Por Juarez Cirino dos Santos - 13/03/2017
FOUCAULT é conhecido pelo conceito de disciplina, definido em Surveiller et punir (1975) e pelo conceito de biopolítica (ou biopoder social), desenvolvido em Il faut défendre la société (1975-1976). O conceito de disciplina, ou microfísica do poder – estratégia das classes dominantes para criar uma ideologia de submissão –, produz corpos dóceis e úteis, capazes de fazer o que queremos e de operar como queremos, mediante recursos de adestramento fundados no panótico (vigilância hierárquica, sanção normalizadora e exame), cujo modelo exaustivo é a prisão, núcleo da gestão diferencial das ilegalidades promovida pelo sistema de justiça criminal.[1] O conceito de biopolítica (ou biopoder social) – mecanismos de regularização da tecnologia do poder sobre o conjunto da população viva –, se exerce como guerra capaz de fazer viver os portadores de capital humano e deixar morrer os inúteis para as necessidades do mercado.[2]
1. O poder político como guerra
No famoso Cours au College de France, FOUCAULT desenvolve conceitos de poder, de direito e de estado capazes de aprofundar a compreensão do processo de luta de classes no capitalismo neoliberal contemporâneo. Primeiro, apresenta a concepção jurídica do poder como direito (e sua analogia com a riqueza), em comparação com a concepção marxista do poder como função econômica para manter as relações de produção e reconduzir as relações de dominação de classe, conforme o desenvolvimento das forças produtivas. E indaga se, na ótica marxista, o poder seria secundário em relação ao econômico, ou se o econômico seria a razão de ser do poder político, que deve assegurar e consolidar as relações econômicas. FOUCAULT reconhece a vinculação do poder político com a manutenção das relações de produção, mas afirma que o poder existe, primariamente, como relação de força, sob a forma de combate, de confronto, de guerra. O poder político é, essencialmente, o que reprime (natureza, instintos, indivíduos, classe social), invertendo o aforismo de CLAUSEWITZ: o poder político é a continuação da guerra por outros meios – e não a guerra como continuação da política por outros meios. As relações de poder são relações de força determinadas na e pela guerra que, nos tempos de paz, se reinscrevem nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem e nos corpos, de modo constante: a paz civil interior é a continuação das lutas, dos confrontos, da guerra pelo poder, no poder e com o poder, de modo que a decisão final é sempre a guerra, a prova da força das armas, porque o fim da política seria a última batalha.[3]
Integrando as hipóteses do poder como repressão (REICH) e como confronto de forças (NIETZSCHE) – porque a repressão seria consequência política da guerra, e a opressão seria abuso da soberania política –, FOUCAULT consolida a noção de poder político como guerra, em que a repressão é efeito de relações de dominação, no contexto de aparente paz interior: o poder político é uma relação de guerra que atua por mecanismos de repressão.[4] E, na acepção do poder como guerra continuada por outros meios, emergem os conceitos de tática e de estratégia, desenvolvidos pela lógica da guerra, mas válidos para a lógica do poder político como relação de forças sociais determinada pela guerra.[5]
2. O Direito como dominação brutal
A guerra, princípio de análise das relações de poder, ou critério de inteligibilidade do poder político, exercido mediante enfrentamento ou luta – entre as classes sociais nas relações de poder econômico e político, acrescentamos –, mostra a constituição e a produção da sociedade por relações de poder. Nesse sentido, o projeto geral de FOUCAULT não é trabalhar o Direito como discurso jurídico, mas abordar o Direito como sistema de dominação brutal, como instrumento de dominação através de aparelhos, instituições, regras: afinal, se a paz social é a reinscrição permanente de relações de força determinadas na e pela guerra social, então o Direito é instrumento de dominação, ou operador de relações de dominação mediante múltiplas técnicas de sujeição em procedimentos ou práticas reais contínuas, que submetem corpos, dirigem gestos, regem comportamentos, constituindo sujeitos como produtos de uma multiplicidade de forças, energias, desejos e pensamentos, em síntese, por um conjunto de instâncias materiais de constituição do sujeito.[6] O poder, como algo que se exerce, circula e forma rede, ou funciona em cadeia, constitui o indivíduo como efeito do poder e, ao mesmo tempo, como relais pelo qual o poder transita pelo sujeito que constitui, conformando corpos, gestos e discursos do sujeito.[7]
3. O Estado: poder político como guerra por outros meios
A noção de política como guerra por outros meios ilumina o conceito de Estado, porque a guerra é instrumento de formação do poder do Estado, explicado por um discurso histórico/político – e não pelo discurso filosófico/jurídico. A guerra, como relação social permanente, é a origem do poder político, que determina a organização e a estrutura jurídica do poder do Estado, parido no fragor das batalhas, no sangue dos massacres, das conquistas e da terra arrasada – e não pelas ideias jurídicas.[8] O Estado e a legalidade não significam situação de armistício, mas de continuação da guerra, como mecanismo de poder: a guerra é o motor das instituições e da ordem social, a paz como continuação da guerra, ou a guerra como código da paz, numa sociedade/campo de batalha permanente, em que não há neutralidade possível e todos precisam tomar posição no campo de batalha.[9] A sociedade, ou corpo social, no modelo de dois grupos armados, determinados não por necessidades naturais ou exigências funcionais, mas pela guerra permanente, cuja batalha decisiva está sempre à frente, sem reconciliação possível com o inimigo, porque a condição da paz é se e quando vencermos.[10]
4. O sujeito da fala: a verdade como arma de guerra
No discurso histórico/político de guerra não há neutralidade possível, o sujeito da fala é sempre partidário, inserido na perspectiva de guerra até a vitória, porque a relação de força exige tomar partido e a própria verdade do discurso é também arma na relação de força do poder político. Logo, o sujeito da fala não está no papel do legislador/filósofo do armistício, mas no papel do guerreiro que impõe a verdade como elemento da relação de força do poder.[11] Essa trama não interrompida da guerra produz/mantém desigualdades étnicas, de violência e de barbárie na escravidão de uma raça por outra: é a teoria da guerra de raças, com sua transcrição biológica e social, que teria perdido os traços de conflito de raças – a escravidão, na guerra da raça branca contra a raça negra (e também indígena) no Brasil, por exemplo –, hoje redefinida como luta de classes,[12] na relação capital/trabalho assalariado, em que a raça negra continua o principal oprimido explorado nos processos políticos e econômicos do Estado capitalista.
