Humpty Dumpty e o HC 126.292: trânsito em julgado significa o que quiserem?

09/01/2017

Por Paulo Incott – 09/01/2017

Provavelmente um dos capítulos mais tristes da história das decisões perpetradas pelo Supremo Tribunal Federal após a promulgação da Constituição de 1988 tenha sido a decisão tomada no HC 126.292, confirmada no julgamento das ADC 43 e 44. Nestas ocasiões o Supremo entendeu ser possível a execução da pena após condenação em segunda instância.

Muitas linhas foram escritas para demonstrar os equívocos desta decisão. Na realidade, é possível que, se todos os textos escritos para rechaçar a posição adotada fossem agrupados num único volume, estaríamos diante uma obra da magnitude de um volume de tratado penal. Nessa mesa linha de raciocínio, se tivéssemos uma junção dos argumentos enunciados contra a decisão prolatada, teríamos à disposição um genuíno compêndio de direito contemporâneo, abordando conhecimentos das mais diversas áreas do pensamento jurídico, passando pelo direito constitucional, teoria do direito, hermenêutica, direito penal, processual penal, criminologia, ciência da linguagem e tantas outras.

Ainda assim, deve-se alimentar o debate com novas contribuições sempre que possível.

O pilar sobre o qual se pretende assentar aqui breves apontamos é a necessidade de coerência do sistema jurídico. O enfoque que será abordado guarda simpatia com os argumentos elencados por Lenio Streck, quem sabe o maior pesquisador de teoria do direito e hermenêutica vivo em nosso país. Em sua coluna no site Conjur, este asseverou:

Em outras palavras: a coerência só pode ser sustentada diante de uma decisão que respeite o conjunto normativo que dá conteúdo a um sistema jurídico (por isso coerência e integridade são padrões que são sempre compreendidos conjuntamente).

Portanto, novamente, esse julgamento foi um equívoco — julgou inconstitucional o próprio texto constitucional.[1]

O sistema jurídico precisa ser harmonioso, íntegro, coeso. O STF deveria proteger esta coerência, em especial no que diz respeito a manter o arcabouço legislativo compatível com a Constituição. Não é seu papel e nem está autorizado o STF, em prol de uma suposta efetividade do judiciário, a afrontar direitos e garantias estabelecidos pelo constituinte originário ou, nas palavras de Streck: “o STF não pode sacrificar um direito individual por razões de política criminal”.[2]

Indo adiante, não se permite ao STF alterar o sentido da expressão “transitada em julgado” para fazer valer uma suposta diminuição da impunidade (bastante controversial inclusive). Mais uma vez na voz do ilustre pensador jurídico:

O que é trânsito em julgado? Ora, enquanto couber qualquer tipo de recurso, uma decisão não transita. Então temos a holding — princípio constitucional — e o enunciado que explicita isso no plano de uma regra (artigo 283). Tão claro como colocar água em cima.[3] 

Para que fique explícita a celeuma - o artigo 5º, LVII e LXI da Constituição Federal de 1988 versa:

Art 5º (...)

LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

Por sua vez, o artigo 283 do CPP reza:

Artigo 283 - Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Não é preciso muito para perceber que o artigo 283 reflete o mandamento constitucional, enfatizando a necessidade do trânsito em julgado da sentença condenatória para permitir a execução da pena.

Na ADC 44, pede-se justamente o reconhecimento da constitucionalidade espelhada deste artigo do CPP. Lê-se na exordial:

Caso uma norma infraconstitucional reproduza, repita, copie o teor de uma norma constitucional, então o que se verificará é sua constitucionalidade espelhada. É precisamente isso que se verifica no caso do dispositivo legal cuja constitucionalidade pretende seja declarada.[4]

Ora, o argumento que visa contrariar o exposto até aqui, defendido em especial pelo Min. Edson Fachin, se traduz no fato de que o Novo CPC (2015) haveria inovado e passado a possibilitar, apenas excepcionalmente, efeito suspensivo aos recursos (artigos 995 e 1027). Com isso, seria possível a execução antecipada da pena como regra, sem a necessidade de declaração de inconstitucionalidade do art. 283 do CPP. Ocorre que, de inúmeras maneiras, esse argumento se mostra descabido. Para ficar com duas: a uma que não se trata apenas do efeito dos recursos, uma vez que o art. 283 CPP, reproduzindo o texto Constitucional, versa especificamente sobre a sentença “transitada em julgado”, não meramente proferida em segunda instância. A duas, que o direito garantido pelo referido artigo não de traduz em “mera” garantia processual, mas tem em seu escopo, pela natureza dos efeitos de sua denegação, status de garantia individual (fundamental) que não pode ser suprimida por decisão do STF, sob pena de se admitir uma regressão em direitos humanos já amalgamados na Constituição. E ainda que se tratasse de garantia “meramente” processual, o CPC não seria meio idôneo para alterar o sentido ou o alcance de um instituto do CPP.

