Estudos sobre sistema processual penal: quadros mentais paranoicos, criminologia e ilusões perceptivas

20/02/2017

Por Paulo Incott – 20/02/2017

Existem temas em Direito Penal, Criminologia e Direito Processual Penal que precisam ser “martelados”. Precisam ser constantemente relembrados e rediscutidos devido a relevância do objeto sobre o qual se dedicam.

Exemplo típico é a questão envolvendo a identificação perniciosa entre o Ministério Público e o Juiz e a relacionada problemática da imparcialidade do Juiz Criminal, principalmente no tocante a impossibilidade de não “contaminação” de sua capacidade deliberativa (competência) através da cognição primária a partir do inquérito.

Esses temas são em geral abordados pelo viés da análise dos sistemas processuais – inquisitório e acusatório. Pretende-se neste momento oferecer uma reflexão a partir de um paradigma argumentativo complementar à estas análises.

Em sintética redação busca-se colacionar lições multidisciplinares acerca da impossibilidade de imparcialidade jurisdicional dentro da sistemática de condução processual com a busca da prova (dos elementos de convencimento) pelo juiz. Os breves apontamentos neste sentido serão dados com fundamento em conteúdos trazidos pela doutrina processual penal, pela psicologia e através da criminologia crítica.

Partamos da doutrina. Aury Lopes Jr, discorrendo com base nos ensinamentos de Jacinto Coutinho e de Franco Cordero, leciona que a abertura de poderes instrutórios ao juiz configura genuína admissão do princípio inquisitivo no processo penal, em clara afronta ao estabelecido pela Constituição da República. Ao fornecer contato primário do juiz com o material colhido no inquérito, colocando-o como peça inaugural do processo, permite-se que este construa em seu quadro mental, quer se aperceba disso quer não, um pré-juízo a respeito do acusado dali em diante.

A consequência nefasta disso se percebe no fato de que o juiz forma com base nas “provas” do inquérito uma hipótese concreta, conduzindo sua concentração estruturante na busca de elementos que confirmem a hipótese aventada. Conforme denuncia o autor, reproduzindo a fala de Cordero, o juiz passa a fazer “quadros mentais paranoicos”[1]. Sim, pois por mais lúcido que este seja não conseguirá se “desprender” daquilo que por ele já foi “apreendido” quando entrou em contato com o inquérito. Estará voltado, de forma consciente ou não, para obtenção de dados que confirmem suas crenças obtidas com esse contato. Nas palavras de Coutinho, trazidas por Aury Lopes Jr:

Abre-se ao juiz a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar sua versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade de crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro.[2]

Adicione-se agora às lúcidas conclusões mencionadas aquilo que a Criminologia Crítica de forma tão cristalina demonstrou: o sistema penal possui “clientes preferencias”, que são selecionados na atuação cotidiana de seu aparato operacional.

De fato, a probabilidade de o juiz se deparar no processo com um indivíduo fortemente estereotipado é enorme. Pode-se dizer que será a regra, com raríssimas exceções. Existem neste ponto duas observações relevantes para o modesto propósito deste escrito: uma primeira se volta para o fato de que a jurisdição penal coloca frente a frente dois seres completamente distintos, com realidades sociais monstruosamente diversas.  Não é preciso uma pesquisa muito extensa para se notar que quase a totalidade dos nossos magistrados provém das classes mais privilegiadas da sociedade, enquanto os selecionados pelo sistema penal são extraídos justamente das camadas mais débeis desta.

Isso possui um profundo significado para o processo penal porque todos carregamos os pré-conceitos fabricados no meio em que vivemos e fomos educados. Seria ingênuo e perigoso acreditar que ao entrar em contato com o acusado ou mesmo ao simplesmente saber seu endereço de residência o juiz já não forme imagens e conceitos sobre este. Note que este pré-julgamento a respeito de outros acontece de forma natural em nosso aparelho psíquico, como resultado das concepções compartilhadas numa sociedade fortemente estratificada. O problema é que a forma com que se conduz o processo penal, aliada ao abismo social entre os atores, torna o desfecho significativamente previsível, com prejuízo ao acusado.

