Há vocação do NCPP como espaço de solução de conflitos sociais? – Por Fauzi Hassan Choukr

16/09/2017

A tomada de posição do NCPP quanto ao seu papel político (ver aqui o artigo anterior) enfatizou o potencial continuísmo do modelo até agora existente, reforçando seu viés de aplicador da norma penal-material num modelo retribucionista de processo amparado fortemente em determinada concepção da finalidade da própria pena.[1]

Há de ser explorado, portanto, o quanto se pode avançar em mecanismos que impliquem a abordagem substancial do conflito social propiciando a interação dos envolvidos em atuação que traduzam saídas alternativas ao processo bem como soluções alternativas no processo.

A alternativa ao processo penal como instrumento de solução substancial de conflitos sociais é paradoxalmente mais aceito na apuração das maciças agressões a direitos fundamentais do que no cotidiano da persecução por condutas criminais que se poderiam denominar de ordinárias. É, pois, fortemente empregado na denominada “justiça de transição” mais que no cotidiano forense da normalidade do Estado de Direito.

E naquele campo ocupa especial legitimidade a forma restaurativa porquanto “no son buenos los juicios retributivos de “vencedores” porque amenazan los efectos sociológicos del estándar de prueba. Desde esta perspectiva, entonces, el proceso penal no sólo cumple la función de ser una medición de la real operatividad de los derechos fundamentales, sino también una herramienta de validez intersubjetiva del sistema de justicia penal en su conjunto.”[2]

Por isso não se fala aqui da participação popular na administração da justiça penal inserida que é no modelo consolidado de construção de uma epistemologia fática a alcançar um resultado decisório mas, sim, do envolvimento dos protagonistas sociais na própria metodologia de solução do conflito social desencadeado pela norma material violada.

O modelo retribucionista consolidado – e repetido exclusivamente nos trabalhos do NCPP – apresenta como uma das suas maiores características um tipo de disputa entre “integrantes” (insiders) do aparato formal de justiça criminal e os intervenientes “externos” (outsiders) a ele na linguagem de BIBAS[3] numa constante tensão entre o mero funcionamento operacional e a legitimidade do modelo persecutório.

Se a polarização entre esses modelos é uma nota característica, sua sinergia também é cada vez mais destacada[4] com a percepção de que os fins próprios de uma justiça retributiva podem ser alcançados pelas vias da justiça restaurativa. E, além disso, são progressivamente destacadas as aplicações de métodos próprios da superação do conflito social, inicialmente pensados para as vítimas, que agora se projetam igualmente para os que infringem a norma material de modo a auxiliá-los a superar, inclusive, a possibilidade de reincidência.[5]

Certo, a justiça restaurativa – assim como o funcionamento da justiça de transição – clama por maior solidez de apreciação de seus resultados concretos[6]. Nada obstante, a afirmação da fragilização epistêmica na forma anteriormente destacada é funcionalmente correta e não se restringe, apenas, aos modelos persecutórios posteriores a regimes de exceção ao estado de direito e consequente reconstrução democrática; serve, igualmente, a modelos em democracias incipientes ou fragilizadas que optam politicamente pela via preponderante do “crime control model” ou “controle de criminalidade” na já mencionada linguagem de Packer.

Aqui, pois, a necessidade de alinhar-se tudo quanto foi dito com o NCPP e a construção cultural do processo penal brasileiro. Ao insistir-se na estrutura exclusivamente retributiva de funcionamento da persecução penal pouco se avança na solução substancial de conflitos, ainda que se queira selecionar entre as condutas criminalizáveis apenas algumas[7] para que houvesse uma mínima convivência de modelos.

Ao reforçar a exclusividade do modelo consolidado mantém-se um itinerário epistêmico cuja crítica central, nos trabalhos do NCPP, residiu na necessária distancia do julgador da condição de protagonista no processo e do processo, especialmente no campo probatório, e com isso se consolidava uma determinada visão do conceito de acusatoriedade.

Não parece ter sido o suficiente nem para firmar um conteúdo consensual mínimo sobre o que é o modelo acusatório, tampouco para afastar definitivamente argumentos que, comparando o funcionamento interno dos modelos polarizados (inquisitivo x acusatório) ainda simpatizam com o primeiro como o que melhor define os fins do processo no campo epistêmico como se verá na sequência.


