Por Vitor Vilela Guglinski – 05/06/2016
Trazemos ao leitor, nesta oportunidade, uma análise de julgado do STJ em que foi apreciada questão versando sobre ação de indenização em que a parte autora requereu a condenação da parte ré ao pagamento de compensação por danos morais e estéticos, decorrentes de acidente de trânsito ocorrido em agosto/2002, tendo a ação sido proposta somente em fevereiro/2006, portanto quase quatro anos após o fato.
Em primeira instância, foi reconhecida pelo juízo monocrático a ocorrência da prescrição, tendo o órgão julgador aplicado ao caso o art. 206, parágrafo 3º, inciso V, do CC/2002.
Em segunda instância, a decisão foi reformada TJMT, que entendeu aplicável à espécie o art. 200 do CC, o qual dispõe sobre causa impeditiva da prescrição.
Sobreveio, então, Recurso Especial ao STJ, tendo a Terceira Turma, por unanimidade, acolhido a tese da parte recorrente, ao argumento de que o art. 200 do CC, para que seja aplicado, requer ao menos a tramitação de Inquérito Policial para que se impeça o início do prazo prescricional.
Veja-se a ementa do julgado:
RESPONSABILIDADE CIVIL. PRESCRIÇÃO. SUSPENSÃO. ACIDENTE DE TRÂNSITO
A independência entre os juízos cíveis e criminais (art. 935 do CC)é apenas relativa, pois existem situações em que a decisão proferida na esfera criminal pode interferir diretamente naquela proferida no juízo cível. O principal efeito civil de uma sentença penal é produzido pela condenação criminal, pois a sentença penal condenatória faz coisa julgada no cível. Porém, não apenas se houver condenação criminal, mas também se ocorrerem algumas situações de absolvição criminal, essa decisão fará coisa julgada no cível. Entretanto, o CPC autoriza (art. 265, IV) a suspensão do processo, já que é comum as duas ações tramitarem paralelamente. Dessa forma, o juiz do processo cível pode suspendê-lo até o julgamento da ação penal por até um ano. Assim, situa-se nesse contexto a regra do art. 200 do CC, ao obstar o transcurso do prazo prescricional antes da solução da ação penal. A finalidade dessa norma é evitar soluções contraditórias entre os juízos cíveis e criminais, especialmente quando a solução do processo penal seja determinante do resultado do cível. Sendo assim, permite-se à vítima aguardar a solução da ação penal para, apenas depois, desencadear a demanda indenizatória na esfera cível. Por isso, é fundamental que exista processo penal em curso ou, pelo menos, a tramitação de inquérito policial até o seu arquivamento. In casu, cuidou-se, na origem, de ação de reparação de danos derivados de acidente de trânsito (ocorrido em 26/8/2002) proposta apenas em 7/2/2006, em que o juízo singular reconheceu a ocorrência da prescrição trienal (art. 206 do CC), sendo que o tribunal a quo afastou o reconhecimento da prescrição com base no art. 200 do CC, por considerar que deveria ser apurada a lesão corporal culposa no juízo criminal. Porém, segundo as instâncias ordinárias, não foi instaurado inquérito policial, tampouco iniciada a ação penal. Assim, não se estabeleceu a relação de prejudicialidade entre a ação penal e a ação indenizatória em torno da existência de fato que devesse ser apurado no juízo criminal como exige o texto legal (art. 200 do CC). Portanto, não ocorreu a suspensão ou óbice da prescrição da pretensão indenizatória prevista no art. 200 do CC, pois a verificação da circunstância fática não era prejudicial à ação indenizatória, até porque não houve a representação do ofendido e, consequentemente, a existência e recebimento de denúncia. Precedentes citados: REsp 137.942-RJ, DJ 2/3/1998; REsp 622.117-PR, DJ 31/5/2004; REsp 920.582-RJ, DJe 24/11/2008, e REsp 1.131.125-RJ, DJe 18/5/2011. REsp 1.180.237-MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 19/6/2012.