Num segundo prisma a Criminologia Crítica traz à tona a existência de meta-regras ou regras de interpretação alheias ao regular processo decisório que findam por formar determinações (ainda que não completamente determinantes) padronizadas de julgamento. Baratta explica:

...o conceito de regras de aplicação não fica limitado às regras ou aos princípios metodológicos conscientemente aplicados pelo intérprete, mas se transforma no plano das leis e dos mecanismos que agem objetivamente na mente do intérprete e que devem ser pressupostos para uma explicação sociológica da divergência entre delinquência reconhecida e delinquência latente. As meta-regras participam da estrutura socialmente produzida pela interação... que formam a substância de sentido de qualquer situação ou ação[3] 

Conforme a lição trazida pelo jurista italiano todo processo de avaliação na sociedade parte de “regras de aplicação” condicionantes; não as formadas por um aparato teórico lógico-racional que fundamenta decisões jurisdicionais corretas, mas formadas pelo “caldo cultural” em que o julgador se vê inserido.

Depreende-se da contribuição destas duas ilações trazidas pela Criminologia Crítica que o diagnóstico de possibilidade de uma decisão imparcial dentro do processo penal na sistemática fundada pelo CPP de 1941 é bastante questionável.

Se permitirmos que a psicologia jurídica contribua com suas ponderações será ainda menos factível sustentar a já frágil afirmação de que nosso sistema processual penal possui feição acusatória (sob o primado da imparcialidade jurisdicional).

Nos estudos deste ramo do conhecimento foram produzidos conceitos que permitem a compreensão da formação do raciocínio e dos impulsos que movem o ser humano na construção de valores, significações, sentidos, etc.  Permitem também antecipar, claramente com alguma margem de imprecisão, ações e reações típicas. A neurociência tem corroborado os achados da psicologia, o que reforça sua importância.

Dentre os conceitos formatados pela psicologia um interessa particularmente a análise que está sendo conduzida aqui: o conceito de ilusão perceptiva.

A percepção é definida como a “interpretação da imagem mental resultante da sensação” ou como “um processo de transferência de estimulação física em informação psicológica”[4]. As sensações ou informações podem ser recepcionadas por qualquer um dos sentidos, quer ao entrarmos em contato com outra pessoa, quer ao lermos um texto, escutarmos uma melodia, etc.

Ocorre que nossas percepções não são sempre fidedignas, ou melhor, nunca se deve acreditar que percebemos um fenômeno, por mais simples que pareça, em sua completude porque estamos sempre limitados por diversos fatores, como o conhecimento prévio que temos daquele fenômeno ou o grau de precisão dos nossos sentidos ao captá-lo.

O que interessa neste momento são as conclusões oferecidas pelos estudos de psicologia acerca dos mecanismos que interferem na percepção.

Neste sentido, as pesquisas demonstram que “o indivíduo percebe de acordo com suas expectativas”[5]. Isso significa que nosso cérebro é altamente treinado para confirmar aquilo que pensamos saber a respeito dos fenômenos com os quais entramos em contato. Sem que controlemos este processo completamente, nosso cérebro seleciona aspectos que permitam o reforço de nossas crenças prévias.

Seguindo nesta linha outras frentes de estudo comprovaram a “existência de componentes culturais na percepção de ilusões, ou seja, a ilusão tem a ver com expectativas socialmente ajustadas”[6].

Não é difícil perceber o impacto que estas conclusões exercem sobre o que já foi elucubrado neste texto acerca dos pré-juízos formados pelo julgador à medida que vai em busca da prova no processo penal. Esta atuação de sua parte fulmina a necessária imparcialidade, corolário do sistema acusatório (democrático). De igual forma, ao inaugurar sua análise pelas peças do inquérito o magistrado forma toda uma “figura de fundo”[7] sobre a qual se projetarão as demais peças processuais, em detrimento do conteúdo de convencimento destas.

Os apontamentos feitos aqui apenas esboçaram de forma muito sutil as valiosas lições multidisciplinares que podem desanuviar os problemas que o processo penal brasileiro enfrenta para atingir o status de democrático e constitucional. Espera-se que esta contribuição possa servir de incentivo a novas reflexões, futuros escritos e a provocação do debate acerca de importantes institutos concretizadores de um sistema processual penal que seja reflexo de uma teoria de direito adequada ao modelo de Estado estampado no art. 1º da Constituição da República.


Notas e Referências:

[1] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 129

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. In: LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 129

[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014. p. 105

[4] FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 06

[5] Idem, p. 10

[6] Idem, p. 12

[7] Idem, p. 11

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.

FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2016

LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014.


paulo-incott. . Paulo Incott é Advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduando em Criminologia. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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