Há, de fato, um novo processo penal a caminho? Primeiras linhas sobre o PL 8045/2010 (PLS 165/09) – Por Fauzi Hassan Choukr

19/08/2017

A partir de hoje início, com muita satisfação, uma nova etapa de relacionamento com a Editora Empório do Direito e com a comunidade jurídica que confere atenção aos trabalhos que venho publicando ao longo dos últimos 25 anos: a coluna “Diálogos com o novo processo penal”.

A intenção principal, no primeiro momento, é abrir um canal de discussão aproveitando o desenrolar do processo legislativo do PL 8405/2010 como desdobramento do PLS 165/09 que visa instituir o novo Código de Processo Penal (doravante NCPP) para analisar até que ponto pode-se falar não apenas de uma “reforma” do modelo legal vigente mas, sobretudo, da sua necessária refundação quer em suas bases normativas, quer nas culturais para fazer com esse “novo processo” corresponda a uma construção política condizente com o Estado de Direto[1].

Refundar o marco normativo cultural exige o emprego e o domínio de instrumentos e conceitos que, se não são certamente desconhecidos na literatura nacional e no processo legislativo das reformas pontais que marcaram o cenário brasileiro desde 1988, têm sido marcantemente subutilizados ou, quando empregados, não raras vezes o foram de maneira distorcida acarretando o oposto do quanto deles se buscava.

O primeiro instrumento metodológico indispensável na tarefa de refundação é o comparatismo. Não com a ingênua intenção de buscar soluções externas a problemas locais, esta que parece ser a crítica mais frequente – quase de senso comum – quando se emprega esse método para conhecer os limites do próprio direito interno[2], crítica que caminha ao lado de algum ceticismo acadêmico quanto à sua concreta utilidade e faz com que não seja uma unanimidade enquanto ferramenta de compreensão do Direito[3].

Neste ponto, contudo, cabe acompanhar a análise de Delmas-Marty quando aponta que o sistema penal é campo fértil para a harmonização[4] fruto da crescente universalização dos direitos do Homem em concomitância com o aprofundamento da globalização econômica.

Ademais, segundo a mesma autora, “Mencionar os estudos comparativos é exprimir uma preferência por uma internacionalização pluralista integrando a diversidade dos sistemas. Mas ela implicaria, para ser exitosa, outra coisa que apenas sua justaposição. É necessário dar atenção às diferenças e encontrar uma gramática comum que permita, seja a realização da compatibilidade (harmonização), seja uma verdadeira fusão (hibridismo).”[5]

E, a esse comparativismo contemporâneo atado à universalização dos direitos humanos destaca-se o segundo instrumento indispensável para construção de um arcabouço teórico que seja efetivamente apto a refundar o marco normativo-cultural do processo penal brasileiro: o internacionalismo jurídico.

Internacionalismo que consiste na necessária observância do marco político internacional ao qual o Brasil adere e, pelo qual, inúmeras alterações legislativas aconteceram ao longo dos últimos anos mas, também, ao atendimento da cultura proveniente da proteção internacional de direitos humanos quer nos seu marco global, quer no regional e mesmo que timidamente no caso do cone sul, de seu sistema comunitário. E, no aspecto cultural, o papel de controle normativo (convencionalidade) desempenhado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de forma progressiva[6] afigura-se indispensável para compreender a superação dos modelos contrários ao cenário internacional.

Malgrado a imensa dificuldade de reduzir-se as experiências comparadas de refundação de estruturas processuais penais (como, na América Latina, o Chile e, no cenário europeu, a Itália[7]) -  e mesmo aquelas reformistas - a fórmulas restritas, pode-se indicar desde já que o comparatismo e o internacionalismo apontados servem como instrumentos aptos à superação das dificuldades políticas e técnicas que inevitavelmente se farão presentes diante da óbvia preservação do “velho” perante o “novo”[8] na caminhada, assim como para entender de forma mais afinada o papel da conversão cultural desses modelos legais a partir da construção do saber que os envolve, tanto no plano acadêmico quanto no plano prático dos intervenientes cotidianos do sistema penal.

Essa tomada de postura metodológica põe em evidência, sobretudo, o papel da Academia. Vogler salienta ao observar os entraves das reformas legais operadas nos modelos processuais[9] que “parte da responsabilidade por este estado de coisas deve ser atribuída ao fracasso histórico da comunidade acadêmica em prover orientações consistentes” no desenrolar das reformas penais, concluindo o autor que “em contraste com o extenso e inovador trabalho no campo dos direitos humanos, direito penal e criminologia, o campo processual penal é largamente subdesenvolvido e continua a ser dominado por estéreis e ateoréticos  debates sobre “sistemas de justiça””.[10]

Nada obstante não compartilharmos a afirmação sobre a esterilidade do debate quanto aos “sistemas de justiça”[11], o autor britânico aponta para a necessária presença da Academia no debate de refundação processual, da mesma maneira que, no passado, foram os acadêmicos os responsáveis pela estruturação de um modelo que se tornaria dominante por séculos e ainda vivo em quase plenitude: o inquisitivo[12].

