Golpe Vergonhoso passa na Câmara – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Emílio Peluso Neder Meyer, Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti

19/04/2016

No julgamento de quinta para sexta-feira passadas (dias 14 e 15.4.16), o STF fez uma importante afirmação, ratificando a tese da Advocacia-Geral da União, embora contraditoriamente não concedendo a medica cautelar ali pleiteada[1]. Disse que a decisão que deu início ao processo de impeachment da Presidente da República delimita seu objeto, o que significa que só pode(ria)m ser debatidos os temas relativos às chamadas “pedaladas fiscais” e aos decretos não-numerados de créditos extraordinários pela Câmara dos Deputados, no último domingo, e, agora, pelo Senado Federal.

Ocorre que referidos fatos são atípicos, ou seja, não constituem crimes de responsabilidade[2]. O crime em que tentam enquadrar as chamadas “pedaladas fiscais” (art. 10, 9, da Lei 1079/50) refere-se à conduta de realizar “operação de crédito” com outro ente federativo ou unidades da Administração Indireta destes. A uma, não há operação de crédito na conduta da Presidente da República – tanto que o TCU disse que se trata de conduta que, a seu ver, “se assemelha” a operações de crédito. “Se assemelhar” a algo é diferente de “ser” este algo. Trata-se de julgamento por analogia (por equivalência). Só que crimes de responsabilidade são crimes, conforme os precedentes que formaram a Súmula 722 do STF (ela diz que eles são de competência da União pelos precedentes que a geraram falarem que se trata de matéria penal) e é notório que não existe “crime por analogia”. Ainda que se discorde do STF e da Lei do Impeachment (que diz que se aplica a ela subsidiariamente o Código de Processo Penal, o que reforça o seu citado caráter penal), Direito Sancionatório não-penal (punições não-penais) também não admite(m) analogia – e, em um argumento normativista, o art. 85, par. único, da Constituição diz que a lei definirá os crimes de responsabilidade, donde obviamente nada além do por ela definido como tais pode ser assim considerado. Mas, caso se rasgue o Direito e a jurisprudência e se enquadre o inadimplemento ou atraso no pagamento de obrigações contratuais como “operações de crédito” (quando então qualquer conta atrasada, ou débito automático não pago a banco, ficando “no vermelho”, teria, por coerência, que ser assim considerada, o que seria um rematado absurdo), o crime é realizar operação de crédito com outro ente federativo ou entidades da Administração Indireta deste outro ente, não com banco público da própria União, neste caso. Logo, inexiste crime de responsabilidade aqui – e trata-se de uma questão de qualidade, não de quantidade, sendo irrelevante para saber se é ou não crime o suposto volume maior de valores da atual Presidente da República relativamente a seus antecessores (isso foi, aliás, recentemente afirmado também por Virgílio Afonso da Silva[3]).

Sobre os decretos não-numerados de créditos extraordinários, se eles eventualmente violaram a lei orçamentária num primeiro momento (art. 10, 4, 6 ou 10, e art. 11, 2, da Lei 1079/50), isso deixou de existir quando o Congresso Nacional aprovou o PLN n.º 5/2015 (gerando a Lei 13.199/15), que incluiu ditos créditos extraordinários na lei orçamentária. Esta, assim, os ratificou, donde, no mínimo por perda superveniente de objeto, não há que se falar em crime de responsabilidade também aqui – pois se ele se refere a violar a lei orçamentária e esta ratifica a conduta supostamente violadora de si, soa absurdo entender-se como ilícita a questão.

Por outro lado, chama a atenção a fala política de Miguel Reale Jr., em seu artigo de “Opinião”, publicado pela Folha de São Paulo, no dia 18.4.16 (“Chefe de UTI”)[4], quando afirma que Michel Temer terá que agir como um “médico” para aplicar “remédios amargos” para recuperar a economia, além de comemorar o que chama de início do fim de uma “era nefasta” do país. Reale Jr sequer esconde o viés político que claramente inspira o pedido de impeachment por ele coassinado – tanto que tais pessoas não fizeram pedidos de impeachment contra os diversos governadores que também praticaram as condutas que eles, incorretamente, consideram “crimes de responsabilidade” – tanto que não pediram o de Temer, que também assinou decreto não-numerado, da mesma forma que a Presidente... Isso diz muito sobre a real motivação deste pedido de impeachment da Presidente...