Notas e Referências:

[1] Nada obstante a exposição de motivos do então anteprojeto enaltecer a existência de “um ganho sistematicamente reclamado para o sistema: o esvaziamento de demandas de menor repercussão ou de menores danos, por meio de procedimentos de natureza restaurativa, permitirá uma maior eficiência na repressão da criminalidade de maior envergadura, cujos padrões de organização e de lesividade estão a exigir maiores esforços na persecução penal” (BRASIL. Senado. Anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília: Senado Federal, 2009. Disponível em: < http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/58503.pdf>. Acesso em 31 jan. 2011), foi apenas com a relatoria parcial elaborada pelo Deputado Paulo Teixeira (PT-SP) que se atentou para a discussão da justiça restaurativa na reforma: “Além disso, acrescentei a análise referente à justiça restaurativa no presente relatório parcial, tendo em vista que não consta do projeto de lei em análise nada sobre a matéria.” (BRASIL. Câmara. COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A PROFERIR PARECER AO PROJETO DE LEI Nº 8045, DE 2010, DO SENADO FEDERAL, QUE TRATA DO "CÓDIGO DE PROCESSO PENAL" (REVOGA O DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 1941. ALTERA OS DECRETOS-LEI Nº 2.848, DE 1940; 1.002, DE 1969; AS LEIS Nº 4.898, DE 1965, 7.210, DE 1984; 8.038, DE 1990; 9.099, DE 1995; 9.279, DE 1996; 9.609, DE 1998; 11.340, DE 2006; 11.343, DE 2006), E APENSADOS RELATÓRIO PARCIAL. 4ª RELATORIA-PARCIAL: DOS RECURSOS EM GERAL, DISPOSIÇÕES GERAIS SOBRE AS MEDIDAS CAUTELARES E DAS MEDIDAS CAUTELARES PESSOAIS (ARTS. 458 A 611). Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1567261&filename=PRP+1+PL804510+%3D%3E+PL+8045/2010 )

[2] SANCHEZ, Juan Sebastian Vera. Cuatro Mitos Sobre La Justicia Retributiva Como Mecanismo de Justicia Transicional. Am. U. Int'l L. Rev., v. 32, p. 469, 2016.

[3] BIBAS, Stephanos. Transparency and participation in criminal procedure. NYUL rev., v. 81, p. 911, 2006.

[4] A ver, por exemplo, DANCIG-ROSENBERG, Hadar; GAL, Tali. Restorative criminal justice. CARDOZO L. REV. 2313, 2324—39 (2013): “Restorative justice, however, can in fact achieve the punitive

goals in addition to its unique consequentialist objectives...” (p. 112)

[5] Ver, dentre outros, Gal, Tali and Wexler, David B., Synergizing Therapeutic Jurisprudence and Positive Criminology (March 23, 2015). Natti Ronel & Dana Segev (Eds.), Positive Criminology, pp. 85-97 (2015). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=2287424 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2287424

[6] Ou, como apontado, “Although there is no shortage of literature critiquing restorative justice as a concept, even its most evangelical proponentes accept that its precise meaning remains unclear. In short, it is difficult to know what qualifies as a restorative process, and what does not”. CLAMP, Kerry; DOAK, Jonathan. More than words: Restorative justice concepts in transitional justice settings. International Criminal Law Review, v. 12, n. 3, p. 339-360, 2012, p. 340

[7] De difícil aceitação em situações de violência doméstica, por exemplo, como demonstra, entre outros estudos, STUBBS, Julie. Beyond apology? Domestic violence and critical questions for restorative justice. Criminology & Criminal Justice, v. 7, n. 2, p. 169-187, 2007, no cenário internacional. No Brasil há inúmeras manifestações técnicas favoráveis à restauração como método de solução desse tipo de conflito:  PELLENZ, Mayara; BACEGA DEBAS, Ana Cristina. Justiça Restaurativa e resolução dos conflitos familiares. Revista Direito e Liberdade, v. 17, n. 1, p. 231-250, 2015.


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