Hermenêutica constitucional e o princípio da separação dos poderes: harmonia e independência a partir da Teoria do Caos

17/05/2016

Por Igor Domingos do Altíssimo – 17/05/2016

[…] Já que o momento é Trek, buscamos ao máximo simplificar a ideia de que tudo, definitivamente tudo converge para uma teoria de um modelo físico-matemático onde os blocos fundamentais são objetos extensos unidimensionais, semelhantes a uma corda, e não pontos sem dimensão que são a base da física tradicional. Por isso, a teoria baseada na teoria das cordas – motivo do “Start”- Trek Científico e Fictício deste texto esteja associada ao interesse e grande esperança (deste autor) de que o Direito possa vir a fazer parte de uma teoria de tudo. Não podemos excluir esta possibilidade – os sistemas jurídicos são conflitantes, confusos e a supermáquina legiferante do Estado é operada por in-operantes. As normas não convergem; pelo contrário. É preciso dimensionar o sistema para que ele funcione. Os avanços tecnológicos impactam no Direito; ou a Ciência Jurídica é inerte?! (1ª Lei de Newton – a Lei da Inércia) Mesmo que num primeiro e último momento, pareça loucura, é uma possível solução do problema. Ora, a Filosofia também estuda a natureza. Vamos tentar explicar: não se sabe ainda se a teoria das cordas é capaz de descrever o universo com a precisa coleção de forças e matéria que nós observamos; mas, se assim for, os trabalhos na teoria das cordas têm levado a avanços na matemática inclusive, principalmente em geometria algébrica. Os novos princípios matemáticos utilizados nesta teoria permitem aos físicos afirmar que o nosso universo possui 11 dimensões: 3 espaciais (altura, largura e comprimento), 1 temporal (tempo) e 7 dimensões recurvadas (sendo a estas atribuídas outras propriedades como massa e carga elétrica, por exemplo), o que explicaria as características das forças fundamentais da natureza, inclusive sob o ponto de vista filosófico. Assim, no mundo i-real, fica o questionamento: a Sociedade e o Direito pertencem a que dimensão?[10] O nosso sistema é finito, temporal e inerte? Heidegger estaria certo?” (SANTOS; MOZETIC: 2015, s/p)

As Repúblicas modernas foram instituídas com base no princípio da separação dos poderes, na ideia de que o poder concentrado nas mãos de um único soberano era a essência do regime absolutista que se buscava superar. Três órgãos que atuariam, de forma independente e harmônica, nas principais funções do Estado: legislativa, executiva e judiciária.

Não se pode, contudo, perder de vista que o Poder, apesar de dividido em três para melhor estabilização e operacionalização do Estado, e a função precípua do Estado Democrático de Direito é a efetivação do Direito Constitucional[1]. Sendo o sistema jurídico constituído de unidade material, incumbe a todos os intérpretes a harmonização das regras, princípios e valores que o constituem (ARONNE: 2006, p. 44). Neste aspecto, apresenta-se um problema de grande complexidade: como deve ser a interação entre os três poderes na interpretação constitucional? Este texto lança um olhar sobre essa questão, a partir do paradigma da teoria do caos.

Quando foi desenvolvida a ideia de repartição dos poderes teve por influência o paradigma da física newtoniana. Tribe (1989, p. 2-3) expõe que a ideia do funcionamento dos órgãos dos Três Poderes pelos teóricos jusnaturalistas teve origem na física newtoniana. Imaginava-se que os Poderes funcionariam como um sistema mecânico, que a partir da aplicação de uma força permaneceriam em movimento autônomo, como, por exemplo, o sistema solar.

Assim como no movimento dos planetas ao redor do Sol, os Poderes atuariam de forma independente e harmônica, através de uma força mística que age à distância. O século XX traz, no entanto, grandes transformações no paradigma newtoniano. Cientistas como Maxwell, Thomson, Einstein, Heisenberg, Bohr, Schrödinger, assolam o determinismo e absolutismo presentes na teoria de Newton. Inserem incerteza, relativismo, vazio e indeterminação no paradigma científico e revolucionam a forma de pensar.

O fim das certezas abre espaço para a construção de uma nova ciência: o caos. Ele aparece no centro do palco da ciência na metade do século XX por um acidente. Incompreendido a princípio, revolucionário em seus efeitos. Em poucas décadas a pesquisa científica em todas as áreas haviam sido infectadas por essa revolução[2]. E essas mudanças atingem agora o mundo jurídico.

