Golpe parlamentar ou tirania judicial?

23/09/2016

Por Thomas Bustamante – 23/09/2016

Cada vez mais estou convencido que o legislativo não é o maior dos problemas do Brasil. Apresentada semana passada de maneira desastrosa e recebida em tempo record, a denúncia contra Lula na Lava-Jato reforça uma suspeita de que não estamos vivendo, no Brasil, apenas um "golpe parlamentar" como tantos outros processos de impeachment inventados que encontramos por aí na América Latina. Creio que o momento é sintoma de um problema mais grave, cuja solução não se encontra no horizonte de uma normalidade institucional.

O impeachment da Presidenta Dilma Rousseff foi, sim, um golpe de estado. Há vários elementos que corroboram essa afirmação, merecendo recordar os seguintes: 1) violação à retroatividade da lei; 2) ausência de tipicidade estrita; 3) ausência de comprovação de autoria; 4) ausência de dolo específico; 5) extensão de tipo penal por analogia; 6) (na Câmara), violação ao art. 23 da lei 1059, com "fechamento de questão" pelos partidos políticos; 7) desvio de finalidade (impeachment instaurado para "estancar a sangria da lava-jato" (Jucá); 8) desvio de finalidade (na Câmara) do ato de recebimento da denúncia pelo Sr. Eduardo Cunha; 9) total ausência de autenticidade e responsabilidade do Parecer do Relator (Senador Anastasia), que em si mesmo constitui um ato de hipocrisia.

Se definirmos golpe como a "destituição ilegítima e um governo legitimamente constituído", então não há dúvida.

Mas o golpe na Presidenta Dilma Rousseff não é - assim imagino eu - o nosso maior problema. Tenho ouvido por aí que foi um "golpe parlamentar", desferido por um "congresso ilegítimo" e "corrupto", e que mais da metade desse congresso, nas duas casas, é composta por "ladrões" que estão com o "rabo preso" e com "problemas na Justiça". Talvez isso tudo seja verdade, mas na minha opinião esse ainda não seria o nosso maior problema. O problema não é, também, apenas o governo Temer, mesmo com o exército de "homens brancos ricos" que compõem os seus ministérios. Mesmo com a aliança estranha entre o PSDB de Aécio (uma elite política retrógrada derrotada em 4 eleições consecutivas e que não tem qualquer perspectiva de ganhar, ao menos de maneira democrática, uma eleição no futuro próximo) e o PMDB de Renan e Temer.

Há um problema muito mais grave e, insisto, muito mais difícil de solucionar. Esse problema se chama TIRANIA DO JUDICIÁRIO.

No mundo inteiro há uma expansão da "juristocracia" (uma categoria de Hirchl), mas aqui há algo mais grave. No resto do mundo o problema da juristocracia está limitado ao "ativismo judicial" e à crise de representatividade do poder legislativo. Já que o judiciário concentra toda a responsabilidade pelas decisões mais importantes (ao menos as decisões finais), o legislativo é na prática convidado a não se responsabilizar pelas questões mais importantes a serem decididas em uma democracia, como, por exemplo, a proteção de grupos vulneráveis e a garantia de direitos fundamentais. Essas matérias passam a ser assunto de juízes, e não mais de legisladores.

Aqui no Brasil, no entanto, esses problemas são exponencialmente maiores. Aqui o problema não é apenas a hipertrofia de uma corte constitucional. É muito mais sério. No âmbito da própria corte, o poder que cada juiz concentra é inigualável em qualquer país do mundo. Aqui cada Ministro pode, sozinho, suspender por anos a fio, sem qualquer consequência, uma lei devidamente aprovada pelo parlamento ou mesmo uma emenda à constituição. Há uma dose de arbítrio judicial e de autoritarismo que simplesmente não existe em qualquer país do mundo ocidentall. Temos todo tipo de instrumento para o autoritarismo judicial: súmulas, reclamações, cautelares, recursos repetitivos, além dos seus equivalentes funcionais no Ministério Público (recomendações, TACs, portarias, inquéritos civis etc.).

