Por Cyro Marcos da Silva - 21/05/2015

“Como foi que aconteceu, como foi que aconteceu, é uma ideia que sempre nos acode diante do que já não tem remédio perguntar aos outros como foi, desesperada e inútil maneira de distrair o momento em que iremos ter de aceitar a verdade, é isso, queremos saber como foi, e é como se pudéssemos ainda por no lugar da morte, a vida, no lugar do que foi, o que poderia ter sido.” (Saramago, José. “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. São Paulo: Companhia das Letras, 1991)

Quando o perigo que nos é trazido pelo outro se apresenta atual e iminente; quando se expor implica em risco para a integridade física ou mesmo risco de vida; quando as palavras já não são mais suficientes para impedir a agressão do semelhante; quando as normas são desafiadas; quando não há mais limite algum a ordenar o caos, lembramo-nos da polícia. Clamamos pelo necessário para fazer um contorno no impossível.

Pensemos o necessário como aquilo que não cessa de se presentificar, está sempre aí, como alguma coisa que fala de um limite e que aponta uma passagem do homem de um estado de barbárie, de natureza, para um estado de civilização, sob o império e mediação da palavra.

Em sua obra “O Mal Estar na Civilização” Freud nos diz:

“A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.”

Se esta censura se coloca singularmente para cada sujeito, na melhor das hipóteses, é preciso pensar portanto em uma regulação social com esta referência, em regulações impostas para todos de um determinado universo. Por outro lado, é necessária a criação de meios de dar eficácia a estas regulações que são expressas em normas. Entra em cena aí a polícia, fazendo valer a palavra da lei, levando pois tal palavra à cena onde ocorre o impossível de tudo dizer.

O que chamamos então de impossível? Denominamos impossível a algo que não cessa de estar oculto, a algo que nunca se presentifica. Chamamos de impossível aquele mal estar com que vocês freqüentemente se deparam no trabalho, aquilo que por vezes lhes faz aproximar da beira de precipícios de horror. O impossível é o mal estar que lhes entala a garganta, que lhes embaça a voz, a ponto até de indagarem: como foi, como foi mesmo que aconteceu ?

Assim, o trabalho de vocês é desempenhado num território marcado por duas balizas: o necessário e impossível, e a lei e o mal estar, o limite e o que escapa. Neste sorrateiro beco, não é de se admirar que a angústia lhes visite sempre, lhes afete perigosa, insidiosa e sorrateiramente, fazendo sua dança entre a vida e a morte.

Mas então, o que ainda torna possível o trabalho de vocês? O que ainda impede que aquilo que está oculto, inacessível, trave a posição que lhes foi destinada neste beco, nesta encruzilhada? Podemos pensar numa referência, em um nome, em algo inscrito sobre uma tela encobridora deste abismo que denominamos impossível. Podemos pensar, portanto, numa Lei. mas que Lei é esta?  Que Lei é esta, que barra o insaciável do poder que quer se perpetuar além de suas fronteiras?

Que Lei é esta que pode contornar um pouco do reino onde o impossível é rei? Que lei é esta com a qual o conhecido imperador romano Calígula se deparou e que lhe impedia de mudar a ordem das coisas e que marcava que os que nascem morrerão, nada podendo o imperador contra isso? (referência à peça teatral de Albert Camus).

No imaginário social, pensa-se que o poder é possível, porque referenciado a seres divinos ou seus substitutos seculares. Mas devemos ir além desse imaginário, atravessar esta fantasia para que possamos pensar em algumas referência que seja, inclusive, o fator determinante desta fantasia. Vamos seguir então o caminho do jurista austríaco Hans Kelsen, em seu texto “A função da Constituição”.

Kelsen começa nos apontando que nem toda ordem é uma norma e nem toda norma é uma ordem. E menciona o exemplo de um assalto. O assaltante lhe dá uma ordem da entrega do dinheiro e esta ordem, muito longe de cumprir a norma, a fere. Já a um agente fiscal devo, normalmente, quando cobrado, pagar certa soma de dinheiro que me é pedida. Então, ele pergunta: qual o fundamento para a validade da norma no último caso (do fiscal) e não no primeiro caso (do assaltante) E responde, começando a apontar um caminho que terminará num ponto opaco.

Responde assim que a norma superior autorizadora é o fundamento que outorga validade à norma inferior autorizada. Isto parece conduzir a um caminho sem fim. Deste modo, em seu texto, vai passando pelas normas constituintes e autorizadoras das normas autorizadas, até ir chegando às constituições anteriores até a primeira constituição histórica e, daí, à norma básica, que denomina Grund Norm.

