FUGA DO ESTABELECIMENTO PRISIONAL: CRIME OU DIREITO DO PRESO?

19/03/2020

Na última semana, foi largamente noticiada pela imprensa local a fuga de milhares de presos de estabelecimentos penitenciários do estado de São Paulo, por conta da suspensão de visitas aos detentos e adiamento de saídas temporárias, determinadas em razão da pandemia de coronavirus, causador da doença COVID-19.

Em alguns estabelecimentos penitenciários houve motim, fuga e até mesmo manutenção de funcionários como reféns. Em outros, houve depredação das instalações e do mobiliário, com incêndios e grande tumulto.

Nesse cenário caótico, que coloca em grave risco a população do estado e, principalmente, das cidades onde se localizam os presídios e da região circunvizinha, vem à calha analisar se a fuga do preso constitui crime ou se estaria amparada por um direito natural à liberdade. Em caso de crime, qual a figura típica que melhor se amoldaria aos diversos tipos de infrações que foram praticadas pelos detentos.

No Capítulo III do Título XI do Código Penal, vêm previstos quatro crimes que, de acordo com as peculiaridades da fuga e dos fatos que a antecedem ou sucedem, podem ser aplicados à espécie, isolada ou cumulativamente.

O art. 351 trata do crime de “fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança”, punindo com detenção de seis meses a dois anos as condutas de promover ou facilitar a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança detentiva. Sujeito ativo desse crime pode ser qualquer pessoa, com exceção do preso ou internado favorecido. Aqui, um terceiro promove ou facilita a fuga do preso. O preso que foge, portanto, não incide neste crime.

Já o crime de “evasão mediante violência contra a pessoa”, outro tipo penal correlato, vem previsto no art. 352 do Código Penal, punindo com detenção de três meses a um ano as condutas de “evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa.”

Nesse caso, o sujeito ativo somente pode ser o preso ou o indivíduo submetido a medida de segurança detentiva. Trata-se de crime próprio. Além disso, cuida-se de hipóteses de crime de atentado ou de empreendimento, no qual a consumação é equiparada à tentativa, recebendo, ambas, a mesma pena.

A evasão ou tentativa dela deve ser praticada pelo preso ou pelo indivíduo submetido a medida de segurança detentiva e precisa, necessariamente, ocorrer mediante violência contra a pessoa, ou seja, violência real, o que exclui o emprego de violência contra a coisa e grave ameaça tendente à fuga.

A terceira figura típica digna de nota é o crime de “arrebatamento de preso”, previsto no art. 353 do Código Penal, punindo a conduta de “arrebatar preso, a fim de maltratá-lo, do poder de quem o tenha sob custódia ou guarda”, que, evidentemente, não se aplica à grave situação vivenciada pelo estado de São Paulo na última semana.

O quarto tipo penal é o crime de “motim de presos”, previsto no art. 354, punindo com detenção de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência, a conduta de “amotinarem-se presos, perturbando a ordem ou disciplina da prisão.”

No crime de motim, os sujeitos ativos somente podem ser os presos. Trata-se de crime próprio coletivo, muito embora o Código Penal não determine o número de presos necessário para a configuração do tipo.

A conduta típica vem expressa pelo verbo amotinar(-se), que significa levantar(-se) em motim, revoltar(-se), rebelar(-se), sublevar(-se). Motim significa revolta, manifestação contra a autoridade estabelecida, envolvendo número indeterminado de pessoas com uma finalidade comum.

Esse crime consiste no comportamento de rebeldia de pessoas presas, agindo para o fim de reivindicações justas ou não, perturbando a ordem ou a disciplina do estabelecimento prisional. Insta salientar a irrelevância, para a configuração do crime, de se tratar de reivindicação justa ou não. A mera participação espontânea na rebelião já é suficiente para a condenação.

Administrativamente, segundo dispõe o art. 50, I, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), “comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I — incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina”.

Ocorrendo dano ao bem público, a pena do crime de dano (art. 163, parágrafo único, III, do CP) será aplicada cumulativamente, em razão do concurso material, com a pena do crime de motim de presos. O mesmo se diga com relação à pena correspondente à violência contra a pessoa.

Em suma, a fuga não constitui um “direito do preso”, decorrente do direito natural à liberdade, não havendo, no ordenamento jurídico pátrio, nenhum dispositivo que lhe garanta a evasão do estabelecimento prisional. Entretanto, se não houver facilitação ou promoção e nem tampouco motim ou dano ao patrimônio público, a simples fuga do preso, sem violência contra a pessoa, constitui fato atípico penal, sem prejuízo da repercussão na esfera administrativa como falta grave no curso da execução.

Nesse sentido o entendimento do Supremo Tribunal Federal: “A fuga, ao contrário do que costumeiramente se diz, não é um ‘direito’, e muito menos o ‘exercício regular de um direito’; é simplesmente a fuga, sem violência, um fato penalmente atípico, porque o tipo é a evasão com violência à pessoa. De tal modo que o simples fato de não ser típica a fuga, obviamente, não elide a criminalidade de qualquer crime cometido com vistas à evasão” (STF — RTJE, 80/246).

 

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