Não há nenhuma esfera da vida pública imune a esse tipo de autoritarismo cotidiano. O MP e o Judiciário se tornaram os grandes bastiões da moralidade na sociedade contemporânea. Nada escapa dos seus tentáculos. Isso passa por todos os setores do serviço público. Hoje mesmo conversei com uma pessoa com experiência em administração pública que me informou que nas secretarias de estado de saúde o Poder Executivo já não tem autonomia para decidir quais remédios ele pode dar aos pacientes de doenças graves. Os próprios funcionários da Saúde Pública preferem recomendar aos usuários que ingressem na justiça em busca de remédios que não estão na "lista do SUS". Os administradores têm medo de dar esses remédios mesmo quando estão convencidos de que os usuários têm direito a eles, e só se sentem seguros para fazê-lo depois que vem uma liminar (sempre monocrática) do Poder Judiciário.

Não nos iludamos, meus queridos, o maior problema do Brasil é que nós nos tornamos uma "República de Juristas", onde uma casta abominável da sociedade (os profissionais do direito) já não se contentam mais em exercer a sua especialidade de ser "servo" do poder. Pelo contrário, eles querem ser os grandes protagonistas do sistema político.

É nesse sentido que passamos a ver juízes pop-star, que utilizam o direito penal como programa de ação política e instrumento de governo, ditando unilateralmente os rumos da política nacional com uma prática instrumentalista e uma retórica fascista de "combate à corrupção" e defesa da "moral e dos bons costumes".

Cada vez mais são flexibilizadas garantias processuais como a presunção de inocência, a tipicidade estrita, o direito de responder o processo em liberdade, a exigência de prova inequívoca para condenação. Em seu lugar, recebemos a "delação premiada" como regra, sempre aplicada de maneira combinada com a "prisão provisória", mesmo quando não há qualquer risco para o processo. Penas, acusações, multas, ameaças de processo a familiares, ameaça de fechamento de empresas, indenizações, etc.; tudo isso é simplesmente NEGOCIADO de maneira livre, transformando o processo penal em um vexatório balcão de negócios para administrar a seletividade do processo penal.

Prisões provisórias, conduções coercitivas, vazamentos à imprensa, grampos em escritórios de advocacia, tudo isso é utilizado como uma espécie de instrumento de veiculação do terror contra grupos políticos específicos e identificados. Mesmo não desconhecendo da existência de mal-feitos em todos os setores da política nacional - incluindo-se, obviamente, partidos ditos "de esquerda" que reproduziram velhas práticas deploráveis de aparelhamento do Estado e financiamento eleitoral -, temos que nos posicionar, no entanto, contra essa perigosa porta aberta para o pensamento único e a criminalização de partidos políticos, movimentos sociais, vozes dissonantes (incluindo-se repórteres da mídia alternativa, intelectuais, líderes sindicais) e até professores (que ficam submetidos ao policiamento ideológico por meio de instrumentos como o projeto "escola sem partido").

O moralismo do Judiciário e do MP ganha contornos institucionais, materializando-se em projetos esdrúxulos como as "10 medidas contra a corrupção", que nada mais é do que um conjunto escandaloso de medidas que nada mais fazem do que atribuir uma discricionariedade ainda maior para os operadores do sistema penal. Nada mais fazem, numa palavra, do que enfraquecer as garantias do Estado de Direito que foram conquistadas com muita luta e que se aplicam não apenas para os agentes políticos, mas também (e principalmente) em favor do cidadão comum.

A denúncia contra Lula e a espetacularização do direito penal - não nos iludamos - é só um sintoma maior do monstro de sete cabeças em que se transformou o Judiciário.