Enfim, o que estamos presenciando atualmente é um verdadeiro golpe de Estado muito mal disfarçado de “impeachment”. Não só pelas vergonhosas falas dos(as) Deputados(as) pró-impeachment, cuja esmagadora maioria tratou de inúmeros temas políticos e não daquilo que o STF determinou como obrigação de ser mencionado (crimes de responsabilidade). Em geral agradeciam família, amigos ou Deus (!) como fundamento exclusivo para seus votos. Sem falar o absurdo discurso lesa-Constituição de apologia ao Golpe de 1964 e a torturadores que ouvimos do Deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ)[5]... Mais um caso típico de privatização do público, uma vez que, no caso vale lembrar, o mandato não é privado e, logo, não pode ser exercido em nome de pessoas/crenças privadas, como mãe, filha/o, Deus etc. Há um grave problema de incompreensão do papel ali representado. Fosse um órgão judiciário e caberia uma arguição de nulidade da decisão por ser esta desprovida de fundamentos – já que a exigência de fundamentação não se satisfaz com dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa... Ainda que as questões objeto da denúncia fossem erroneamente usadas para se fundamentar, pelo menos o voto teria um verniz republicano. O que se viu ali, salvo poucas exceções, foi o menosprezo pelo Direito e pelo representado.

Impeachment não é sinônimo de “recall” nem de “voto de desconfiança” parlamentarista. É um julgamento jurídico-político, em que o jurídico configura condição indispensável ao político. É político porque mesmo presente crime de responsabilidade, é possível não decretar o impeachment por conveniência política. Mas a recíproca não é verdadeira: não se pode decretar impeachment sem crime de responsabilidade por mera conveniência política, mera crise econômica, política, moral etc. Isso seria voto de desconfiança parlamentarista: o resultado do Plebiscito de 1993, que rejeitou o Parlamentarismo, tem essa consequência: mesmo Governos impopulares e considerados “ineptos” não podem ser derrubados sem a existência, no mandato vigente, de crime (de responsabilidade ou comum, este julgado pelo STF). Daí estarmos vivenciando verdadeiro “golpe parlamentar”, como muitos já defenderam. Os fins não justificam meios ilegais e inconstitucionais: se este “impeachment” golpista passar e o STF vergonhosamente não o anular, a História registrará esse momento como a aceitação de um golpe de Estado, que muitos fundamentam na linha do Direito Penal do Inimigo (de fundamentar “impeachment” sem crime de responsabilidade por não considerarem integrantes do Partido do atual Governo Federal merecedores/as de proteções legais, ou considerarem estas incômodas a um momento de crise político-econômica...). Logo, ao contrário do que disse Reale Jr., o Supremo pode e deve barrar este impeachment, por atipicidade das condutas imputadas à Presidente (ou seja, por elas não se configurarem como crimes de responsabilidade).


Notas e Referências:

[1] Cf. Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Emilio Peluso Neder Meyer, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti. Afinal, quem é o Guardião da Constituição? Supremo Tribunal Federal reconhece que relatório do impeachment ultrapassa seu objeto constitucional, mas lava as mãos ao indeferir a liminar nos MS 34.130 e 34.131. Disponível em http://emporiododireito.com.br/afinal-quem-e-o-guardiao/. E Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira. Breves notas às decisões do Supremo Tribunal Federal na longa sessão da noite de 14 para 15 de abril de 2016: para um exercício de patriotismo constitucional. Disponível em http://emporiododireito.com.br/breves-notas/.

[2] Para o que segue, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Emílio Peluso Neder Meyer, Diogo Bacha e Silva, Bernardo Gonçalves Fernandes, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiati. Para defender a Constituição e a lei, por vezes cabe dizer o óbvio: crimes de responsabilidade são crimes. E não há crimes. Em resposta a Pedro Canário. Disponível em http://emporiododireito.com.br/crimes-de-responsabilidade-sao-crimes-em-resposta-a-pedro-canario/. Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti. Afinal, a quem esta OAB representa? O pedido de impeachment pela OAB e a tentativa de golpe de Estado em curso no Brasil. Disponível em http://emporiododireito.com.br/afinal-a-quem-esta-oab-representa/. E Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Paulo Roberto Iotti Vecchiatti. Supremo Tribunal Federal deve barrar ou nulificar impeachment sem crime de responsabilidade. Disponível em http://emporiododireito.com.br/category/constituicao-e-democracia/page/2/.

[3] Entrevista disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/04/1761906-julgamento-politico-nao-e-vale-tudo-afirma-professor-de-direito-da-usp.shtml.

[4] Miguel Reale Jr. Chefe da UTI. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/04/1762235-chefe-da-uti.shtml.

[5] Sobre a manifestação do deputado Bolsonaro e sobre a personagem, o Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, a que se refere, cf. http://www.revistaforum.com.br/2016/04/17/bolsonaro-dedica-voto-ao-coronel-brilhante-ustra-torturador-da-ditadura/; http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/04/mulher-conta-o-que-viveu-nas-maos-do-cel-ustra-homenageado-por-bolsonaro.html; http://www.conjur.com.br/2014-set-15/nao-anistia-crimes-humanidade-parte e http://jota.uol.com.br/stj-confirma-decisao-que-reconheceu-ustra-torturador.


 

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