O sistema codificado original é um sistema aprioristicamente estável, ainda que sensível às condições iniciais; aos elementos axiológicos que constroem a respectiva lide a ser solvida e o discurso que a revela. Mesmo nestes casos, podem-se observar desvios, derivados da riqueza tópica. Da estabilidade também pode surgir o caos. Vários cientistas tiveram a ousadia de reconhecer isto. Muitos outros calaram diante de desvios em sistemas instáveis. A quase integralidade. Simplificaram. Tergiversaram. Agora já não podem se negar a ver. A luz atravessa as suas pálpebras. Isso ocorre com os juristas apenas agora. Ao menos formalmente. Já vinha sendo constatado e estudado. Só não era sabido o nome. Nem se tinham as pontes para fundar a travessia. As pontes estão aqui. O nome: Caos” (ARONNE: 2006, p. 30).

As características que marcam o sistema jurídico visto a partir da perspectiva do caos é a sua complexidade, não-linearidade, sensibilidade às condições iniciais, abertura e indeterminação[3]. E ainda, para a solução do problema aqui proposto, deve-se inserir sua geometria fractal[4]. Neste paradigma, busca-se reinterpretar o conceito de separação dos poderes, ante a função estatal primordial de efetivação da Constituição.

Vejamos essa ideia em um caso concreto.

Sempre foi uma questão controversa a prerrogativa de foro perante o Supremo Tribunal Federal, mais especificamente sobre a sua persistência ou não caso a causa de privilégio cesse de existir. Ainda hoje não é pacífico na Corte a questão, sendo a jurisprudência oscilante e muito casuística. Durante décadas, contudo, mesmo já no regime da Constituição de 1988, o STF entendeu que a prerrogativa de foro permanecia mesmo após a perda da causa de privilégio. Esse era o sentido da Súmula n. 394: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal seja iniciados após a cessação daquele exercício” (BARROSO: 2009, p. 131).

No entanto, em julgamento de Questão de Ordem no Inquérito 687/DF, de relatoria do Ministro Sydney Sanches, o Supremo cancelou a referida Súmula, mudando a interpretação adotada para o artigo 102, I, b, da Constituição de 1988 e “passando a afirmar que a competência especial somente vigoraria enquanto o agente estivesse na titularidade do cargo ou no exercício da função” (BARROSO: 2009, p. 131). Os representantes do Poder Legislativo não concordaram com essa mutação constitucional adotada pelo STF e editaram a Lei n. 10.628, de 2002, que dava a seguinte redação ao artigo 84 do Decreto-Lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal):

Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública. § 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.

Em análise simples, a Lei restaurava o estado que existia antes do cancelamento da Súmula n. 394. Não procedia a uma alteração do texto da Constituição em si, apenas dava-lhe outro sentido. O STF, contudo, invalidou a pretensão do Legislativo de ser também intérprete da Constituição por meio de edição de leis ordinárias, declarando a Lei inconstitucional (BRASIL: 2006, p. 1-2). No seu voto o Ministro Sepúlveda Pertence faz colocações pertinentes sobre as vinculações dos outros poderes à interpretação constitucional procedida pelo Supremo Tribunal Federal:

Certo, a Constituição não outorgou à interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal o efeito de vincular o Poder Legislativo, sequer no controle abstrato de constitucionalidade das leis, quando as decisões de mérito só terão força vinculante para os “demais órgãos do Poder Judiciário e Poder Executivo”. Menos ainda cabe cogitar de vinculação do Legislativo às decisões do STF que diretamente aplicam a Constituição aos fatos: ao contrário das proferidas no controle abstrato de normas, são acórdãos que substantivam decisões tipicamente jurisdicionais, de alcance restrito às partes. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição” (BRASIL: 2006, p. 17-18).

Em busca da harmonia, a Constituição delimita as competências de cada um dos poderes. Mais do que um desenho geométrico de forma perfeita, euclidiana, da competência de cada poder, a Carta Magna traça regiões fractais de interação, recursivamente construídas.

Reconheça-se que mesmo diante da mais estável jurisprudência, existem desvios causais. Reconheça-se, ainda, que estes desvios, em macroperspectiva, são probabilísticos. Possuem configurações. Perceba-se que nada é imprevisível, neste movimento da jurisprudência; também nada é determinável. Perceba-se que na aproximação de microperspectiva dos desvios, em crescente, apuram-se as razões pelas quais a solução da respectiva lide tomou determinado rumo (trajetória), o qual, na lógica interna do processo, pode ser encadeado às condições iniciais, colimadas no caso concreto (tópica). Note-se também, que o Direito imprime uma noção artificial e variável de tempo e reversibilidade, que vem sendo revisitada pela jurisprudência na pós-modernidade; reconstruindo a temática do dano e da tutela de urgência, para ficarmos apenas em exemplos iniciais” (ARONNE: 2006, p. 23).

