Fragmentado – Por André Sampaio

25/06/2017

Em 23 de março do corrente ano, estreou nos cinemas brasileiros o filme “Fragmentado”, dirigido pelo polêmico Shyamalan. Atento ao não fornecimento de spoilers, atenho-me a informar sumariamente que se trata de obra cinematográfica que retrata um sequestro de três adolescentes por Kevin (James McAvoy), detentor de 23 personalidades distintas, com quem convive mentalmente em certa “harmonia no caos”.

Certo paralelo pode ser traçado entre Kevin e o papel fragmentado que o juiz possui no sistema processual penal brasileiro. Uma breve análise perfunctória da lei nos revela funções muito além de “órgão decisório”, “fiscal da lei” ou “assegurador de garantias”, há funções judicantes mescladas com investigativas, acusatórias e até mesmo defensivas. Entretanto, alguns representantes do Judiciário nacional parecem ainda não se satisfazerem ao buscarem a assimilação de outros papéis para além das fronteiras funcionais, como o de “pop star”; a título de exemplo basta ver nas prateleiras de qualquer livraria de aeroporto quantas obras têm sido publicadas para apresentar a “vida” do messias da vez, conhecido por seus pais como Sérgio Fernando Moro.

Na última segunda-feira, dia 19 de junho, o Ministro Gilmar Mendes nos forneceu aparentemente a possibilidade de mais uma “personalidade” ao palestrar em Recife, durante seminário do Grupo de Líderes Empresariais. Aliás, o que estaria um ministro do Supremo Tribunal Federal fazendo ao palestrar para “líderes empresariais”? Enfim, optarei por me deter a algumas frases deliberadamente pinçadas de sua fala para, ao cabo, buscar uma análise conglobante.

Aparentemente o que chamou mais a atenção da mídia foi sua forte afirmação de que houve uma expansão das investigações da Operação Lava-Jato “para além dos limites”. Tentando explicar melhor quais seriam estes, o Ministro mencionou que muitas vezes foi investigado “o que já está explicado” – referindo-se, creio, a investigar o que determinada pessoa previamente já explicou (?) – ou situações de “mera irregularidade”. Curiosamente a explicação traz talvez ainda mais questões em aberto.

Primeiramente convém explicitar a própria função das investigações preliminares. A bem da verdade, o mais adequado seria o plural, funções, mas pretendo me ater ao enredo oficial. Desde esta perspectiva, podemos afirmar que qualquer investigação que anteceda um eventual processo penal tem por escopo assegurar a genuinidade do material utilizado para oferecimento da inicial acusatória, evitando, assim, que o provável inocente seja alvo de uma ação penal aventureira.[1]

É verdade, também, que a própria investigação não pode ser realizada abusivamente; ela demanda um mínimo de verificação da informação presente na notitia criminis. Pois bem, sob esse prisma, o que seria sua expansão “para além dos limites”? Seriam, provavelmente, investigações ilegalmente iniciadas, ou seja, lastreadas sem o mínimo de indício verificável da ocorrência de um fato típico. Porém, essa interpretação se revela incongruente com o que encontramos a seguir na fala do ministro, ao se referir a “o que já está explicado” e situações de “mera irregularidade”.

Se há suspeita da eventual prática de um delito, o que “já está explicado” ganhará esse status com base em quais códigos? Não podemos aqui nos olvidar de toda a construção epistêmica de Rui Cunha Martins[2] ao desvelar os operadores de contágio no mecanismo de produção de provas, ou, em outras palavras, vamos “confiar” na explicação da suposta ocorrência de um eventual delito (ou de “meras irregularidades”) com base em quais critérios? Aqueles manejados pelo Mass Media? Ou o velho argumento schmittiano,[3] a distinção entre amigo/inimigo?

O problema ganha relevo quando o próprio Ministro proclama publicamente sua indignação com a instauração de inquérito para investigar um “homem decente”, como se refere ao Deputado Federal Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE), que coincidentemente foi quem o convidou para a palestra promovida pelo Lide Pernambuco...

É impossível, por óbvio, saber as intenções de Gilmar Mendes nessas colocações, mas não se pode negar que a comunicação por ele produzida se insere em um contexto discursivo que propicia a extração de uma série de sentidos, inclusive um bom número deles o afetando em sua própria posição de magistrado.

Entre os sentidos possíveis, pode-se inferir que o Ministro deseja que “homens decentes” e “meras irregularidades” não sejam investigadas. Ao se partir desse pressuposto é impossível não destacar a operação da linha demarcatória que traça os homens “decentes” e os “infames”, ou a que distingue crimes de “meras irregularidades”, todas previamente demarcadas antes mesmo da instauração de uma investigação!

Curiosamente o próprio Gilmar Mendes apresentou repúdio à ideia de um governo formado por juízes e promotores. “O autoritarismo nos revela que teríamos uma ditadura. E não pensem que seríamos melhores gestores. Se o Judiciário administrasse o deserto do Saara, em pouco tempo, faltaria areia”. Talvez os juízes não precisem governar explicitamente, afinal quais as vantagens que obteriam, já que possuem a chave do dispositivo demarcador do amigo/inimigo, do crime e da mera irregularidade?

Ao fim, o Ministro afirmara que “[q]uem quiser fazer política, que vá aos partidos políticos e faça política lá. Não na promotoria, não nos tribunais”, disse na mesma oportunidade em que defendia a redução do tamanho do Estado e do investimento em privatizações, tudo de modo alheio à ideologia(!), alertou-nos Gilmar.

Já me manifestei nessa coluna e volto a ratificar, a função judicante é vital no modelo republicano que possuímos e assim sendo merece sua devida compensação, não só de garantias mas até mesmo, prudentemente, financeira, porém, por outro lado, trata-se de uma espécie de “sacerdócio” institucional, de modo que impende determinado comportamento, ativo ou passivo, de seus membros.

Não se pode falar a qualquer momento, em qualquer situação, sobre qualquer coisa. Determinados cargos públicos demandam uma postura comedida que prejudiquem à sua já tão fissurada legitimidade. Padecemos historicamente da confusão de papéis envolvendo o juiz, a assimilação de um novo – o de político enrustido – pode fornecer a Shyamalan a inspiração para a continuação de seu último filme, ou, quem sabe, pode nos fornecer a energia que precisamos para ultrapassarmos propostas funcionais de reformas institucionais meramente cosméticas e alcançarmos o nó górdio da questão.


Notas e Referências:

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

[2] MARTINS, Rui Cunha. O ponto cego do direito: the Brazilian lessons. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

[3] SCHMITT, Carl. Teología política. Espanha: Trotta, 2009.

Obs.: as informações presentes na presente coluna foram extraídas dos seguintes sites: http://www.valor.com.br/politica/5009616/gilmar-mendes-investigacoes-da-lava-jato-se-expandiram-alem-do-limite http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,expandiu-se-demais-a-investigacao-alem-dos-limites-diz-gilmar,70001848844


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