Como é possível perceber, o tema em foco é bastante polêmico, o que pode ser corroborado pela leitura das decisões proferidas nas instâncias pelas quais o processo em questão tramitou. Em seu voto condutor, o próprio Ministro Paulo de Tarso Sanseverino asseverou a relevância da questão, destacando, já no início de sua decisão, que o caso não comportava a aplicação do art. 200 do CC/2002, por “inexistência de relação de prejudicialidade entre as esferas cível e criminal”. O eminente julgador lançou mão, ainda, da moderna técnica do diálogo das fontes, ao aplicar o direito à luz de diversas fontes legislativas (Códigos Civil e de Processo Civil, e Códigos Penal e de Processo Penal).
Respeitados o brilhantismo e erudição que constroem o presente julgado, será visto ao longo de nossas considerações, contudo, que o art. 200 do CC/2002 comporta interpretação diversa da exercida pela 3ª Turma do STJ. Isso, aliás, fazemos questão de registrar, é da natureza de qualquer ciência interpretativa, como o é o Direito. Se assim não fosse, não precisaríamos de operadores do direito, pois um computador corretamente programado faria as vezes do exegeta.
Tão logo a decisão foi noticiada, o Professor Pablo Stolze Gagliano nos chamou à reflexão, em seu editorial nº 38, intitulado O STJ e o Art. 200 do Código Civil: Um Julgado que Quase me Escapou, publicado no periódico Carta Forense (http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/o-stjeo-art-200-do-código-civil-um-julgado-que-qua...). Após breve relatório do caso, e transcrição da ementa do julgamento, o eminente civilista arremata:
“Trata-se de um respeitável entendimento, que, todavia, convida-nos a uma reflexão acadêmica mais detida, pois, a rigor, a paralisação ou não do prazo prescricional dependeria de providências do próprio Estado (instauração de inquérito policial ou ajuizamento de ação penal), e não da vítima (caso prevaleça este entendimento inclusive para ações penais em geral).
Ademais, cuida-se de um alcance interpretativo que dá, ao art. 200, uma amplitude peculiar, na medida em que o dispositivo não faz expressa menção a tais providências de cunho administrativo (inquérito policial) ou judicial (ação penal).
Vale dizer, temos aí um erudito entendimento pretoriano que não pode ser ignorado, pela sua peculiaridade, e, ainda, por emanar de um Tribunal superior.
(...)
Por tudo isso, fica aqui a exortação de sempre: o estudo e a pesquisa constante devem fazer parte da vida de todo bacharel, pois o Direito muda velozmente, e, como visto acima, mudanças há que, pelos seus relevantes reflexos práticos, podem causar profundo impacto na vida das pessoas.”
É de se concordar com a opinião do insigne professor, pois a reflexão é mesmo pertinente, cabendo-nos reforçá-la, e investigar se o órgão julgador agiu da melhor forma, até mesmo em virtude de o dispositivo ser uma inovação em nosso sistema, portanto sem correspondência na codificação anterior.
Diz o art. 200 do Código Civil:
“Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva“.
Numa análise perfunctória, nota-se que o dispositivo estatui uma condição para que a prescrição comece a correr, qual seja, o dever de se apurar o fato danoso na esfera criminal. Nesse sentido, data maxima venia, a regra não diz, absolutamente, que deva efetivamente haver providência em âmbito criminal instaurada para que seja aplicada (Inquérito Policial ou Ação Penal). O preceptivo, a nosso ver, preocupa-se com o fato (destaquei). Ou seja, ocorrendo o fato, deve-se indagar se ele deve ser apurado na esfera criminal. Se positivo, entendemos que isso, por si só, já é o bastante para a incidência do art. 200 do CC. Aliás, foi exatamente esse o entendimento do TJMT ao proferir o acórdão que originou o recurso especial em análise.