5. O biopoder do Estado racista e classista
A nova tecnologia do poder não se reduz ao corpo humano, sob a forma da disciplina, mediante vigilância, treinamento e punição para produzir corpos dóceis e úteis, segundo a lógica de fazer morrer e deixar viver, mas existe como biopolítica, exercida sobre a espécie humana, na forma de regularização do conjunto da população, controlando os processos de nascimento, mortalidade, longevidade, doenças e seus efeitos na produtividade do trabalho e nos custos sociais, segundo o princípio de fazer viver e deixar morrer – métodos que não se excluem, mas se articulam como controle disciplinar sobre o corpo e controle biológico sobre a população.[13] Ao contrário da disciplina, exercida como poder de vida e morte no sentido de fazer morrer e deixar viver, a biopolítica se exerce como poder de fazer viver e deixar morrer conforme processos biossociológicos sobre as massas humanas,[14] para eliminar os inimigos porque constituem perigo biológico racial – e não porque são adversários políticos. E aqui, a pergunta crucial de FOUCAULT: se o biopoder tem por objetivo expandir a vida, então como explicar o poder político do Estado de matar seus próprios cidadãos – e não apenas os inimigos? E a resposta: o racismo, introduzido precisamente pelo biopoder do Estado, como mecanismo fundamental do poder nos Estados modernos, que produz a morte direta do cidadão – a matança genocida da população pela polícia do Estado, no Brasil – ou produz a morte indireta do povo, pela exposição à morte, a multiplicação do risco de morte ou a morte política, mediante expulsão ou rejeição interna.[15] O conceito de biopoder permite esclarecer os acontecimentos da globalização neoliberal, especialmente nos países periféricos da América Latina: o programa político de matança do povo pela polícia do Estado, a prática de autoextermínio recíproco dos cidadãos na disputa do mercado ilegal das drogas, a multiplicação dos riscos de morte na prisão dos inúteis para ampliar o capital, a morte econômica e política da população negra e indígena – sem falar nas políticas xenofóbicas dos países centrais do sistema econômico-financeiro internacional, com a rejeição/expulsão de estrangeiros.
Assim, nos defrontamos com a disciplina e o biopoder do Estado classista e racista – mas também patriarcal/machista, como revela o movimento feminista, com argumentos poderosos –, que exerce o poder político como guerra contra os inimigos, institui a dominação brutal do Direito sobre os excluídos, com a partidarização do sujeito da fala e a verdade do discurso como armas na relação de forças do poder político. O poder como relação de força existente como guerra é compatível com o conceito de luta de classes das sociedades capitalistas, no âmbito das relações econômicas de produção/circulação material, existentes como relações políticas de poder entre as classes sociais, sob a forma de relações jurídicas do Estado de Direito da globalização. Eis a temática para reflexão futura da Criminologia crítica na América Latina.
Notas e Referências:
[1] FOUCAULT. Surveiller et Punir. Hautes Etudes. Gallimard/Seuil 1975, p. 26-27 e 228 s.
[2] FOUCAULT. Naissance de la biopolitique. Paris: Seuil/Gallimard, 2004, Leçon de 14.03.1979. p. 221-244.
[3] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 07.01.1976, p. 15 s.
[4] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 07.01.1976, p. 17.
[5] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 07.01.1976, p. 18.
[6] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 14.01.1976, p. 24-6.
[7] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 14.01.1976, p. 26-7.
[8] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 21.01.1976, p. 42.
[9] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 21.01.1976, p. 43.
[10] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 21.01.1976, p. 44.
[11] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 21.01.1976, p. 46.
[12] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 21.01.1976, p. 51 s.
[13] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 17.03.1976, p. 215
[14] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 17.03.1976, p. 220
[15] FOUCAUT. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seuil, 1997, Cours de 17.03.1976, p. 228
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Juarez Cirino dos Santos Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1965). Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1979). Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1981). Pós-Doutorado pela Universitat des Saarlandes, US, Im Saarbrücken, Alemanha (1996). Foi Conselheiro Estadual Titular da Ordem dos Advogados do Brasil - seção do Paraná, na gestão de 2013-2015. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Criminologia, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria do fato punível, teoria da pena e criminologia crítica.
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