É exatamente por esse ponto que começará a série de textos que comporão, no seu conjunto, a análise deste particular momento do processo penal brasileiro: o papel do saber processual penal na refundação. E, por “saber” não se compreende, apenas, o trabalho dos que se encontram envolvidos na Academia no seu sentido institucionalizado mas, também, dos quantos, com suas intervenções, constroem a realidade operativa do sistema processual penal, pois entre a construção formal de uma determinada estrutura e sua habilitação prática deve existir um liame consistente a fim de que não se caia em outra vala comum da crítica superficial: a diferença entre a “teoria e a prática”.

No próximo texto, usando como instrumento metodológico o comparatismo e a internacionalização, será abordada uma questão político-técnica essencial: as discussões acerca das premissas de refundação do NCPP.


Notas e Referências:

[1] Por todos, o já histórico texto de Prado, Geraldo. O ódio irracional às garantias do processo, Salem e a “Santa Inquisição nas Minas”. http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/09/o-odio-irracional-as-garantias-do-processo-salem-e-santa-inquisicao-nas-minas/

[2] ESER, A.; “The importance of Comparative Legal Research for the Development of Criminal Science”, Nouvelles Études Pénales, 1998

[3] Para a crítica ver, entre outros, FRANKENBERG, Gunter. Critical comparisons: Re-thinking comparative law. Harv. Int'l. LJ, v. 26, p. 411, 1985.

[4] Entre outros textos ver Delmas-Marty, M., Pieth, M., Sieber, U., & Lelieur, J.. Les chemins de l'harmonisation pénale (p. 447). Société de législation comparée. 2008, especialmente pgs. 19 a 38.

[5] DELMAS-MARTY, Mireille. Le relatif et l'universel : Les forces imaginantes du droit. Seuil, 439 p., 2004. E completa a autora para afirmar que “Assim, pois, os estudos comparados conduzem à resistência, seja de modo radical pela rejeição de toda integração, seja de modo mais ameno, excluindo a unificação segundo regras uniformes, mas abrindo a via de uma harmonização em torno de princípios comuns aplicados com uma margem nacional de apreciação”

[6] Para essa evolução ver, entre outros, Laurence Burgorgue-Larsen, « Chronique d'une théorie en vogue en Amérique latine Décryptage du discours doctrinal sur le contrôle de conventionalité », Revue française de droit constitutionnel 2014/4 (n° 100), p. 831-863. Também, SALGADO PESANTES, Hernán. Justicia constitucional transnacional: el modelo de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Control de constitucionalidad vs. Control de convencionalidad. A. von Bogdandy, E. Ferrer Mac-Gregor, M. Morales Antoniazzi (coordinators), La justicia constitucional y su internacionalización.¿ Hacia un Ius Constitutionale Commune en América Latina, p. 469-495, 2010.

[7] Com limites, como se verá ao longo dos textos que comporão essa série de artigos.

[8] PIZZI, William T.; MARAFIOTI, Luca. The New Italian Code of Criminal Procedure: The Difficulties of Building an Adversarial Trial System on a Civil Law Foundation. Yale J. Int'l L., v. 17, p. 1, 1992: “The pervasive ethos of the inquisitorial system provided a climate hostile to adversarial reforms, which were either discarded or neutralized so as to fit within the civil law tradition”

[9] VOGLER, Richard. A world view of criminal justice. Routledge, 2016, p. 02. Tradução livre do autor

[10] VOGLER, op loc. Cit.

[11] Confronto de ideias que exemplifica a valia do comparatismo: no caso britânico pode ser dispensável essa abordagem sistêmica; no brasileiro, não conforme expusemos em CHOUKR, F. H.. Modelos processuais: uma discussão ainda necessária. Boletim Informativo IBRASPP, v. 01, p. 15-16, 2011.

[12] Cujo desenvolvimento teve como primeiro passo o “trabalho dos acadêmicos medievais que criaram um poderoso sistema de investigação e adjudicação que foi de imensa importância prática para as autoridades feudais e religiosas na incipiente Europa”. VOGLER, op. Cit. p. 20, tradução livre.


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