Por Bianca Bez – 09/11/2016
A única penalidade estabelecida na Constituição Federal está prevista no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, segundo o qual “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.
No âmbito processual penal, dispõe o artigo 381 do Código de Processo Penal que a sentença deverá conter, além dos nomes das partes, da exposição sucinta da acusação e da defesa, dos artigos de leis aplicados, entre outros, a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão.
Ainda que o referido dispositivo legal esteja inserto no início do título destinado à sentença, considerando-se que a decisão penal, na qualidade de decisão judicial, carrega consigo todas as garantias e deveres constitucionais inerentes à qualquer ato processual, é estreme de dúvidas que deve estar nela demonstradas e expostas as razões do juízo respectivo, de forma suficientemente motivada, sob pena, em caso de inobservância do dever de fundamentação, de ser considerada nula.
Como requisito formal da decisão penal, inserido na seção reservada ao Poder Judiciário, dentro do título da Organização dos Poderes, da Constituição Federal, a motivação ou a fundamentação consubstancia-se em condição imperativa ao efetivo exercício da prestação jurisdicional e, concomitantemente, em garantia fundamental ou princípio norteador de qualquer decisão jurisdicionalmente proclamada.
A presença do princípio do livre convencimento motivado ou de persuasão racional, esculpido no artigo 155 do Código de Processo Penal, não possui como escopo negar a existência do subjetivismo que leva o magistrado a seguir por um ou outro caminho, e, sim, exigir que o juiz, no jogo democrático do processo, “[...] julgue conforme a prova e o sistema jurídico penal e processual penal, demarcando o espaço decisório pela conformidade constitucional” (LOPES JR., 2013, p. 563).
Entrelaçando o inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal com o princípio do livre convencimento motivado, pode-se dizer, consoante ensina Bissoli Filho (2011, p. 427), “´[...] que a motivação da sentença serve para vincular os pronunciamentos jurisdicionais à legalidade, para garantir certeza do direito e para assegurar a efetividade do princípio da separação dos podres e dos direitos fundamentais”.
Diante da inexistência, portanto, de coerência ou completude, quando não forem analisadas todas as teses tratadas pelas partes, com a profundidade que as questões postas exigirem, a respectiva decisão penal deverá ser declarada absolutamente nula.
Todavia, consoante infere Carvalho (2013, p. 281), a livre motivação, aprioristicamente, deve ser interpretada de maneira negativa, isto é, veda-se ao magistrado proferir qualquer decisão sem expor racionalmente os seus motivos para tanto – íntima convicção –, bem com se exige que esta convicção, ainda que presentes traços de subjetivismo, seja formada com base no conjunto probatório angariado aos autos processuais.
É justamente a partir dessa interpretação inicial, negativa, que “[...] o livre convencimento é qualificado positivamente pela noção de fundamentação, entendida como argumentação coerente dos motivos que orientam a decisão a partir da demonstração suficiente dos dados empíricos que sustentam as hipóteses conclusivas” (CARVALHO, 2013, p. 281).
Logo, pode-se afirmar que fundamentar é lançar os alicerces da decisão penal sobre as provas válidas amealhadas no respectivo caderno processual – não é fazer valer a opinião do julgador, tomada antes mesmo do término da instrução procedimental, alocando provas parciais (principalmente trechos dos depoimentos das testemunhas e do interrogatório do acusado) visando à construção de artifícios, revestidos pela máscara da escrita coerente.
A imprescindibilidade da fundamentação das decisões jurisdicionais, além de se consubstanciar em uma garantia às partes, como tutela das liberdades individuais, exsurge para obstaculizar eventual arbítrio do Estado ao agir na pessoa do juiz, limitando o seu próprio poder com o fim de evitar abusos e injustiças. Ou seja, dá-se à atuação jurisdicional, a um só tempo, razão de ser, na medida em que deverá o Estado justificar, motivar ou fundamentar o seu agir, e adstrição desse mesmo Estado-juiz aos parâmetros legais. (MELLO, 2003, p. 280).
Após esse longo introito acerca da garantia da fundamentação das decisões jurisdicionais, entrosada com o princípio do livre convencimento motivado do juiz, que não são, por óbvio, novidades no mundo jurídico, há certa porcentagem de descaso, desdém, menosprezo ou até de preguiça no que se refere às decisões proferidas no bojo dos habeas corpus – writ constitucional voltado à tutela da liberdade individual –, sobretudo quando o objeto é relativo à prisão preventiva.
