Por Vitor Vilela Guglinski – 19/11/2016
Fato que, infelizmente, tem se tornado comum no universo dos concursos públicos é a eliminação de candidatos, durante a fase de exames médicos, pelo fato de serem considerados obesos, e por isso não serem aptos a assumir os cargos pretendidos.
No ano de 2014, foi noticiado o caso da candidata Mariana Cristina Justulin, que encontrou óbice para a assunção do cargo público, uma vez que o Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo (DPME) a considerou obesa, e, portanto, inapta para a função de professora da rede estadual de ensino (Leia em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/07/barrada-por-obesidade-professora-aprovada-em-concurso-...
Antes, no ano de 2013, a imprensa havia noticiado o caso de Melissa Tsuwa Watanabe, de 39 anos, candidata ao cargo de agente de organização escolar, que foi considerada inapta pela comissão do respectivo concurso público para o exercício da função pelo fato de, segundo o mesmo Departamento de Perícias Médicas de São Paulo, ser portadora de obesidade mórbida (Leia em: http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2013/09/mulher-tem-validacao-de-concurso-negada-apos-se...
A questão acende, então, fértil discussão acerca da constitucionalidade da eliminação de candidatos a esse tipo de função, por motivo de obesidade.
Analisando-se as implicações jurídicas envolvendo o tema, é possível extrair alguns fundamentos jurídicos que permitem concluir que esse ato por parte do Poder Público encontra-se totalmente divorciado das diretrizes traçadas pelo Estado Democrático de Direito.
Investigando-se as bases constitucionais pertinentes ao tema, dispõe o art. 37, incisos I e II, da Constituição Federal:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que a Constituição Federal conferiu à lei a tarefa de regular o acesso aos cargos e empregos públicos.
Como parâmetro a ser utilizado para afiançar os argumentos aqui alinhados, a Lei nº. 8112/90 disciplinar o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, sendo que os requisitos básicos para a investidura em cargo público estão dispostos no art. 5º, e incisos, do diploma legal supra citado, a saber:
Art. 5º São requisitos básicos para investidura em cargo público:
I - a nacionalidade brasileira;
II - o gozo dos direitos políticos;
III - a quitação com as obrigações militares e eleitorais;
IV - o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;
V - a idade mínima de dezoito anos;
VI - aptidão física e mental.
Das exigências legais acima, extrai-se que o legislador ordinário, cumprindo o comando constitucional, estabeleceu critérios objetivos para o ingresso no funcionalismo público, sendo que, em relação à aptidão física e mental (inciso VI), em homenagem aos princípios que regem nosso ordenamento constitucional, tal requisito deve ser avaliado de acordo com cada caso específico, isto é, observando-se a natureza da função a ser exercida pelo candidato eventualmente aprovado, de modo que não haja distorções na aplicação desse critério e, consequentemente injustiças para os candidatos.
Um dos traços de maior destaque nos concursos públicos é a garantia de igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restrições de acesso a determinados cargos, e, mesmo assim, só nos casos em que determinadas características inerentes ao candidato forem incompatíveis com a natureza da função a ser desempenhada. Tal decorre do princípio da isonomia, o qual está explícito no art. 5º, "caput" e implícito no art. 3º, IV, ambos da Constituição da República, e que proíbe, consoante esse último preceptivo, quaisquer formas de discriminação, expressão essa que adverte-nos que o rol de elementos discriminatórios rechaçados pela Carta Fundamental não é exaustivo, mas meramente exemplificativo (numerus apertus).
Nesse passo, cabe registrar a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, no sentido de que "os concursos públicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitário aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, são inválidas disposições capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames" (In Curso de Direito Administrativo, 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pág. 194).
Sendo assim, encontramos um dos fundamentos jurídicos a coibir tal prática por parte do Poder Público, na medida em que, no caso das candidatas mencionadas no início deste artigo, a alegação de que são obesas não pode servir de óbice para a aprovação no concurso, na medida em que a atividade a ser por elas desempenhada é, preponderantemente, intelectual. Portanto, a atitude do Poder Público extrapola a órbita do interesse público e foge aos critérios objetivos de avaliação do candidato.
