O feminicídio, conforme recentemente tipificado no artigo 121-A do Código Penal, introduzido pela Lei n. 14.994/24, consiste em matar uma mulher por razões da condição do sexo feminino. Trata-se, agora, de um crime autônomo, desvinculado das hipóteses de homicídio qualificado que outrora o abarcavam. A mudança legislativa certamente teve como objetivo diferenciar o feminicídio de outras modalidades de homicídio, reconhecendo a violência de gênero como um fenômeno com características próprias, refletindo o cenário de desigualdade estrutural e o histórico de violência contra a mulher no Brasil.
De acordo com a nova redação do tipo penal estampada no artigo 121-A, a pena é de reclusão de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos, podendo o juiz, nas circunstâncias previstas no §2º, aumentá-la de 1/3 (um terço) até a metade, chegando ao patamar de 60 (sessenta) anos, nunca visto para um único crime no Direito Penal brasileiro.
A objetividade jurídica é a proteção do direito à vida, expressamente consagrado no artigo 5º da Constituição Federal, no particular aspecto da vida da mulher. O sujeito passivo, portanto, é exclusivamente a mulher, enquanto o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. No entanto, a caracterização do feminicídio exige a presença da elementar "razões da condição do sexo feminino", detalhada no § 1º, como violência doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher.
A definição legal de "razões da condição do sexo feminino" não é meramente formal. O § 1º estabelece que essas razões podem se manifestar quando o crime envolve violência doméstica e familiar, conforme estabelecido pela Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), ou quando há menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A violência doméstica e familiar contra a mulher abrange qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, ou dano moral e patrimonial, no contexto de relações familiares, íntimas ou de convivência, independentemente de coabitação. Já o menosprezo ou discriminação à condição de mulher abarca atos que demonstrem a aversão ao gênero feminino, que podem ser evidenciados por atos de objetificação, ódio ou depreciação da mulher.
Outro aspecto essencial da Lei n. 14.994/24 é a manutenção do feminicídio como crime hediondo, agora no inciso I-B do artigo 1º da Lei n. 8.072/90.
A conduta típica consiste no verbo "matar", ou seja, eliminar a vida da vítima. O crime pode ser praticado por ação ou omissão, sendo, portanto, um crime comissivo ou omissivo impróprio. O elemento subjetivo é o dolo, caracterizado pela vontade livre e consciente de eliminar a vida da mulher (“animus necandi” ou “animus occidendi”). Assim, para a configuração do feminicídio, deve estar presente a intenção de matar a mulher por razões da condição do sexo feminino, elemento subjetivo essencial para a caracterização do delito.
O crime se consuma com a morte da vítima, que deve ser comprovada por meio de exame pericial, no caso, o exame necroscópico, nos termos do artigo 158 do Código de Processo Penal, com a ressalva do artigo 167. A tentativa de feminicídio é admissível, nos casos em que, iniciada a execução do crime, o resultado morte não ocorre por circunstâncias alheias à vontade do agente, sendo aplicável a regra do artigo 14, inciso II, do Código Penal.
As causas de aumento de pena do feminicídio vêm previstas no § 2º do artigo 121-A e podem elevar a pena de 1/3 (um terço) até a metade. Entre as hipóteses de aumento de pena, se destacam a prática do crime durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto, ou quando a vítima é mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência. Também há aumento de pena se o crime for cometido contra pessoa menor de 14 (catorze) anos ou maior de 60 (sessenta), ou ainda, portadora de deficiência ou doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental. Outra causa de aumento relevante ocorre quando o feminicídio é praticado na presença física ou virtual de descendente ou ascendente da vítima, bem como em descumprimento de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, especificamente no artigo 22, “caput”, incisos I, II e III. O descumprimento de medidas protetivas, além de majorar a pena, pode ser objeto de sanção penal específica, conforme o artigo 24-A da Lei n. 11.340/06, cujas penas também foram redimensionadas pela nova legislação, passando a reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
As circunstâncias pessoais elementares do crime, como a violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, comunicam-se aos coautores ou partícipes do feminicídio, nos termos do § 3º do artigo 121-A, corroborando o entendimento do artigo 30 do Código Penal, que já previa a comunicabilidade das elementares do crime. Embora desnecessária, essa previsão legislativa visa assegurar que todos os envolvidos no crime, ainda que não tenham praticado diretamente o ato de matar, sejam responsabilizados pela prática do feminicídio.
