Falando sobre Tabus para Derrubar Totens

13/04/2015

Por Maíra Marchi Gomes - 13/04/2015

 “Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios – isto é, perversos – aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos?” (ROUDINESCO, 2008, p.13).

Neste espaço já se falou sobre as possibilidades de articulação entre psicanálise e cinema, bem como sobre a pertinência de se dispor de obras ficcionais para se falar sobre violência sexual a um público que parece não suportar escutar a seu respeito: os operadores do direito (http://emporiododireito.com.br/tag/lolita/). E se apontou para o “quê” de horror ao gozo feminino teria nesta insuportabilidade.

Procurar-se-á, neste momento, aplicar algumas considerações psicanalíticas ao filme “Tabu”. Ainda que o filme tenha como personagem principal uma adolescente, acredita-se que os pontos de discussão aqui elencados podem ser aplicados em certa medida a situações de crime sexual envolvendo adultos e crianças, no que diz respeito ao conceito de violência sexual e sua tipificação e tratamento jurídicos.

Também se acredita que o filme em questão fale de algo comum ao psiquismo de homens e de mulheres porque, essencialmente, aborda os caminhos traçados pela feminilidade. Caminhos que podem levar homens e mulheres ao encontro de agressores e/ou violentadores, estejam eles na rua, em casa, na delegacia ou no tribunal.

Narra a história de Jasira, adolescente de 13 anos, que vive com a mãe norte-americana e o padrasto nos Estados Unidos, durante a Guerra do Iraque. Porque a mãe passa a considerá-la ameaçadora ao relacionamento dela com o atual companheiro, envia-a para morar com o pai, libanês, residente no Texas1. O filme constitui-se de relações entre a cultura mulçumana, a descoberta da sexualidade pela adolescente, e seu envolvimento com um soldado da marinha norte-americana vizinho do pai.

Já na primeira cena, apresenta-se o rechaço à sexualidade da adolescente. Nela, o padrasto depila Jasira. A mãe da menina, encontrando indícios do fato, indaga a filha a seu respeito na presença do padrasto2. Ambos confirmam, e ele ressalva que só o fez porque a adolescente havia pedido. É neste momento que a mãe encaminha-a para morar com o pai, não sem antes, ao chorarem na despedido no aeroporto, dizer-lhe que a responsabilidade pela dor que ambas sofriam era da garota.

A mãe parece haver entendido que a filha, com a “extirpação” de caracteres sexuais secundários propriamente masculinos (o pêlo), procurava, com seu ato, destacar seu oposto: os caracteres sexuais secundários femininos. E é isto que foi insuportável à mãe: tomar a filha como mulher.

Esta metáfora da depilação volta a surgir em outros momentos do filme, parecendo em todos eles guardar este sentido: o dar vistas à feminilidade adulta. Metáfora esta que parece indicar a fixação trazida pela repressão da mãe a sua sexualidade.

Nesta direção, cabe mencionar a cena em que a adolescente, trabalhando de babá em casa vizinha àquela em que passou a morar com o pai, encontra um aparelho de barbear e passa suavemente sobre seu antebraço. A propósito, e não ao acaso, aparelho do homem com quem virá a se relacionar posteriormente. A depilação também surge na relação dela com outro adolescente, cujo contato sexual inicia, numa cena em que se masturbam, por ele atender seu pedido de lhe dar um aparelho de barbear da mãe. Tal contato continua em uma cena na qual ele se propõe a depilá-la (o que ela aceita).

Nesta relação entre os adolescentes, torna-se, portanto, mais evidente o desejo de, tirando os pêlos, mostrar-se uma mulher adulta. E, não menos importante, de que um homem descubra isto que há por baixo dos pêlos (a feminilidade de uma mulher) a partir de um caminho apresentado por uma mulher (representado pelo barbeador, que era de uma mulher - no caso, a mãe do adolescente -).

Parece, portanto, que o traumático não foi (ou pelo menos não apenas) a mãe acreditar no padrasto em detrimento da filha, mas de não chancelar a possibilidade de que ela desejasse um contato sexual com um homem que representava seu pai (padrasto). E, ainda mais necessário de ser dito: que o traumático não foi o que o padrasto fez ou deixou de fazer.

É possível até pensar que o contato da adolescente com o padrasto, o adolescente e o vizinho (já morando com o pai) foram uma busca de que um homem a reconhecesse como portando uma sexualidade feminina adulta, e isto com autorização de uma mulher. Não é ao acaso que ela insiste algumas vezes em conversar com o vizinho a respeito de sua excitação ao acessar fotos de mulheres nuas. Ela chega inclusive a lhe pedir revistas emprestadas, explicitando honestamente que é porque elas as permitem ter orgasmo. Vê-se que as figuras de mulheres nuas aqui parecem representar a busca de uma mulher que lhe autorize a exercer uma sexualidade adulta com um homem.

De qualquer modo, o vizinho trata de forma moralista esta demanda, o que se evidencia na passagem em que ela diz-lhe que gostaria de ser como aquelas mulheres. Ele responde “você não é esse tipo de mulher!”. Porém, responde com atos3, que iniciam por lhe presentear com estas revistas, e termina por dois episódios de estupro (penetração de dedo em um – não-consensual -, e de pênis em outro – consensual -).

O que ela precisava escutar para elaborar seus conflitos ela escutou apenas após ser estuprada, e de uma mulher4. Está-se referindo à cena em que uma vizinha folheia uma destas revistas junto dela, e inicia um diálogo sobre as fotos produzidas por aqueles periódicos. Diz à adolescente que não gosta de vê-las porque, ainda que saiba que todas as fotos são submetidas a photoshop, sente-se feia, complementando que isto provavelmente ocorreria com muitas mulheres. Ela também pontua que os efeitos também seriam negativos para os homens, que viriam a procurar mulheres que atingissem aquele padrão.

Jasira, sentindo-se confortável em um diálogo "de mulher para mulher", indaga-lhe se é possível alguma mulher gostar de ver aquelas revistas. A mulher responde “pode ser...”. Pouco depois, a mesma mulher diz-lhe: “ninguém tem nada a ver com o que você pensa enquanto vê estas revistas”. Esta mulher parece autorizar, com sua fala, Jasira a desejar, independente do modo que isto se der, e, além disto, dizer-lhe que isto é do campo do privado.

Há uma passagem em que Jasira bem diz de seu desejo ao vizinho. Desejo que, como já dito, ele não soube/pôde escutar, porque a ele respondeu com moralismo ou atuação. Ela lhe fala, comparando-o ao adolescente com quem ela havia se envolvido após o episódio em que este vizinho rompeu seu hímen com o dedo: “Ele é melhor que você. Só me toca se eu deixar!”. O vizinho ouve o que ela diz ao pé-da-letra, e interpreta seus atos de sedução das cenas seguintes como sinais de que ela o deixaria tocá-la. E ele o faz, em um segundo momento, penetrando-a com o pênis.

Na relação com o pai, este rechaço da feminilidade da adolescente também se mostra de maneira muito clara, permitindo hipotetizar que na mesma série traumática insere-se o discurso da mãe, do pai, o contato com o adolescente e o ato do vizinho.

Sobre este núcleo (pai-filha), cabe citar inicialmente a passagem em que a adolescente e o pai estão no mercado, escolhendo absorventes após a menina haver ficado menstruada pela primeira vez. Uma senhora procura auxiliá-los, sugerindo determinados marca e tipo a partir do critério do “conforto”. O pai contrapõe, explicitando que seu critério será o custo. Ou seja, o pai diz que a feminilidade não deve ser uma condição em que se deva transitar com conforto, mas que é uma condição custosa, e assim deve permanecer. Ou melhor: que na feminilidade deve-se investir o menos possível, e não buscar uma maneira de, nela investindo, torná-la menos custosa.

Em outras cenas o mesmo discurso do pai aparece. Por exemplo, quando ele não atende ao convite de sua namorada de que olhe a filha, após tê-la maquiado. Mesmo sem olhar (ou porque não pôde olhar), ele determina, tão logo fica a sós com a filha, que ela retire a maquiagem. Na mesma série, inclui-se a passagem em que sua namorada sugere à Jasira que seja modelo posto ser muito bonita, a quê o pai responde (em nome da filha) que ela será engenheira ou babá. Pode-se entender, associando esta cena com outras que aqui serão analisadas, que ele aqui diz que se ela não se masculinizar (considerando o estereótipo de masculinidade atribuído à engenharia), resta a opção da função da mulher junto ao lar; qual seja: a de mãe (atendo ao estereótipo de maternagem atribuído à profissão de babá).

Este rechaço da feminilidade, aqui entendida enquanto sustentação da identidade sexual, também pode ser pensada a partir da cena em que o pai diz à filha, após exigir que ela lhe mostre determinado objeto: “nada do que é seu é particular!”. Como se ele, com o rechaço da feminilidade, impedisse a subjetivação da filha.

Até mesmo, poder-se-ia refletir no mesmo sentido, que este rechaço da feminilidade dissesse de sua surpresa por alguém poder subjetivar-se a partir de outra relação com o ordenamento fálico. Nesta direção, cabe a menção à fala do pai sobre determinadas pessoas haverem perguntando de Jasira: “mesmo quando você está longe, é o foco das atenções. Não sei como consegue...”. Parece tratar de uma surpresa ao constatar que alguém estruturar-se para ser desejado pelo outro (lógica feminina), suplantando, portanto, a lógica do desejar o outro (lógica masculina).

Nada do que a filha vem a fazer agrada-lhe. A não ser quando serve para destacar o seu (do pai) ego. Neste sentido, cita-se os momentos em que ele demonstra com palavras ou expressões não-verbais sua alegria para com a filha. Em um deles, ele lhe diz “eu tenho orgulho de você”, o que se dá após ela intervir ao seu lado em uma discussão entre o pai e um terceiro. Em outro, ele olha sorrindo para ela, após concluir que ela lhe defendeu frente a um comentário de um terceiro. Ou seja, a filha é desejada quando, a partir dela, em uma disputa imaginária com um outro, ele for o mais potente.

Porém, a cena ícone deste discurso do pai que rechaça a feminilidade e exalta a masculinidade é aquela em que, arrependido por haver desferido um tapa na filha (motivado por havê-la presenciado com uma roupa que ele considera inadequada – leia-se “sedutora” - na primeira manhã em que tomariam café juntos), diz-lhe “Tudo bem. Eu te perdôo!”. A mensagem parece ser: “você só é admirável quando, a partir de você, eu me admirar”.

É inclusive a partir deste rechaço ao feminino que se pode refletir a respeito do conflito entre o pai da adolescente e o vizinho. Um conflito de cunho político; e, mais especificamente, bélico. Assim, melhor entende-se o discurso de extermínio ao feminino.

Entre eles há uma disputa de, nas palavras de um deles, saber “quem é mais patriota”. Daí não só a preocupação quanto a melhor forma de hastear a bandeira norte-americana, mas também a suspeita do vizinho que o pai de Jasira era partidário de Saddam Hussein. Nesta mesma direção, de seu lado, o pai de Jasira precisava mostrar que não gostava de Saddam, a ponto de interpretar qualquer colocação considerada inadequada por parte do vizinho como se proviesse de uma acusação de que ele gostava de Saddam Hussein. Talvez não suportassem reconhecer o quão iguais eram.

Iguais em um discurso patriota e bélico, manifesto, por mais paradoxal que possa (ainda) parecer, em uma apologia ao extermínio de Saddam Hussein e do que ele representa. Não é ao acaso que, por meio do discurso do pai da adolescente, um flexível posicionamento perante a guerra, a ponto de ser modificado de acordo com a relação da qual estão falando, e, principalmente, de acordo com quem seria o submetido ao regime de Hussein.

Nesta direção, cabe a fala do pai de Jasira sobre o vizinho: “Será convocado. Aí Saddam acaba com ele. Terá o que merece!”. Na mesma série, cabe mencionar a fala do pai “americana ignorante”, como maneira de desqualificar uma certa senhora, bem como a frase em que explicita seu posicionamento ambivalente perante a guerra: “concordo com alguns pontos, e discordo de outros”.

Parece que o que está em questão, acima de tudo, é sustentar uma representação imaginária de um para com o outro em que ambos são inimigos (porque iguais). Neste sentido, é pertinente citar a passagem em que a adolescente ouve do pai “Imbecil. Ele [o vizinho] acha que eu gosto de Saddam”. Ela o indaga “Falou para ele que não gosta?”. A resposta: “Falei nada. Ele é nada!”. Portanto, partidários de Saddam Hussein ou Estados Unidos, o que era fundamental era o extermínio.

Talvez inclusive tenha sido tal discurso bélico algo que tornou difícil, pelo menos por parte da adolescente, reconhecer e legitimar sua feminilidade que não a partir de atos reprováveis, puníveis, interditados, que demandam repressão por parte de um soldado. Nesta direção, cabe lembrar que a construção de sua identidade como sendo “aquela que transgride” é mostrada tanto no explícito exercício de sua sexualidade junto ao soldado, mas na sua exclusão na escola (ou seja, no papel de cuidada) e na atividade de babá (em outros termos: no papel de quem cuida).

A exclusão do exercício destes papéis de cuidada e cuidadora fundamenta-se em preconceitos (são-lhe dirigidas, em tom de ofensa, palavras como “negra do deserto”, “turbante”, “muçulmana”) e, até, em acusações explícitas de que ela seria “terrorista”. Como se lhes dissessem que a ela não restará alternativas que não a da transgressão para, só a partir daí, cuidar e ser cuidada. Ou melhor, que, para se relacionar, ela precisaria ser reprimida.

O filme também vai tocar nesta esfera do preconceito-terrorismo quando retrata o preconceito racial do pai, que dificulta o relacionamento entre Jasira e um adolescente, que ele chama de “negrinho”.

Na relação entre a adolescente e o adulto não é diferente. Ele vinha resistindo a abordá-la, até porque havia se assustado ao constatar que havia rompido o hímen da menina com os dedos (o que teria ocorrido, segundo ele diz a Jasira, por pensar que ela já não fosse virgem). Tal resistência só é quebrada quando ele presencia o adolescente acima citado saindo da residência da adolescente. Na continuidade da cena, ele vai até a residência da adolescente, e eles mantêm contato sexual genital.

Poder-se-ia pensar que o motivador teria sido ciúmes. No entanto, quando se associam outros dados, evidencia-se que os significantes relacionados a preconceito, racismo e terrorismo foram aqueles por onde seduziam-se, e por onde um era inscrito no imaginário do outro. Tais dados são:

1) ele utilizar como argumento para que ela lhe deixasse entrar em sua casa na noite citada o fato de haver sido convocado para a guerra, e, então, precisar partir no dia seguinte (o que nunca ocorreu);

2) em diálogo anterior, ele haver dito que gostaria de ser convocado, indagando em seguida se ela lhe escreveria caso isto ocorresse;

3) na cena, também anterior a qualquer contato sexual entre os dois, em que ela o entrevistava para um trabalho da escola (o assunto era sua condição de reservista), ela lhe haver perguntado por que motivo ele tinha preservativos em sua mochila de guerra, e ele haver respondido, sedutoramente, “por que você acha?”;

4) ao final do filme, dentre os vários signos que denotaram o fim (ou a modificação) do relacionamento de ambos, encontrar-se o vizinho recolhendo a bandeira norte-americana quando Jasira lhe procura para conversarem, estando ambos já em outros papéis no imaginário um do outro.

O discurso bélico também já era o organizador da relação entre Jasira e seus pais. Nesta direção, cabe citar que, no telefonema já referido de Jasira para a mãe, a adolescente queixa-se do pai. Sem qualquer aprofundamento sobre a que se referiam tais queixas, a mãe responde “se o seu pai exagera, você tem que ajustar sua conduta!”. Pouco depois, a mãe diz algo de mesmo sentido: “se ele disse que não pode, tem algum perigo nisto!”.

Neste diálogo, há uma particular questão a ser debatida: a ideia de que o retraimento de sua conduta, uma docilidade, deve ser resposta a um exagero, e, não menos importante, a concepção naturalização da repressão.

Ao final da obra, o pai pôde inesperadamente falar à filha, enquanto assistiam ao parto da vizinha já citada, que não suportou vê-la nascer. E talvez naquele momento ele estivesse dizendo de quanto não suportou presenciar o despertar da feminilidade da adolescente. É também nesta cena que ele pode dizer a Jasira que ela é “uma boa menina”. E chorar.

Jasira, por sua vez, pôde, sozinha, auxiliar a uma mulher vir à luz (é uma criança do sexo feminino a quem se dá a luz naquele instante). Sozinha, sem intervenção de nenhum operador do Direito5.

Não pode ser desconsiderado o fato de tal cena suceder aquele em que ela diz “eu quis, mas foi sem querer. Achei que tinha que fazer”. Ou seja, após elaborar seu desejo, inconsciente, de autorizar alguém a violentá-la (psíquica, moral e fisicamente). Alguém que fosse parecido com o pai. Alguém que também respondesse com atos de extermínio a sua sexualidade feminina.

Por fim, cabe lembrar da participação do vizinho no nascimento desta menina filha da vizinha, já que foi ele o maior responsável por ela haver sido socorrida quando mais precisava. Seu ato violento pode ser compreendido a partir do significante organizador de sua relação com o pai de Jasira: a guerra. Porém, da parte da adolescente, ela pôde, a partir de uma resposta jurídica menos repressiva e um ambiente que não rechaçava seu desejo (a vizinha referida e seu esposo), representar o que sofreu como uma transgressão por parte do vizinho, e não como violência.

Não é ao acaso que ela, no último diálogo entre eles, procura-o para entregar uma gatinha, de propriedade do vizinho e que havia sido atropelada pelo pai em uma noite em que escapou da residência. A adolescente e o pai haviam-na congelado, no intuito de o vizinho não saber o que, mesmo não intencionalmente, o pai havia feito. Esperavam o dia em que passaria o caminhão do lixo para depositá-la.

Com seu ato, Jasira diz ao vizinho que não estabelece com ele uma relação conforme a que o pai estabelece. Logo, que não o compreende como violentador e que não se reconhece como violentada, mas como alguém que se colocou em risco, “sem querer”, e desejando.

Em seguida, no mesmo diálogo, o vizinho refere-se espontaneamente ao que se passou entre eles dizendo “a culpa não foi sua!”. A culpa não foi dela nem de ninguém, mas o desejo foi de todos. Resta-nos pensar se o Direito respondesse de outra maneira (por exemplo, condenando o vizinho, afastando-os, etc.) o vizinho poder-lhe-ia ter dito isto, e ela também poderia elaborar a posição que assumiu perante o mesmo, que repetia aquela em que se colocava na relação com a mãe, o padrasto e o pai.

