Por Gisela Maria Bester - 01/01/2016
Este artigo é breve e entusiasta. É uma saudação à abertura do nosso Novo Ano gregoriano, momento de renovar esperanças, de repactuar compromissos, de reafirmar a confiança, de enfileirar sonhos. Nesse clima, procuro nele trazer a leveza de uma ode aos ditos “bons” textos constitucionais, às Constituições “felizes”. É este, também, um dos desideratos da Coluna Levando a Constituição a Sério.
Se há um livro de que gosto muito é Happy Constitution. Bartolomé Clavero fê-lo para homenagear o que se entende por Constituição inglesa. Uma Constituição histórica, que marca a inauguração do tempo do constitucionalismo moderno, não importando que não seja exatamente um texto constitucional nos padrões da fórmula posta um século mais tarde pelo artigo 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, firmada em 1789, na França da efervescência revolucionária. A obra foi lançada em 1997 e dela sempre extraio lições preciosas sobre história e formação linguística da cultura constitucional, sobre a história constitucional em si dos direitos como liberdade (rigth), em diferenciação de direitos como ordenamento (Law) e de sua efetivação enquanto direitos de justiça, o alcance de suas imediatas incidências e suas correspondentes garantias institucionais. Clavero trabalha, como pano de fundo de sua linda e profunda obra, o sentido de, e a aspiração ao, “império da Constituição”, a dar-se pelo modelo de direitos absolutos do british men – cuja tutela é feita pela interpretação realizada em sede jurisdicional –, mas especialmente pela via da irrenunciável força do princípio democrático, como expressão da soberania popular nos moldes afirmados na França, condição única de possibilidade de um tal “império”. É que o próprio princípio democrático, em regra, e por definição, funda as Constituições hoje vigentes, ao mesmo tempo em que, conforme afirma Maurizio Fioravanti (1998, p. 407-408) em resenha que fez ao livro do autor espanhol, é o resultado puro e simples da interpretação da Constituição feita pelos juízes. Estou, pelos limites desta Coluna, constrita a uma síntese extrema da importante obra de Clavero; trata ela de grandes temas, impossíveis de serem discutidos aqui, ficando aos leitores e às leitoras a recomendação de sua detida consulta. Pode-se lembrar, contudo, que a Revolução Francesa, com efeito, transmitiu a ideia, “forte e temível”, de uma comunidade política (povo ou nação) capaz de, pela Constituição, decidir o seu próprio futuro.
Pois bem, sobre a noção de Constituição feliz, afortunada, tem-se que, dentre todos os documentos ingleses de status constitucional, o Bill of Rights, de 1689, foi o mais importante, por ter iniciado a Monarquia Constitucional na Inglaterra, significando que com a supremacia do Parlamento aquela estaria submetida à soberania popular. A este respeito, assim escrevemos em nosso “curso” de Direito Constitucional:
“À Revolução de 1688 se credita o nascimento propriamente dito do próprio Parlamentarismo e o Bill of Rights permanece até hoje, enquanto lei fundamental do reino, como um dos mais importantes textos constitucionais da Inglaterra. Aliás, pelos antecedentes medievais em torno da Magna Cartha e por esse moderno Bill diz-se que o ´constitucionalismo é um invento britânico, ou mais concretamente inglês´, como afirma o autor espanhol Bartolomé Clavero (1997, p. 9), e se lhe teve por feliz desde muito cedo. Já no século XVIII transcendia a notícia de que uma ilha guardava o apreciado tesouro da Happy Constitution: da Constituição afortunada! A essa Constituição, primogênita e prolífera, se dizia, com efeito, ´Feliz Constituição´, eis que uma sociedade patriarcal e imperialista havia produzido os elementos daquela felicidade: basicamente o indivíduo como sujeito de direitos de liberdade e o jurado como instituição de justiça entre iguais, ainda que o sujeito da igualdade era o varão proprietário europeu. Mas o que importa notar é que a felicidade inglesa se prestou à exportação, porque foi lá que se formou e de lá procede o constitucionalismo como um modo de conceber e praticar a convivência humana. Apenas para darmos um exemplo, à formulação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu foram fundamentais os esboços disso antes feitos por Locke e por Brolingbroke, tendo por ponto de partida a experiência constitucional inglesa, bem como os estudos diretos do autor francês sobre a própria ´Constituição inglesa´”. (BESTER, 2005, p. 46-47).