Sobre o tema, Flávio Tartuce ensina:
“(...) há certo conflito entre o comando ora estudado e o art. 935 do mesmo Código, eis que esse dispositivo enuncia que a responsabilidade civil independe da criminal. Consigne-se que a referida independência não é total, pois o curso do prazo prescricional civil depende da apuração dos fatos no âmbito criminal, pelo que consta da inovação ora visualizada” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1: Lei de Introdução e Parte Geral. 8a. Ed., São Paulo: Método, 2012, p. 439 ).
As considerações do preclaro autor merecem atenção, especialmente por também afirmar que a independência entre os juízos cível e criminal é relativa.
Mas, afinal de contas, essa independência entre juízos é relativa para autorizar que o prazo prescricional flua normalmente ou, ao contrário, para impedir que ele comece a fluir?
A interpretação levada a efeito pela Turma julgadora, ao que parece, ancora-se na parte final do art. 200 (…antes da respectiva sentença definitiva), a qual é capaz de levar o intérprete a concluir que, para que a prescrição não corra, deverá haver ação penal em curso, pois, logicamente, para que haja sentença, deve haver um processo. Assim, não havendo providência na esfera criminal, o prazo prescricional cívil correria normalmente. Então, segundo esta construção, a decisão está perfeita.
No entanto, a regra civil comporta interpretação diversa (e inversa), pois, segundo sua redação, é perfeitamente possível entender que, para que seja aplicada, basta que o fato mereça apuração no juízo criminal, independentemente de efetiva existência de providência junto às respectivas autoridades. Entendemos que a averiguação do fato, segundo a regra, é uma imposição legal ao Estado – titular do direito de punir (jus puniendi). Ademais, o dispositivo fala em “juízo criminal”, o que nos leva a concluir que a expressão delimita, claramente, o campo de aplicação do dispositivo, não havendo que se falar em Inquérito Policial, como fez constar o eminente ministro relator do julgado, pois o juízo criminal é exercido por autoridade legalmente investida de jurisdição e dotada de competência para tanto, ou seja, o juiz.
Além disso, ao contrário do que restou consolidado no julgamento em questão, é de se indagar: haveria a imprescritibilidade da pretensão, caso o fato não chegue a ser apurado na esfera criminal? O questionamento é pertinente porque, além dos casos envolvendo a ausência de representação do ofendido perante as autoridades responsáveis pela apuração de infrações penais, o Direito Penal convive com a chamada “cifra negra”, que alberga aqueles casos em que, dentre outros motivos, o delito sequer chega ao conhecimento do Estado para a devida apuração e respectiva sanção. Seria um argumento a mais para afastar a necessidade de efetiva existência de apuração do fato na esfera criminal como condição para a aplicação do art. 200 do CC.
Por outro lado, e não menos importante, por questões de pacificação social e segurança jurídica, é certo que a pretensão não poderá ficar imprescritível, eis que o exercício de um direito não pode ficar pendente indefinidamente no tempo. Sendo assim, deve-se encontrar um meio de se harmonizar essas duas situações, de modo que a parte lesada não fique prejudicada pela inação do Estado, ao não promover a ação penal, tampouco se beneficie com a imprescritibilidade da pretensão. Nesse ponto, é de se concordar com Pablo Stolze Gagliano, que pertinentemente levantou a questão. Afigura-se justo que alguém sofra a ação do tempo pelo fato de o Estado-juiz não ter sido provocado?
Por todo o exposto, somos da opinião de que o art. 200 do atual Código Civil deve ser aplicado levando-se em consideração a natureza do fato causador do dano, isto é, deve-se observar tão somente se o fato merece apuração na esfera criminal. Se assim for, será o bastante para impedir o fluxo do prazo prescricional previsto no art. 206, § 3º, inciso V, do CC/2002, não havendo que se falar em relação de prejudicialidade.
. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .
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