O legislativo, ao aprovar o impeachment de Dilma Rousseff, foi apenas a mão que apertou o gatilho. Todo o resto desse golpe foi gestado no Judiciário. Vejamos:

1) A denominada "Era Cunha", com todos os abusos que este parlamentar praticou enquanto presidente da Câmara, foi estimulada e viabilizada precisamente pelo Judiciário. Foi a denominada "doutrina das questões interna corporis" que lhe permitiu manipular, sozinho, todos os procedimentos e aterrorizar a Câmara dos deputados. Foi a aplicação dessa doutrina que permitiu a ele vincular o julgamento do seu próprio processo de cassação ao processo de impeachment da presidenta, retardando infinitamente o julgamento do mérito do seu processo. Foi a doutrina das questões interna corporis que permitiu, também, a manipulação descarada do processo legislativo, incluindo-se emendas constitucionais;

2) Na primeira instância, o que dizer então da "condução forçada de Lula", que só não se transformou em prisão porque houve resistência da população e dos vazamentos de gravações de duvidosa legalidade feitos pelo juiz Sérgio Moro? O que dizer do pedido de "desculpas" que ele apresentou depois que abriu as porteiras do impeachment com essa gravação estapafúrdia?

3) E o que dizer da decisão do Min. Gilmar Mendes sobre a suspensão da nomeação do Lula como Ministro-Chefe da Casa Civil? Há algum comentário pertinente nessa matéria? Imagine se pega esse argumento de que você não pode nomear uma pessoa só porque supostamente ela estaria "investigada" pela polícia federal?

4) E as acusações a Dilma de "obstrução de justiça"?

5) O que dizer da "campanha" pela Lava-Jato que os integrantes do MP estiveram fazendo todos esses meses nas igrejas evangélicas, rádios populares, imprensa de direita e até mesmo em espetáculos deprimentes como a "Balada contra a corrupção" em uma área nobre da cidade de São Paulo?

6) O que dizer da própria declaração explícita do Jucá, de que o impeachment é um meio para "estancar a sangria da Lava-Jato"? Não estariam os parlamentares pressionados por essa nova inquisição que passa por cima de princípios basilares como o "juiz natural", a imparcialidade, a presunção de inocência e as garantias processuais? Não seria o próprio impeachment um produto desse terror que se instaurou pela via das próprias instituições que deveriam garantir a predominância do Estado de Direito?

Cada vez mais me surpreende o erro político da Constituição de 1988 em dar tanto poder ao Judiciário.

Nenhum dos limites que essa constituição pretendeu traçar foi respeitado. De repente, ao mesmo tempo em que bradam contra a corrupção e pretendem desferir os seus argumentos moralistas para sepultar de vez a classe política, os agentes públicos "imparciais", "apartidários", "eruditos", "aprovados em concurso público" etc enchem os seus bolsos com parcelas absolutamente imorais que são pagas à margem da lei e acima do teto, classificadas como verbas "indenizatórias" de esdrúxula inconstitucionalidade, como o malsinado "auxílio-moradia" concedido por meio de uma liminar monocrática do Ministro Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal.

O Judiciário e o MP se tornaram os porta-vozes da sociedade brasileira. Eles ditam a pauta da esfera pública e se apresentam como agentes monolíticos imparciais acima do bem e do mau. Não sofrem qualquer controle e, no momento que escrevo essa mensagem, podem, se quiserem, estar nos espionando, grampeando nossos telefones, violando nossas correspondências e nossas garantias processuais sem sofrerem qualquer tipo de consequência.

Como reconheceu recentemente o Min. Dias Toffoli, em um raro momento de autocrítica, o Judiciário está à beira de cometer os mesmos erros dos Militares em 1964. Se tornaram, na minha opinião, tão perigosos quanto aquele grupo que por um momento se achou no direito de exercer o Poder Moderador em um país com uma sociedade civil fraca e um povo manipulado por uma mídia golpista e uma elite arcaica e conservadora. Pobre Brasil. A queda de Lula vai ter um preço muito alto, e pode colocar por água abaixo todos os avanços institucionais dos últimos 28 anos. O fim da "Nova República", inaugurada em 1988, parece ter causa conhecida e data certa.


Thomas Bustamante. . Thomas Bustamante é Professor de Filosofia do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito pela PUC-Rio.. . .

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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