É que, como se sabe, para se aferir o periculum libertatis, deve o magistrado basear-se em um dos fundamentos inscritos no artigo 312 do Código de Processo Penal, isto é, para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da penal penal ou, ainda, em caso de descumprimento das medidas cautelares.
Por incrível que pareça, a grande maioria das decisões baseia-se no fundamento da necessidade de se resguardar a ordem pública, cuja indeterminação conceitual e imprecisão são evidentes. Não faltam críticas à sobredita expressão, que remonta à Alemanha nazifacista da década de 30, quando se buscava a autorização generalizada e aberta para se justificar a necessidade de prisão.
Muito embora a doutrina e a jurisprudência tenham construído a moldura de significados compatíveis com a ordem pública, como a gravidade concreta da conduta e a possibilidade de reiteração delitiva, o que preocupa é a imensa quantidade de decisões jurisdicionais proferidas de forma extremamente sucinta, não clara, desleixada, onde logo se vê que aquela deliberação – cujo efeito é a restrição da liberdade de um indivíduo (!!!) –, é um modelão em que se trocam, basicamente, os nomes dos indiciados ou réus e, quando muito, a narrativa dos fatos.
Ora, justamente por se ser um conceito indeterminado, cuja significação foi construída pela doutrina e pela jurisprudência, e, principalmente, por acarretar a restrição da liberdade de um indivíduo, é que não se pode permitir decisões, para não dizer outra coisa, tão simplórias: “o réu respondeu ao processo no cárcere, em liberdade pode frustrar a aplicação da lei penal e, ainda, por em risco a ordem pública” (HC n. 269024, de São Paulo, julgado, no dia 11 de novembro de 2014, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça).
Não se está, aqui, a criticar a existência do instituto da prisão provisória, que, de fato, revela-se necessária ao atual panorama brasileiro, mas, sim, a mera referência das decisões aos vetores contidos no artigo 312 do Código de Processo Penal, sem a devida motivação acerca da necessidade da segregação preventiva.
É tamanha a desimportância, isto é, a não justificação das decisões, que os tribunais superiores, ao julgarem as inúmeras ações de habeas corpus, veem-se compelidos a fazer um exercício hercúleo de interpretação, com o fim de extrair daquela mera indicação à ordem pública alguma palavra que revele, de repente, a gravidade concreta da conduta ou a possibilidade de reiteração delitiva – ainda que se tenha ciência de eventual ocorrência de supressão de instância.
Pois bem, como manda a boa educação, após apontar as hipóteses de erros e equívocos na justificação relativa à ordem pública, já que não basta escrever as palavras sem ampará-las com os fatos concretos, uma possibilidade de evitar maiores descasos ou, em outros termos, de reverter o atual panorama das decisões que decretam a segregação preventiva e daquelas que a mantém, seria a adoção, por analogia, do artigo 489, parágrafo 1o, do atual Código de Processo Civil.
Esse dispositivo, cuja aplicabilidade à esfera processual penal encontra amparo no artigo 3o da lei adjetiva, prevê que “não se considerada fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [...] II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência ao caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão [...].
Em que pese a necessidade de fundamentação das decisões que decretam a prisão preventiva de alguém seja óbvia, diante da restrição de sua liberdade individual, maior garantia do Estado Democrático de Direito, talvez seja o momento, a partir da adoção inversa do teor artigo 489, parágrafo 1o, do Código de Processo Civil, de se fazer valer o efetivo conceito de motivação.
É que, no atual cenário, está mais fácil “justificar” a necessidade de prisão e, de fato, efetivá-la, pois, senão os juízes, os próprios tribunais dão “um jeito” para mantê-la, do que conseguir a concessão da ordem de habeas corpus, remédio que, pelo visto, encontra-se vencido, apresentando raros efeitos colaterais positivos, como, por exemplo, a aplicação de medidas cautelares diversas da segregação provisória.
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. Bianca Bez é graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduanda em Direito Público pela Damásio Educacional. Assistente de Procuradoria de Justiça Criminal no Ministério Público do Estado de Santa Catarina. . .
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