Nesse diapasão, percebe-se na atuação do Legislativo e do STF, no caso acima exposto, desvios causais probabilísticos, ora assumindo um entendimento, ora adotando outro, igualmente plausíveis e coerentes com o sistema jurídico. Tanto o entendimento sumulado, quanto o adotado pela Corte com a revogação da Súmula eram interpretações possíveis. Interessante, todavia, é o confronto entre os dois poderes. Subjacente à atuação de cada um deles, jaz a função de interpretar as normas constitucionais e dar-lhes efetividade.

O princípio da harmonia entre os poderes ganha outro significado no paradigma da teoria do caos. Como afirma Stewart (1991, s/p), “os matemáticos estão começando a ver a ordem e o caos como duas manifestações distintas de um determinismo subjacente. E nenhum deles existe isoladamente. O sistema típico pode existir numa variedade de estados, alguns ordenados, outros caóticos. Assim como a harmonia e a dissonância se combinam na beleza musical, assim a ordem e o caos se combinam na beleza matemática”.

Em textos futuros voltarei a essa perspectiva analisando outros casos concretos, até mesmo o procedimento do impeachment pode ser repensado nesse paradigma. Em uma ciência que comporta descrições de universos com 11 dimensões, é inimaginável porque o Direito continue com uma representação bidimensional, tratando suas questões como políticas ou jurídicas. Mas isso já é tema para outro texto.


Notas e Referências:

[1] “A interpretação seja histórica, literal, teleológica, doutrinária, sociológica, gramatical, integrativa, até a conforme a Constituição, constituem momentos pelos quais passa o operador no curso de uma interpretação necessariamente sistemática do Direito. Interpretação no sentido verticalizado, hierarquizando regras, princípios e valores, colmatando lacunas, evitando conflitos e resolvendo antinomias, na busca da coerência material. Toda interpretação do Direito é assim uma interpretação constitucional, em algum sentido” (ARONNE: 2006, p. 45).

[2] “Hoje, uma década depois, o caos se tornou uma abreviatura para um movimento que cresce rapidamente e que está reformulando a estrutura do sistema científico. Conferências e publicações sobre o caos são numerosas. (…) Agora que a ciência está atenta, o caos parece estar por toda parte. (…) O caos rompe as fronteiras que separam as disciplinas científicas. Por ser uma ciência da natureza global dos sistemas, reuniu pensadores de campos que estavam muito separados. (…) O caos suscita problemas que desafiam os modos de trabalhos aceitos na ciência. Vale-se, e com muita ênfase, do comportamento universal da complexidade.” (GLEICK: 1989, p. 4-5).

[3] “As normas, grosso modo, operam como gargalos à conformação concreta dos valores, fornecendo bitolas de variável densidade, ao discurso. Limites ao intérprete, com mecanismos de auto-sustentação no sistema jurídico, concretizados pelos instrumentos processuais recursais e na composição colegiada das respectivas cortes superiores. Um sistema, em escala macro, previsível, porém nada determinístico, como se colhe da jurisprudência. Dinâmico e instável. Um sistema caótico. Indeterminado, por vezes, em certos recortes de microescala. Um sistema muito mais probabilístico do que fundado por certezas de resultado, cuja eficácia, em muitos sentidos, também é variável. Paradoxalmente, profundamente conservador” (ARONNE: 2006, p. 29).

[4] “O Direito guarda fractalidade. Possui uma plástica apta a moldar-se ao caso concreto, até o limite de sua resistência axiológica, de sua torção. Isso refuta as simplificações da teoria tradicional, visíveis em toda a ciência moderna. Variando a lide, poderá variar o sentido da norma incidente, pois varia todo o sistema em sua dinâmica de unidade axiológica, garantidora de coerência material, evitando a entropia” (ARONNE: 2006, p. 34).

ARONNE, Ricardo. Direito civil-constitucional e teoria do caos: estudos preliminares. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2006.

BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.797/DF. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acresceu os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal. Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU Brasília, 19 de dez. 2006, pp. 37.

GLEICK, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.

SANTOS, Paulo Junior Trindade dos; MOZETIC, Vinícius Almada. Spock: o juiz vulcano na construção da verdade. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/spok-o-juiz-vulcano-na-construcao-da-verdade-por-paulo-junior-trindade-dos-santos-e-vinicius-almada-mozetic/. Acessado em: 14/05/2016.

STEWART, Ian. Será que Deus joga dados?: a nova matemática do caos. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

TRIBE, Laurence H. The curvature of constitutional space: what lawyers can learn from modern physics. Harvard Law Review: The Harvard Law Review Association, November 1989.


Igor Domingos Altíssimo. . Igor Domingos do Altíssimo é acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário de Sete Lagoas, cursando o sexto período. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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