torno da sexualidade.

Com muita propriedade já ressaltava HELENO CLÁUDIO FRAGOSO que “as disposições de nosso CP nesta matéria são extremamente repressivas e representativas de uma mentalidade conservadora, incompatível com os tempos modernos. O critério que hoje domina a incriminação de tais fatos é o do efetivo dano social, sendo inteiramente injustificável a repressão penal de comportamentos considerados imorais pelos que têm o poder de fazer as leis. Vivemos num período de intensa revolução em matéria de moral pública sexual, com o desaparecimento de certos preconceitos, consequência de uma nova posição que a mulher vai adquirindo na sociedade. Passa a ser duvidosa a conveniência de proteger penalmente a moral pública sexual, numa sociedade pluralística, em que o interesse social em torno da sexualidade passa a se orientar por outros valores. Na aplicação da lei os juízes devem estar atentos ao envelhecimento e desatualização da lei, procurando interpretá-la em consonância com uma visão moderna, que corresponda às exigências dos novos tempos.”[1]

Não se ignora que a liberdade sexual, entendida, como quer ÁLVARO MAYRINK DA COSTA, “como a liberdade de dispor de seu próprio corpo para os fins sexuais, dentro dos limites normativos e dos costumes sexuais, respeitado o direito de ser diferente” [2], deve ceder ante a “innocentia consili” do sujeito passivo, fundamento da ficção legal de violência, ou seja, no dizer da Exposição de Motivos do CP/40, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.

Remontando aos práticos, a presunção de violência nos crimes sexuais (atual vulnerabilidade) foi primeiramente estabelecida por CARPZOVIO, fundado em duas passagens do DIGESTO (D.50,17,40 de Pomponio e D. 50,17,189 de Celso), levando-o a estabelecer o célebre princípio: “qui velle non potuit, ergo noluit”. Ou seja, quem não pode querer, consequentemente, dissente. Assim, o consentimento do incapaz foi equiparado ao dissenso deste, presumindo-se a violência no ato sexual.[3]

Muito embora essa teoria tenha sido criticada por vários autores através dos tempos (dentre eles, com destaque, Hommel, Manzini, Cremani e Carrara, com a criação de um terceiro gênero de estupro – “nec voluntarium nec violentum”), foi largamente seguida pelos penalistas e acolhida pela nossa legislação pátria, que aceitou o raciocínio de CARPZOVIO.

A melhor solução, entretanto, seria aquela adotada pelos códigos penais alemão e suíço, onde o abuso sexual dos incapazes de consentir ou de opor resistência deu lugar a uma figura de delito específica (“quod refertur ad mentecaptum, dormientem aut infantem, cujus non est velle, nec volle”), desaparecendo da lei a presunção de violência, em razão de soluções, por vezes, injustas e sem correspondência na realidade.

Mas a nossa posição, após detida análise do assunto, é a de que a presunção “ope legis” em relação ao menor de catorze anos é absoluta, ou seja, a vulnerabilidade é entendida em seu sentido mais literal, de absoluta intocabilidade do bem jurídico protegido, inexistindo, por conseqüência, vulnerabilidade relativa, tratando-se de norma protetiva da infância e juventude no contexto da proteção integral, carreada ao ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 227 da Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, o comando protetivo é no sentido de que ninguém possa manter conjunção carnal ou praticar atos libidinosos diversos com pessoa menor de 14 anos, ainda que haja o consentimento desta.

Nesse sentido, inclusive, a posição prevalente nos Tribunais Superiores, merecendo destaque a primorosa análise da questão feita no Recurso Especial nº 1.480.881-PI, pelo relator Ministro Rogério Schietti Cruz, cujo fato envolveu caso de estupro de vulnerável em que a vítima, de tenra idade, iniciou namoro com o réu, homem de idade superior a 25 anos, quando ainda era uma criança de 8 anos.

Ressaltou o Ministro que “o exame da história das ideias penais – e, em particular, das opções de política criminal que deram ensejo às sucessivas normatizações do Direito Penal brasileiro – demonstra que não mais se tolera a provocada e precoce iniciação sexual de crianças e adolescentes por adultos que se valem da imaturidade da pessoa ainda em formação física e psíquica para satisfazer seus desejos sexuais. De um Estado ausente e de um Direito Penal indiferente à proteção da dignidade sexual de crianças e adolescentes, evoluímos, paulatinamente, para uma Política Social e Criminal de redobrada preocupação com o saudável crescimento, físico, mental e emocional do componente infanto-juvenil de nossa população, preocupação que passou a ser, por comando do constituinte (art. 226 da C.R.), compartilhada entre o Estado, a sociedade e a família, com inúmeros reflexos na dogmática penal.”

Outro ponto importantíssimo ressaltado pelo mencionado acórdão do STJ é o de que “a modernidade, a evolução moral dos costumes sociais e o acesso à informação não podem ser vistos como fatores que se contrapõem à natural tendência civilizatória de proteger certos segmentos da população física, biológica, social ou psiquicamente fragilizados. No caso de crianças e adolescentes com idade inferior a 14 anos, o reconhecimento de que são pessoas ainda imaturas – em menor ou maior grau – legitima a proteção penal contra todo e qualquer tipo de iniciação sexual precoce a que sejam submetidas por um adulto, dados os riscos imprevisíveis sobre o desenvolvimento futuro de sua personalidade e a impossibilidade de dimensionar as cicatrizes físicas e psíquicas decorrentes de uma decisão que um adolescente ou uma criança de tenra idade ainda não é capaz de livremente tomar.”

E conclui o venerando acórdão, em perfeita síntese, sustentando que “não afasta a responsabilização penal de autores de crimes a aclamada aceitação social da conduta imputada ao réu por moradores de sua pequena cidade natal, ou mesmo pelos familiares da ofendida, sob pena de permitir-se a sujeição do poder punitivo estatal às regionalidades e diferenças socioculturais existentes em um país com dimensões continentais e de tornar írrita a proteção legal e constitucional outorgada a específicos segmentos da população.”

A questão da vulnerabilidade e do consentimento da vítima nos crimes sexuais, por fim, foi objeto de recurso repetitivo a partir da afetação do acórdão proferido no caso acima apontado (tema 918), em que foi discutido se a aquiescência da vítima menor de 14 anos possui relevância jurídico-penal a afastar a tipicidade do crime previsto no art. 217-A do Código Penal – estupro de vulnerável, firmando-se a tese de que “para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime.”


Notas e Referências:

[1] Lições de Direito Penal – Parte Especial vol.II . 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 1984. p. 01.

[2] Direito Penal – Parte Especial. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2001. p. 1417.

[3] FRAGOSO, ob. cit. p. 39.


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