Quanto ao Brasil, este é o ano em que a Constituição Federal de 1988 completará seus 28 anos. Trata-se de uma jovem adulta encaminhando-se para a maturidade hermenêutica dos que, por dever, aplicam-na. Neste percurso, experimentos interpretativos, com equívocos e com acertos, com avanços e com retrocessos, foram perpetrados em seus primeiros 27 anos de vida. Atrasos (delays) comprometedores da efetividade constitucional também se verificaram, evidenciando inclusive falta de coragem hermenêutica para colocar em prática muito do que o inovador texto constitucional trazia no papel, sobretudo em termos de direitos fundamentais. Ocorre que estamos em um sistema de fechamento do ordenamento jurídico cuja cimeira é um tribunal composto por apenas onze pessoas, de assunção altamente política e sem um adequado rodízio temporal nos postos, onde o monopólio da interpretação constitucional concentra, ao mesmo tempo, muito poder, que, além do jurídico, passa a ser também econômico, com reflexos no campo político, stricto e lato sensu. Dito de maneira mais rasa, temos, ao fim e ao cabo, algo que já sabemos: a aproximação ao “governo de juízes”, em um “império do Direito” (Dworkin). Há mesmo um monopólio jurisdicional derradeiro no fazer e no resultado da interpretação constitucional. Porém, isto não impede que os eventuais tropeços hermenêuticos – genericamente acima listados – sejam percebidos pelos demais intérpretes, com formação técnico-jurídica e até pelos que não a possuem, ou seja, pelo todo que forma a “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” (Häberle). Nada de concretamente imediato se pode fazer diante da sensação ou da “certeza” de que houve um engano no processo de interpretação operado naquele tribunal máximo, uma vez que não há a quem se recorrer do que diga ele que a Constituição seja; contudo, que se sabe, se sabe. Não sei se isto é um consolo, ou um reprodutor de angústias e de incertezas; redutor de expectativas – para usar um termo da teoria dos sistemas –, de forma similar para todos, não o é, certamente. O que sei é que império do Direito, com governo de juízes, é diverso do já referido império da Constituição, a partir de uma adequada e fiel interpretação jurisdicional.
Nessa concentração do controle da constitucionalidade, a última palavra é, pois, na arquitetura organizacional brasileira, dos onze seres humanos que centralizam esta, entre outras competências, no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Cercados de assessores altamente qualificados e competentes, nem assim estão livres de cometerem alguns equívocos nas leituras e nas interpretações constitucionais que fazem. É que, como não poderia deixar de ser, cada um traz consigo, na qualidade de intérprete máximo da Constituição, as suas pré-compreensões, conforme a clássica lição de Martin Heidegger (2002). E elas falam alto, ressoam, povoam a literalidade dos textos e ultrapassam o sentido das normas. O Dasein (“ser-aí no mundo” como visão heideggeriana do ser humano, cuja identidade é a própria história, em processo contínuo de construção) de cada um impregna o olhar que se dirige aos textos de normas jurídicas. Trata-se de uma espécie de contaminação prévia, positiva ou negativa, diante dos conteúdos trazidos, na reflexão ora feita, pelo texto constitucional (lembrando, sempre, com os grandes teóricos, que texto não se confunde com norma, ainda que texto seja fundamental para a busca de sentido, para a identificação do que venha a ser “norma”, na tarefa dos hermeneutas). Ser (humano) em processo (enquanto história que está acontecendo) é inescapável, nesta visão. Porém, e talvez justamente por isso, o ideal seria que o sujeito-intérprete não contaminasse de modo definitivo o processo interpretativo com suas pré-compreensões idiossincráticas, isto é, com pré-juízos individuais, pois estes, embora façam parte de seu ser e estar no mundo, em seu “mundar” deveriam ser, como bagagens prévias, depuradas, no que se chama de giros havidos nos círculos hermenêuticos, de modo a que, de giro em giro, e na circularidade do processo, os resultados das interpretações chegassem o mais proximamente possível da adequada fidelidade constitucional, enquanto compreensões construídas por constantes aprimoramentos. Sabemos que não é assim que, regra geral, as coisas funcionam. Porém, sendo o Direito uma Ciência essencialmente normativa, e mais, sendo a nossa Constituição do tipo “aberta”, como pode este texto, esta autora, ou qualquer outro hermeneuta, dizer que há equívocos no resultado do processo de interpretação? Simples, os equívocos também nem sempre são uma certeza. Eles próprios só são perceptíveis a partir de outras pré-compreensões, diversas daquelas dominantes, e, como evidências, são – ou devem ser – frutos de uma leitura o mais fiel possível ao texto constitucional.