A recente Lei n. 14.994/24 também trouxe importantes alterações nas penas dos crimes de lesão corporal e ameaça, que afetam diretamente a proteção à mulher. No crime de lesão corporal, o § 9º do artigo 129 do Código Penal, que trata das lesões praticadas no contexto doméstico ou familiar, teve sua pena aumentada de detenção de 3 (três) meses a 3 (três) anos para reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Além disso, o § 13 do artigo 129 passou a prever a mesma pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos quando a lesão for praticada contra a mulher por razões da condição do sexo feminino. Essas alterações, evidentemente, além de aumentar o rigor punitivo, refletem o reconhecimento da gravidade das agressões físicas sofridas pelas mulheres, que são frequentemente submetidas a um ciclo contínuo de violência.
No crime de ameaça, previsto no artigo 147 do Código Penal, a Lei n. 14.994/24 duplicou a pena quando o delito for cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, de modo que a reprimenda pode chegar ao máximo de 1 (um) ano de detenção. Além disso, a nova lei transformou a ação penal para o crime de ameaça, cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, em pública incondicionada, eliminando a necessidade de representação por parte da vítima. Essa mudança se alinha com o entendimento do Supremo Tribunal Federal na ADI 4424, que já havia afastado a exigência de representação nos crimes de lesão corporal cometidos em contexto de violência doméstica, por reconhecer que a dependência da iniciativa da vítima poderia perpetuar o ciclo de violência, muitas vezes por coação ou intimidação do agressor.
No âmbito dos crimes contra a honra, a calúnia, a difamação e a injúria, quando praticadas contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, terão suas penas aplicadas em dobro.
Outro ponto importante da Lei n. 14.994/24 foi a modificação dos efeitos extrapenais da condenação, previstos no artigo 92 do Código Penal. Nos casos de crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo, assim como a incapacidade para o exercício do poder familiar, passaram a ser efeitos automáticos da condenação. A lei também vedou a nomeação, designação ou diplomação do condenado para qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo durante o cumprimento da pena. O intuito do legislador foi impedir que indivíduos condenados por violência de gênero possam ocupar posições de poder ou exercer autoridade sobre terceiros, especialmente no âmbito familiar, também como forma de evitar a perpetuação do ciclo de violência.
Além das mudanças no Código Penal, a Lei n. 14.994/24 também promoveu alterações na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84). Os condenados por feminicídio, além de perderem direitos relacionados ao poder familiar, poderão ter os direitos previstos nos incisos V, X e XV do artigo 41 suspensos ou restringidos mediante ato motivado do juiz da execução penal, além de não poderem usufruir o direito à visita íntima ou conjugal. Também serão transferidos para estabelecimento penal distante do local de residência da vítima, ainda que localizado em outra unidade federativa, inclusive da União, quando condenados ou como presos provisórios que, tendo cometido crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, ameacem ou pratiquem violência contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena.
Com relação à progressão de regime de cumprimento de pena, a nova lei estabeleceu um novo patamar temporal mínimo de 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de feminicídio, se for primário, vedando, ainda, expressamente, nesse caso, o livramento condicional.
Demais disso, o condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, ao usufruir de qualquer benefício em que ocorra a sua saída do estabelecimento penal, será fiscalizado por meio de monitoração eletrônica.
Por fim, mas não menos importante, a nova lei alterou a redação do artigo 394-A do Código de Processo Penal, estendendo a prioridade de tramitação em todas as instâncias também aos processos que apurem a prática de violência contra a mulher, os quais independerão do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais, salvo em caso de má-fé. Essas isenções se aplicam apenas à vítima e, em caso de morte, ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, quando a estes couber o direito de representação ou de oferecer queixa ou prosseguir com a ação.
Conclui-se, portanto, que, não obstante algumas críticas pontuais tenham sido tecidas por alguns segmentos da comunidade jurídica, a Lei n. 14.994/24 inegavelmente buscou o aperfeiçoamento do combate à violência contra a mulher, especialmente no que tange ao feminicídio e às demais infrações cometidas no contexto de violência doméstica e de discriminação de gênero, alinhando-se aos modernos paradigmas mundiais estampados em inúmeras legislações protetivas dos diversos segmentos vulneráveis da sociedade.
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