Relevante mencionar também que, diferentemente de outras Constituições estrangeiras, a Lei Maior brasileira é explícita em apontar o alcance da presunção de inocência, mencionando de modo claro a necessidade do trânsito em julgado para permissão da execução da pena.

Porém, aqui poderíamos estar nos afastando do ângulo principal de análise que anima a escrita destas linhas.

O ponto nevrálgico a ser explorado neste texto é a necessidade de coerência do sistema legislativo. Muitos são os pensadores que enunciaram a exigência de que o sistema jurídico-legislativo a que uma sociedade é submetida seja dotado de uma coerência mínima, gerando expectativas seguras e solidificando garantias fundamentais. Não há espaço neste ensaio para abordar com precisão os muitos prismas em que isso poderia ser demonstrado. Apenas à guisa de exemplo: Dworkin trabalhou a ideia de coerência e integridade legislativa e jurisdicional em sua magistral obra Império do Direito. A integridade defendida pelo autor não apenas se relacionada com o sistema legislativo posto, mas também com o histórico de direitos alcançados.

Uma segunda linha exemplificativa do pensamento que destaca a imprescindibilidade da coerência ancora-se no princípio constitucional da justeza ou da conformidade funcional, segundo o qual o STF tem a responsabilidade de garantir o espaço legislativo intacto, fazendo o máximo para diminuir a tensão entre seus enunciados. Pedro Lenza elucida:

O intérprete máximo da Constituição, no caso brasileiro o STF, ao concretizar a norma constitucional, será responsável por estabelecer a força normativa da Constituição, não podendo alterar a repartição de funções constitucionalmente estabelecidas pelos constituinte originário, como é o caso da separação de poderes, no sentido de preservação do Estado de Direito. O seu intérprete final “não pode chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente obedecido”. Nos momentos de crise, acima de tudo, as relações entre Parlamento, o Executivo e a Corte Constitucional deverão ser pautadas pela irrestrita fidelidade e adequação à Constituição.[5]

Desta feita, se aquele que tem sob sua responsabilidade o dever de proteger a Constituição em tempos de crise, assegurando que seus preceitos fundamentais sejam obedecidos, violenta justamente estes preceitos, operando uma real alteração de significado, com prejuízo aos réus, cumpre-se a sóbria conclusão de Miguel Reale:

Deve observar-se que não se sabe qual o maior dano, se o das leis más, suscetíveis de revogação, ou o poder conferido ao juiz para julgar contra legem, a pretexto de não se harmonizarem com o que lhe parece ser uma exigência ética ou social[6]

A mera leitura dos artigos 283 da CPP e dos incisos acima mencionados do art. 5º da CF/88 demonstram que, no caso da decisão de execução da pena após condenação em segunda instância, é isto que ocorreu. Decidiu-se contra legem, por pretextos “sociais”. Mais do que isso, alterou-se o significado de garantias históricas e crivou-se o sistema legislativo de incoerências e contradições.

Ora, o próprio Min. Luis Roberto Barroso, que votou a favor da possibilidade de execução da pena antes do trânsito em julgado, já havia asseverado em seus escritos a necessidade de manter a harmonia do corpo legislativo. Colhe-se de uma de suas obras:

A ordem jurídica é um sistema e, como tal, deve ser dotada de unidade e harmonia. A Constituição é responsável pela unidade do sistema, ao passo que a harmonia é proporcionada pela prevenção ou solução de conflitos normativos... A Constituição, além de ser um subsistema normativo em si, é também fator de unidade do sistema como um todo, ditando os valores e fins que devem ser observados e promovidos pelo conjunto do ordenamento.[7]

Então, como poderia haver uma mudança na concepção do estabelecido pelo art. 283 do CPP e do próprio conceito de “trânsito em julgado”, senão por meio de uma efetiva Emenda Constitucional? Isto sem adentrar no mérito da (im)possibilidade de emenda constitucional tendente a alterar uma garantia fundamental como a execução da pena sem a efetiva condenação passada em julgado.

Pensar numa alteração desta magnitude, com severa constrição da amplitude de uma garantia Constitucional, mediante uma decisão movida por questões de política criminal ou de administração judiciária, ou ainda mediante uma analogia com o texto de um novo Código de Processo Civil, produz exatamente a quebra da harmonia, integridade e coerência que o Ministro defendia em sua obra.

