Homem - bode, conceitos indeterminados e o novo CPC: para aonde caminhamos?

03/11/2015

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 02/11/2015

Olá a todos!!!

Certo dia, Thomas Thwaites, designer britânico, tomou uma decisão: resolveu tirar férias de sua rotina normal de trabalho, contas a apagar, horários a cumprir e chefe a obedecer; ao invés disso, tornar-se-ia o primeiro homem-bode. Para isso, construiu próteses que, colocadas nas suas mãos e pés, tornaram inviáveis movimentos das mãos e pés, visitou um neurologista a fim de tentar “desligar” partes de seu cérebro para que pudesse pensar como um bode; um biólogo, com o objetivo de tentar introduzir algo como um rúmen (órgão que viabiliza a digestão de grama e capim) em seu estômago; e, claro, inseriu-se numa sociedade de cabras da montanha, aonde permaneceu por 72 (setenta e duas) horas, alimentando-se de grama e capim e vivendo como os animais[1].

Não se sabe se o seu objetivo pessoal foi atingido, mas a partir da aventura escreveu o livro “GoatMan: How I Took a Holiday from Being Human”. Estranho, não? Bem, a julgar pelos princípios de Thomas Thwaites, definitivamente não! Para ele, o episódio foi decerto razoável enquanto descoberta para si. Ainda que tenha tido o objetivo de ganhar dinheiro e obter conhecimento do público com algo bem arquitetado e eficazmente divulgado, não lhe pareceu desarrazoado passar por toda a experiência. De mais a mais, só comer grama e capim por 72 horas já valeria o reconhecimento...

E se Thomas Thwaites exercesse a magistratura a serviço da rainha? Como seria a sua compreensão da razoabilidade? O que, para a sua convicção pessoal, soaria proporcional? Qual o conteúdo epistêmico da dignidade da pessoa humana? E, ainda, acaso estivesse a exercer a mesma função aqui no Brasil, sob a égide do novo Código de Processo Civil que, no artigo 8ᵒ, dispõe que “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”[2], o que faria?

Deixem-me situar corretamente a questão: não acredito que exista qualquer óbice na disposição normativa que, amparada pelo modal deôntico obrigatório (Op), determina que o juiz observe princípios como a dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e razoabilidade, tornando a sua exposição racional no formato decisório como requisito de validade da própria decisão[3]. Não é esta a questão. Aliás, este tipo de determinação não é sequer novidade. O que realmente chama a atenção é a determinação de o juiz se pautar em algo: i) cuja definição não se encontra completamente delineada; ao contrário, verifica-se acentuada divergência sobre o que seria um princípio, se tal coisa existe, em que medida se pode conceituá-lo, ou aplicá-lo, entre outras questões; ii) cuja metodologia de aplicação não se encontra segura ou consolidada[4]; iii) cujo grau de verificação epistemológico não se revela sequer incipiente; iv) cuja baliza constitucional não está determinada; v) cujo pacto semântico não se encontra definido[5].

Apostar as fichas em uma estrutura principiológica como a que nos fornece o novo CPC, Lei nᵒ. 13.105, de 2015, demanda um contraponto argumentativo deveras racional, maduro e sem espaços para soluções ad hoc. Será que estamos preparados para isso? Ou estamos construindo próteses de patas de cabras para mãos e pés?

O homem-bode, Thomas Thwaites, não teria dificuldades em definir o que para ele seria razoável fazer. Ainda que estivesse totalmente direcionado ao reconhecimento público, aceitou o pay off de todo o esforço e desconforto que a situação lhe proporcionou; mas, claro, o seu limite entre o que é razoável e o que não é se afigura muito – demais, aliás – alargado. Esta situação decerto rememora pensamento de que existem maiores ou menores zonas de compreensão entre os limites de aplicação de princípios e cláusulas abertas, o que também não é novidade. Como, então, traduzir limites aceitáveis para o campo de decisões cuja racionalidade clama cada vez mais por esclarecimentos?

E mais, concito o leitor a observar que esta não é uma situação que diz respeito apenas do novo CPC. Ao revés, é um fenômeno que está se verificando no direito como um todo. Forneço mais um exemplo. A responsabilidade civil encontra, desde o direito romano, pressupostos bem definidos; atualmente, porém, vem sofrendo releitura mercê do chamado direito de danos que apresenta, a título de pressupostos contemporâneos, os seguintes: da i) antijuridicidade; ii) dano injusto; iii) nexo de imputação (ou fator de atribuição); e iv) nexo de causalidade[6]. Como, então, caracterizar o dano “injusto”? Ou o nexo de imputação?

Se o “justo” já se insere no estabelecimento de quaisquer requisitos, pressupostos ou elementos classificadores de institutos, obrigatoriamente já se deve trabalhar com a indefinição que com ele caminha de mãos dadas. E as propostas de solução vão desde o nível da epistemologia, passando pela sintática e aportando na semântica, sem algo que se possa compreender como definitivo.

Ou se considera que, doravante, com o novo CPC, esta e outras questões serão definitivamente solucionadas, ou, à míngua de alento, todos deveremos nos juntar a Thomas Thwaites na sociedade de cabras.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] A íntegra dessa inusitada aventura pode ser encontrada em http://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/fotos/cansado-da-humanidade-designer-maluco-cria-proteses-e-resolve-viver-como-um-bode-20082015#!/foto/6. Acesso em 26 outubro de 2015.

[2] Íntegra disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm. Acesso em 26 outubro de 2015.

[3] Vide, a este respeito, o artigo 489 e seus §§, em especial o §2ᵒ, que assim determina: “§ 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”.

[4] Bastando, para tanto, visualizar acentuada divergência existente entre Robert Alexy, Eugênio Bulygin, Ronald Dworkin, Herbert Hart, entre outros, acerca do tema.

[5] Luís Virgilio Afonso da Silva adverte que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal equipara razoabilidade à proporcionalidade, imbricando diversos fundamentos teóricos, aplicáveis a ambas de maneira diferenciada e, ainda, sem aludir a um método, as aplica à forma silogística, da seguinte maneira: “a constituição consagra a regra da proporcionalidade; - o ato questionado não respeita essa exigência; - o ato questionado é inconstitucional.”. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, vol. 798, p. 23, abr 2002, DTR 2002\235.

[6] Adotam-se, neste particular, os pressupostos sugeridos pelo Il. Dr. Roberto Altheim em sua obra “Direito de Danos – Pressupostos contemporâneos do dever de indenizar”, publicada pela Editora Juruá, em 2008.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


Imagem Ilustrativa do Post: 42nd Street Steps // Foto de: Jim Pennucci // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/pennuja/8681361035 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura