Por Edilson Santana G. Filho - 13/10/2015
O título deste texto faz alusão a outro, publicado em 12 de outubro de 2015 no jornal Estadão[1]. A falta de nexo entre as questões postas na frase (instituição com atribuição para atuar em causas de grande repercussão midiática x autonomia da Defensoria) bem reflete a fraqueza de fundamentos lá constante. Foi o próprio editorial do jornal que publicou, em matéria denominada “A autonomia da Defensoria”, a afirmação de que “não faz sentido o órgão concentrar a atenção sobre litígios coletivos e de repercussão midiática, como os relativos ao Enem e ao Fies, que são de competência do Ministério Público”.
A afirmativa, já de início, vilipendia as funções do Parquet, instituição prevista no artigo 127 e seguintes da Constituição Federal, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, independente da repercussão midiática do caso.
Já a suposta concentração sobre litígios coletivos por parte da Defensoria Pública é uma falácia. A grande maioria dos casos tratados pela instituição é de natureza individual. Somente quando necessárias à defesa de direitos de grupos vulneráveis são ajuizadas ações coletivas. A legitimidade para tanto, já prevista em lei e no próprio texto constitucional, foi ratificada pelo Supremo Tribunal Federal através do julgamento, por unanimidade, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3943.
É necessário desfazer a confusão realizada pelo editorial. A autonomia da Defensoria Pública não tem relação direta com a natureza do litígio (individual ou coletiva) e é desinteressada, por completo, da repercussão midiática que por ventura possa advir.
O surgimento do constitucionalismo veio em superação à ideia vigorante na Idade Média de que os direitos constituíam privilégios de determinadas categorias sociais. Daí a disposição constante na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual já em seu primeiro artigo estabelece que os homens nascem e são livres e iguais em direitos.
Tais direitos, expressados no final do século XIX, não foram criados naquele período, na medida em que derivam da própria natureza humana. Eles preexistiam. Foi preciso, contudo, declará-los em um documento que expressamente os reconhecessem, (re)dizendo o óbvio.
O reconhecimento formal de direitos anteriores às próprias instituições políticas que posteriormente os afirmaram visava atribuir-lhes o dever de assegurá-los e protege-los. Bem por isso, avançando em buscar deste imperativo, o constitucionalismo liberal passou a definir os direitos fundamentais e demais princípios de limitação do poder estatal em texto normativo formal e solene, a Constituição, reconhecida a esta, posteriormente, a normatividade necessária à imposição de seus mandamentos.
Foi com esse intuito, de assegurar o exercício de direitos e aprimorar o sistema de justiça, que a Constituição Federal de 1988 previu a figura da Defensoria Pública. A previsão inicial se mostrou insuficiente para o desempenho da missão incumbida à instituição, vocacionada à orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e à defesa do necessitado, razão pela qual a Carta Federal foi aprimorada com o advento das Emendas Constitucionais 45 de 2004 e 74 de 2013, que atribuíram autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias às Defensorias Públicas.
Referida autonomia se mostrou imprescindível à necessária independência de instituição que litiga diariamente com o Poder Executivo, o mesmo que deveria, nos termos históricos-constitucionais acima mencionados, proteger e efetivar direitos fundamentais. Daí o embate institucional, com o fito de fazer efetivos tais direitos, inclusive o próprio acesso à justiça.
No âmbito federal, por exemplo, trata-se do mesmo Poder ao qual encontrava-se absolutamente vinculada a Defensoria Pública da União até o ano de 2013 (quanto do advento da EC 74), autor da ADI que visa retirar a autonomia da instituição, mas que, contraditoriamente, manteve a mesma funcionando em regime emergencial durante aproximadamente vinte anos[2], com ausência de defensores públicos em quase oitenta por cento das seções judiciárias do país, sem carreira de apoio e com estrutura física precária.
O pensamento então em voga na Idade Média, citado no início, parece ter se incutido de tal maneira no corpo social que ainda em tempos hodiernos há quem pense que determinados direitos pertencem à certas castas. O que dizer, portanto, de uma instituição voltada à defesa dos pobres e grupos vulneráveis? Um ente cuja missão é incluir os excluídos. Não é difícil notar por quais razões a expansão da Defensoria Pública encontra tantas resistências.
Na mesma sintonia, dizer o óbvio parece ser algo ainda imprescindível em nosso tempo. Foi isso que fez a Ministra Rosa Weber, relatora da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5296, ao proferir voto pelo não acolhimento de Medida Cautelar na ação que visa julgar inconstitucional a EC 74/2013[3]. A manifestação da Ministra encontra-se em consonância com opiniões de especialistas, a exemplo do que escreveram os professores Daniel Sarmento[4] e Pedro Lenza[5]. Inesperado pedido vista foi realizado pelo Ministro Edson Fachin, suspendendo o julgamento desta e de mais três ações envolvendo a Defensoria Pública brasileira, sendo este o segundo adiamento.
Aguardemos decisão final, para que a Corte, a exemplo do que repete a história, rediga o já dito, o ululante. Ao editorial do Estadão, que fique, por fim, esclarecido: A Defensoria Pública não é e nem pretende ser “um novo” Ministério Público. E que o Ministério Público também não pretenda ser Defensoria Pública; A missão dos Defensores Públicos é, também, discutir políticas públicas, como forma de dar concretude ao previsto no artigo 134 da Constituição e na Lei Complementar 80.
Notas e Referências:
[1] Disponível em http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-autonomia-das-defensorias,1778039. Acesso em 12.10.2015.
[2] A lei 9.020 de 1995 dispõe sobre a implantação, em caráter emergencial e provisório, da Defensoria Pública da União e dá outras providências.
[3] Sobre o julgamento, conferir notícia publicada no portal do Supremo Tribunal Federal: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=301438. Acesso em 12.10.2015.
[4] Autonomia da DPU e limites ao poder de reforma da constituição. Disponível em:
http://s.conjur.com.br/dl/parecer-daniel-sarmento-autonomia.pdf. Acesso em 12.10.2015.
[5] Exigir subordinação da defensoria pública é ir contra a constituição federal. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-abr-22/pedro-lenza-subordinacao-defensoria-publica-significa-afrontar-constituicao. Acesso em 12.10.2015.
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Edilson Santana G. Filho é Defensor Público Federal. Especialista em Direito Processual. Professor de Direito Constitucional.
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