A fidelidade constitucional, portanto, é o grande princípio instrumental para a identificação de equívocos na realização da hermenêutica jurídico-constitucional. Estes, algumas vezes são mais facilmente detectáveis; noutras, requerem doses de refinamento para a sua percepção, pois podem estar ocultos nas inteligentes sutilezas do labor dos intérpretes principais. Um rol explicativo de exemplos de equívocos tais, denotadores de falta de vontade de Constituição por parte do Supremo Tribunal Federal, nos primeiros 16 anos do texto constitucional brasileiro de 1988, pode ser analisado em artigo científico que escrevemos para obra em homenagem ao constitucionalista Paulo Bonavides (BESTER, 2005, p. 338-356). Em tal livro coletivo levantamos casos nos quais, do nosso ponto de vista, a partir dos princípios da fidelidade constitucional e da força normativa da Constituição, concluímos ter havido mais “vontade de poder” do que “vontade de Constituição” (Hesse), redundando em prejuízos à efetivação de direitos fundamentais.
No entanto, houve também muitos acertos nessa trajetória hermenêutica, que deram muita vida ao texto constitucional de 1988, e, assim, conferiram também muita vida, com maior qualidade e mais dignidade, às pessoas. Quanto a isto, pode-se dizer que também estamos diante de uma Constituição “feliz”. Há fortunas que esta trouxe já em seu texto original; há aquelas que o exercício hermenêutico lhe fixou como sentido adequadamente identificado (ou “adicionado”) pelos seus intérpretes.
Assim, neste clima de homenagem aos felizes acertos do nosso texto constitucional, proponho-lhes um exercício reflexivo simples, mas de grande significado, principalmente nesta data, o primeiro dia de um novo ano: se pudéssemos escolher um só bem, que fosse o mais precioso de todos entre aqueles protegidos pela Constituição, qual seria? A vida! Até a dignidade, princípio supremo, só existe como qualificativo da vida. Vida nossa, vida alheia, vida de todos os humanos, dos animais, de todos os seres das comunidades bióticas e abióticas que habitam o Planeta Terra. Até o que se protege depois da morte, enquanto nome, honra, memória, esquecimento, sossego etc., o é feito em razão da vida que houve um dia. Até os nascituros, quando protegidos, o são em função da vida que a um só tempo já o é e ainda virá a ser, quando concretamente encarnar na Terra. Portanto, Feliz vida! Feliz 2016! Feliz Constituição!!
Notas e Referências:
BESTER, Gisela Maria. Dezesseis anos de Constituição Federal, STF e interpretação retrospectiva: prejuízos aos direitos fundamentais pela falta de vontade de Constituição. In: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes; MORAES; Filomeno. Direito Constitucional contemporâneo - Estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 333-359.
______. Direito Constitucional. V. 1. Fundamentos Teóricos. Barueri, SP: 2005.
CLAVERO, Bartolomé. Happy Constitution. Cultura y lengua constitucionales. Madrid: Trotta, 1997.
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. 2. ed. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. Freedom ́s Law. The Moral Reading of the American Constitution. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1996.
______. Uma questão de princípio. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. 11. impressão. Cambridge: Harvard University Press, 1995.
FIORAVANTI, Maurizio. Letture. BARTOLOMÉ CLAVERO, Happy Constitution. Cultura y lengua constitucionales, Madrid, Editorial Trotta, 1997. Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 27, Milano, Giuffrè, p. 405-408, 1998.
HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Reimpressão. Porto Alegre: SAFE, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1991.
Gisela Maria Bester é Professora de Direito Constitucional. Colaboradora convidada no Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e no Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestre (UFSC), Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) e Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Integrou o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT/CEP), e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça. Consultora da CAPES. Pesquisadora do CNPq. Advogada constitucionalista. Diretora Geral da ESA-TO (Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Tocantins). Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB TO. Integrante Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Professora Titular do PPGD da UNOESC.
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