A obesidade, em suas diversas causas, consoante a Classificação Internacional de Doenças (CID), de fato é considerada uma doença. Entretanto, se esse mal for considerado um óbice à ocupação a cargos de professor e agente de organização escolar, como nos exemplos citados, também deverão ser inadmitidos no serviço público tantos quantos forem os portadores de outras doenças, tais como os portadores de moléstias visuais (miopia, astigmatismo, hipermetropia etc.), os diabéticos, enfim, os portadores de diversos outros males que também são internacionalmente classificados como doenças. Nesse sentido, inclusive, deverão ser inadmitidos no serviço público os portadores de necessidades especiais, que hoje, aliás, são cotistas em concursos públicos, por expressa determinação constitucional constante do art. 37, VIII da CF/88.
Ora, seria absurdo!
Nesse caso, a obesidade nada guarda relação com o desempenho de funções eminentemente intelectuais. Seria diferente se, por exemplo, o cargo almejado fosse o de policial militar, oficial das forças armadas, bombeiro, enfim, profissões em que o primor físico é indispensável para o desempenho das respectivas atribuições. Aliás, sobre esse tema é interessante abrir um breve parêntese, pois nem mesmo essas corporações estão livres da obesidade, uma vez que é comum vermos pelas ruas policiais muito gordos, sem qualquer condição de empreender eventual perseguição a quem esteja em fuga.
Continuando nessa trilha, basta ligarmos a televisão ou acessar a internet para vermos notícias sobre nosso Congresso Nacional e Assembleias Legislativas, abarrotados de parlamentares obesos; basta darmos uma volta pelos fóruns e tribunais brasileiros para encontrar juízes, promotores, procuradores públicos e serventuários obesos. Prefeitos e governadores também não passarão. O funcionalismo público brasileiro, de um modo geral, é gordo! Ou algum leitor ousa dizer que a maioria de nossas lideranças políticas e demais integrantes do funcionalismo público é "saradinha"?
É óbvio que não!
Dessa forma, caso a eliminação de candidatos obesos seja levada a efeito, em homenagem ao já citado princípio da isonomia, os candidatos à magistratura, MP, AGU, agências reguladoras, bancos, estatais etc. deverão se cuidar, pois, como diz a máxima jurídica, "onde existe a mesma razão, aplica-se o mesmo direito (ubi eadem ratio, ibi eadem jus)”.
Nossos políticos também deverão abrir os olhos, já que as instâncias da Justiça Eleitoral deverão também indeferir a candidatura dos rechonchudos. Além disso, será dever do eleitor não votar naqueles que, certamente, conseguirão burlar até mesmo as balanças. Se hoje temos a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010), quiçá será lançado algum programa chamado "Ficha Lipo".
Cabe lembrar que a obesidade possui origens das mais variadas, que vão desde maus hábitos alimentares, sedentarismo, enfim, o desleixo com a própria saúde, até aquelas de origem genética, tendentes, conforme o caso, a jamais desaparecer, por mais que seu portador se esforce para eliminá-la. É preciso lembrar que existem pessoas obesas que podem jamais conseguir emagrecer ou, no máximo, não emagrecerão o suficiente para alcançar o patamar considerado ideal pelas autoridades em saúde. Todavia, do ponto de vista intelectual, pessoas obesas são plenamente capazes de exercer funções que não exijam, preponderantemente, performance física. Não é necessário ser magro para pensar!
Inteligência, raciocínio, criatividade, assiduidade, pontualidade, comprometimento. Estes são, principalmente, os atributos desejados de um funcionário público.
Ponderação e justiça: estes são, necessariamente, deveres constitucionais do Estado.
Nota do autor: o presente texto é uma reedição adaptada do artigo intitulado Candidatos obesos, concursos públicos e o peso da justiça, publicado no ano de 2011 em diversos periódicos jurídicos e sites do país.
. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .
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