Estado de necessidade é uma situação de perigo atual de interesses legítimos e protegidos pelo Direito, em que o agente, para afastá-la e salvar um bem próprio ou de terceiro, não tem outro meio senão o de lesar o interesse de outrem, igualmente legítimo.
Configura estado de necessidade, por exemplo, a situação do agente que, em ocasião de incêndio ou desastre, invade domicílio alheio para salvar as pessoas que lá se encontram em perigo. Também o caso do náufrago que, de posse de apenas um colete salva-vidas, deixa que outros companheiros se afoguem no mar. Ou ainda a situação do agente que, no intuito de socorrer pessoa gravemente enferma, furta um automóvel para transportá-la ao hospital.
O estado de necessidade é uma causa excludente da antijuridicidade que vem prevista no art. 23, I, do Código Penal, tendo seus contornos delimitados pelo disposto no art. 24 do mesmo diploma. Assim, embora o fato seja considerado típico, não há crime em face da ausência de ilicitude.
O estado de necessidade requer, para sua configuração, a concorrência dos seguintes requisitos:
a) Existência de um perigo atual: perigo atual é aquele que está acontecendo. Embora o Código Penal não mencione expressamente, parcela da doutrina e jurisprudência vêm admitindo o estado de necessidade também quando ocorrer perigo iminente, que é aquele que está prestes a acontecer, aplicando-se, no caso, analogia “in bonam partem”. Essa posição, entretanto, não é pacífica.
b) Ameaça a direito próprio ou alheio: significa que o agente pode agir para evitar lesão a bem jurídico seu (estado de necessidade próprio) ou de terceiro (estado de necessidade de terceiro), não sendo necessário qualquer tipo de relação entre eles.
c) Inexigibilidade de sacrifício do interesse ameaçado: significa que a lei não exige do agente que sacrifique o seu bem jurídico para preservar o bem jurídico de terceiro. Ao contrário, admite que, para salvaguardar seu direito, o agente sacrifique o interesse também legítimo do terceiro. Deve também ser ponderada a proporcionalidade entre o interesse ameaçado e o interesse sacrificado.
d) Situação não causada voluntariamente pelo sujeito: significa que o agente não pode invocar o estado de necessidade, quando tenha causado a situação de perigo voluntariamente. A expressão “voluntariamente” utilizada pela lei indica dolo, sendo certo que, no caso de ter agido com culpa, o agente não poderá invocar o estado de necessidade.
e) Inexistência de dever legal de enfrentar o perigo: significa que o agente não pode invocar o estado de necessidade para a proteção de seu bem jurídico, quando tenha o dever legal de enfrentar a situação de perigo, como é o caso do bombeiro que se recusa a enfrentar o fogo para salvar vítimas de um incêndio, ou do policial que se recusa a perseguir malfeitores sob o pretexto de que pode ser alvejado por arma de fogo (art. 24, § 1.º, do CP).
f) Conhecimento da situação de fato justificante: significa que o estado de necessidade requer do agente o conhecimento de que está agindo para salvaguardar um interesse próprio ou de terceiro.
O foco do nosso artigo, entretanto, repousa sobre as duas teorias a respeito da ponderação de bens jurídicos no estado de necessidade:
Para a teoria unitária, não importa o valor do bem jurídico protegido em relação ao bem jurídico que está sofrendo a ofensa. O bem jurídico protegido pelo estado de necessidade pode até mesmo ser de menor valor que o bem jurídico ofendido pela conduta do agente. Ex.: para salvar sua integridade corporal, o agente acaba suprimindo a vida de outrem. Segundo essa teoria, portanto, não se faz qualquer ponderação de bens, ou seja, não se analisa a natureza dos bens jurídicos em conflito. Essa é a teoria adotada pelo nosso Código Penal, que, no art. 24, não estabelece qualquer diferenciação entre o estado de necessidade justificante e o estado de necessidade exculpante. O estado de necessidade é sempre causa excludente de ilicitude.
Já a teoria diferenciadora sustenta que, no estado de necessidade, é necessário considerar o valor dos bens jurídicos envolvidos na situação de perigo, traçando-se a ponderação de bens. Para essa teoria, de origem alemã, há diferença entre estado de necessidade justificante (excludente de ilicitude) e estado de necessidade exculpante (excludente de culpabilidade).
O Brasil não adotou a teoria diferenciadora, como ressaltado linhas acima, embora possa ela, em princípio, ser mais razoável, na medida em que soa no mínimo estranha a situação do agente que, para a salvaguarda de seu patrimônio, exposto a situação de perigo atual, provoca a morte de terceiro, alegando estado de necessidade.
É justamente no bojo da teoria diferenciadora que surge a dicotomia entre estado de necessidade justificante e estado de necessidade exculpante.
O estado de necessidade justificante ocorre quando o bem jurídico sacrificado é de menor valor que o bem jurídico salvo da situação de perigo. Ex.: para salvar sua vida, o agente sacrifica o patrimônio alheio. Nesse caso ocorre causa excludente de ilicitude.
No estado de necessidade exculpante, o bem jurídico sacrificado é de valor igual ou superior ao do bem jurídico salvo da situação de perigo. Ex.: para salvar seu patrimônio, o agente sacrifica a vida de outrem, provocando-lhe a morte. Ou ainda, para salvar sua própria vida em situação de perigo, o náufrago vem a causar a morte de outra pessoa que se encontrava na mesma situação. Nesse caso, ocorre uma causa excludente de culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa).
Urge reafirmar que o nosso Código Penal não exige, para o reconhecimento do estado de necessidade, que haja a ponderação de bens jurídicos, não estabelecendo regras em relação à natureza dos bens jurídicos em conflito ou em relação aos seus titulares. O Brasil adotou a Teoria Unitária.
Nada impede, entretanto, que haja um juízo de ponderação fundado no critério de razoabilidade do sacrifício do interesse ameaçado, conforme previsto no “caput” e no § 2º do art. 24 do Código Penal. Assim, embora se reconheça que o sujeito estava obrigado a sacrificar seu bem jurídico ameaçado (§2º), oportunidade em que, a rigor, não estaria configurado o estado de necessidade, respondendo ele pelo crime que praticou, a pena poderá, a critério do juiz e à vista das peculiaridades do caso concreto, ser reduzida de um a dois terços.
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
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