Sim....é possível que se elabore a violência sexual. E, principalmente, que o melhor para o psiquismo de uma vítima de violência sexual não seja a criminalização do autor. Nesta direção, cabe demonstrar a bela apresentação feita por MEZAN (2004, p.20) das possibilidades de elaboração psíquica e fixação traumática de violência sexual sofrida, ao comparar as saídas dos irmãos protagonistas do filme "Vaghe Stelle dell'Orsa" frente à violência sexual incestuosa que cometeram e sofreram entre si quando crianças:

“há sedução e responsabilidade de ambos os lados. Ela, que por ser mais forte psiquicamente consegue sair da armadilha e abrir-se para o amor de outros homens vai desposar, num exemplo cristalino do que denominamos formação reativa, um estrangeiro completamente alheio à sua cultura). Ele, mais frágil e atolado numa problemática identificatória mais aguda, não consegue se libertar da solução que, num certo momento, garantiu um mínimo de estabilidade e de densidade à imagem que tinha de si mesmo; busca repetir o impossível, e, cego e surdo ao que contradiz sua onipotência, cava a própria sepultura” (grifo do autor)

Esta obra de Visconti mereceria uma análise a parte, semelhante ao que fez MEZAN (2004). Porém, para o momento basta considerarmos pelo menos as duas saídas de vítimas de violência sexual (formação reativa - saudável - e identificação maciça à insígnia de vítima - problemática -), bem como a mensagem implícita de que nem sempre é clara a distinção entre vítima e autor. E, ainda, mesmo que o seja, a pergunta sobre a quem isso interessa.

Para além da possibilidade de se pensar na ideia paranoide de que o mundo divide-se entre bons e maus, pode-se pensar na possibilidade (mais assustadora!) de que uma lógica neurótica mova os operadores do Direito a, de forma a atender ao seu desejo e não o de nenhum dos envolvidos na situação de violência sexual, não apenas judicializar tal situação, mas tratá-la com o propósito punitivo e não protetivo. Com o foco no autor, portanto, e não da vítima.

FREUD (1930) diz que o furor condenatório do ordenamento penal compõe-se do mesmo material da transgressão. O conteúdo seria o mesmo em ambas as posições perante a lei, mudando apenas a posição do sujeito perante seu desejo. Algo como "como ousas tu, que fazes o que desejo e não faço?". Na mesma direção, encontra-se em RAMOS (2002. p.57) que:

“Assim como o neurótico pode apresentar-se através de um comportamento rebelde em razão das normas legais, a doença pode manifestar-se ao contrário, apresentando o neurótico como um ferrenho defensor das normas legais, um verdadeiro paladino. Existem também aqueles que se transformam em demandistas juramentados. Estes procuram aliviar suas angústias travando batalhas no campo do Direito figurando como autores ou réus através de inúmeras ações na justiça”

Parece paranoia. Parece perversão. Mas às vezes é (só?) neurose. Parece vítima, mas às vezes não é só isso. Parece autor, mas é mais que isso. Parece operador do direito, mas às vezes é autor.


Notas e Referências: 

FREUD, S. (1930/1996). O mal-estar na civilização. Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago.

MEZAN, R. O ponto de fuga: sedução e incesto em Vaghe Stelle dell'Orsa. Percurso, 33(2), Instituto Sades Sapientiae: Rio de Janeiro, 2004. p.7-20.

RAMOS, C. Direito e psicanálise. Rio de Janeiro: Reproarte, 2002.

ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

TABU. Direção: Alan Ball. Roteiro: Alan Ball. Produção: Ted Hope. Estados Unidos: California Films, 2011.

1 Não deve ter sido ao acaso a escolha deste Estado, sendo o filme ambientado na época em que o foi.

2 Não se sabe como a cena inicia, mas, como se verá adiante, é insignificante de quem foi a proposta de depilação, posto que ali há desejos de ambos, independente da maneira com que se manifestam. E, além disto, entender-se-á que o que será traumático não será este ato, mas a reação daquela que dela teve notícia.

3 Posteriormente abordar-se-á os motivos de sua resposta ser pela via do ato. Motivos que recaem nos signos que organizam sua relação com o pai da adolescente.

4 Como se perceberá, o homem, aqui, parece ser o portador de uma lógica fálica que se pretende universal, exterminadora do feminino.

5 Ele é preso, mas liberado após pagamento de fiança.


Maira Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         


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