Por fim, aponta-se uma flagrante contradição na “interpretação” dada ao elemento “trânsito em julgado” e outra norma presente em nosso arcabouço legislativo: trata-se do art. 1º, I, alínea “d” da LC nº 64/1990, com redação alterada pela LC 135/2010, onde lemos (grifo acrescentado):

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

(...)

d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes

Quando a alínea estabelece, entre as causas de inelegibilidade, a decisão “transitada em julgado” OU “proferida por órgão colegiado” ela escancara a diferença inegável entre estes dois institutos. Ora, a conjunção OU é uma conjunção coordenativa alternativa, o que implica dizer que os dados ou fatos que ela liga se negam entre si ou indicam que, com a ocorrência de um deles, haverá a exclusão obrigatória do outro. OU há “decisão transitada em julgado” OU temos uma decisão “proferida por órgão colegiado”. É óbvio que a decisão transitada em julgado pode emanar de um órgão colegiado, mas ao serem colocadas num mesmo inciso ou alínea, claramente as opções pretendem se excluir, senão não haveria necessidade desta norma explicitar as opções.[8]

Diante disso, temos que a equivalência qualitativa operada pelo STF no que diz respeito à execução da pena após decisão condenatória julgada por “órgão colegiado”, como “substituto” ou “equivalente” daquilo que foi estabelecido pelo constituinte originário como pressuposto para execução da pena (ser considerado culpado – sentença condenatória transitada em julgado) cria uma incoerência cristalina no sistema legislativo e configura uma afronta aos limites inerentes à sua atividade jurisdicional.

As preocupações emergentes da manutenção desta decisão do STF possuem as mais diversas vertentes. Não as reproduziremos aqui. Nos limitamos a dizer que, numa sociedade em que o guardião da Constituição se transforma em seu principal algoz, ninguém é capaz de dizer com segurança que ainda se vive num Estado de Direito, em que imperam as Leis.

O diálogo entre Alice e Humpty Dumpty na obra de Lewis Carrol -  Alice no país das maravilhas, parece ser a epítome do quadro observado nesta decisão:

- Quando eu uso uma palavra - disse Humpty Dumpty num tom escarninho - ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique ... nem mais nem menos.

- A questão - ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.

- A questão - replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.[9]

Aí está. É só isso.


Notas e Referências:

[1] STRECK, Lênio Luiz. Conjur, 19 de fevereiro de 2016. Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado. Acesso em 14/11/2016.

[2] STRECK, Lênio Luiz. Conjur, 29 de fevereiro de 2016. O STF se curvará à CF e à lei no caso da presunção da inocência? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-set-01/senso-incomum-stf-curvara-cf-lei-presuncao-inocencia. Acesso em 14/11/2016.

[3] STRECK, Lênio Luiz. Conjur, 29 de fevereiro de 2016. O STF se curvará à CF e à lei no caso da presunção da inocência? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-set-01/senso-incomum-stf-curvara-cf-lei-presuncao-inocencia. Acesso em 14/11/2016.

[4] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRAISL. Conselho Federal. ADC nº 44/2016. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/oab-stf-declare-constitucional-prisao.pdf. Acesso em 14/10/2016.

[5] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª ed. São Paulo : Saraiva, 2012. p. 157.

[6] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 113

[7] BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os coneitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 318

[8] Importante ressaltar que, ao julgar a constitucionalidade da LC 135/2010, nas ADC 29 e 30, o STF declarou aquela constitucional. São diversas as diferenças entre o que estava em jogo. A começar pelo fato de que a inelegibilidade não é pena e não impõe punição a quem quer que seja. As regras e sanções previstas são de natureza eleitoral. Conforme se pronunciou a OAB Federal por ocasião do julgamento da ADC 29: “O regramento, neste caso, é obviamente diferente, pois visa a proteger outro valor constitucional: a moralidade administrativa”. Assim, permitir a aplicação da sanção prevista já após a sentença em segunda instância, num primeiro momento não parece ferir a presunção de inocência. Já no caso do HC 126.292 (e das ADC 43 e 44) o bem jurídico em pauta é a liberdade. Ademais, neste caso a Constituição e o CPP são explícitos em exigir a sentença “transitada em julgado”.

[9] A alusão não é de minha autoria – num contexto diferente já foi feita, ao menos, por Lênio Luiz Streck e Flavio Antônio da Cruz.

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 318

BRASIL. Código de processo civil. 16/03/2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em 14/11/2016

BRASIL. Código de processo penal. 03/10/1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm. Acesso em 14/11/2016

BRASILConstituição da República Federativa do Brasil de 1988. 05/10/1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 14/11/2016.

DELMANTO, Celso. Código Penal comentado: acompanhamento de comentários, jurisprudências, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 157.

LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Conselho Federal. ADC nº 44/2016. Disponível em: http://s.conjur.com.br/dl/oab-stf-declare-constitucional-prisao.pdf. Acesso em 14/10/2016.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 113

SILVA, José Afondo da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

STRECK, Lênio Luiz. Conjur, 19 de fevereiro de 2016. Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado. Acesso em 14/11/2016.

STRECK, Lênio Luiz. Conjur, 29 de fevereiro de 2016. O STF se curvará à CF e à lei no caso da presunção da inocência? Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-set-01/senso-incomum-stf-curvara-cf-lei-presuncao-inocencia. Acesso em 14/11/2016.


paulo-incott. . Paulo Incott é Advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduando em Criminologia. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Humpty Dumpty Sat On a Wall // Foto de: Alan Turkus // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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