Esta norma seria, pois, o ponto de referência, fundadora de todas as demais normas que logicamente se lhe sucedem.

É pois, uma ficção. Mas nem por isso podemos deixar de pensar que as normas mais próximas do nosso dia-a-dia, mais aparentemente prosaicas não pertençam também a uma rede de ficções. E por que?  Porque desde que falamos, desde que tentamos dizer algo de uma coisa, de um ponto determinado, nunca chegamos a dizer exatamente a coisa, nunca exatamente o ponto. Cada sujeito dirá como pode e assim o é, porque a própria verdade tem estrutura de ficção.

Sobre esta NORMA FUNDAMENTAL, pode-se pensar em várias versões, todas como mito, pois o mito vem ainda tentar dizer as penúltimas palavras, já que o racional, porque também montada em ficção, nada garante como resposta.

Assim, a Bíblia deu sua versão para uma Norma Primeira e Fundamental. Sabemos que Adão e Eva foram tentados a conhecer, como se possível fosse, A VERDADE. E vimos então que a este impossível, a este oculto não se tem acesso. Mais que proibida, a maçã é impossível e a fuga do paraíso não foi conseqüência, pois era a causa, já que o paraíso está perdido desde sempre. Se nos foi dado, já o foi como perdido.

O Direito, observamos, nos dá também a versão mítica do seu nascedouro: ou uma norma fundamental, constituinte primeira — com diz Kelsen — sabe-se lá quando, ou, até onde podemos pensar, o nascedouro no Corpus Juris Civilis mais elaborado, ou seja, o Direito Romano.

Os policiais têm as leis às quais todos nós estamos submetidos; têm ainda regulamentos que lhes são próprios em suas atividades. Porém não podem perder de vista uma outra lei: uma lei básica, fundamental, portadora de uma verdade velada, impossível de se saber muito dela. É preciso que não percam de vista que as leis em nome das quais vocês detêm, prendem, averiguam, encarceram, devem estar eticamente referidas a esta Lei fundante que lhes impede de se posicionarem como donos da verdade, não desrespeitando assim a particularidade de cada sujeito com o qual vocês se deparam nas perigosas paragens onde exercem seu ofício. Leis inevitáveis, como diria Antígona.

Esta Lei maior está fundada num ponto oculto, de silêncio, de não saber, de não acesso, sob o véu que, rasgado, cegar-lhes-ia. Com ela Calígula não quis se deparar, pois ela lhe impedia de eliminar o que é ineliminável: nascer para um dia, morrer.

Como para todos nós, apresenta-se aos policiais este dever ético: situar-se entre o impossível e o necessário. Para que algo de novo, uma criação possa surgir e, ainda para que não sejam tão nefastos os resultados do ineliminável mal estar, todos nós temos que nos situar nesta dobradiça: entre o necessário e o impossível.

E se não levarmos isto em conta, pervertendo a ordem das coisas? A perversão seria o desmentido da Norma Básica, mítica. Seria desmentir o buraco em que ela mesma se constitui e ao redor do qual nos coloca, ou seja, o paraíso deserdado. A perversão seria partimos para o sonho da liberdade de tudo nivelar, tudo controlar, fazer o impossível pisar a terra e deter o inominável: desastrosa ilusão!

O policial, assim também como o Juiz, deve trabalhar em nome desta Lei, fazê-la circular nas normas do Direito. Não pode encarnar esta Lei, fazendo-se todo poderoso. Isto seria uma falácia, mesmo porque esta Lei, só é o que é porque tem um furo: dela só saberemos por um meio-dizer, pois ela introduz a falta, que causa o desejo.

Quando um policial se deixa corromper, ignora esta Lei fundante e se faz Deus daquele cidadão que cai à sua mercê. Também se faz Deus, e por aí, sim, se desumaniza, quando espanca, tortura e decide sobre a vida ou a morte de um cidadão. Quando as armas substituem a eficácia das palavras, o que as palavras ainda poderiam operar, aí, sim, para este profissional, como para Calígula, ser-lhe-á indiferente dormir ou permanecer desperto. Igualado aos deuses, ou além dos deuses, tornar-se-ão fontes ou referências de seu próprio poder: miragem mortífera!

Termino como mesmo autor que abriu meu trabalho:

“As palavras dos homens são como sombras, e as sombras nunca saberiam explicar a luz. Entre elas e a luz está e interpõe-se um corpo opaco que as faz nascer”


Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira. No Facebook aqui                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          


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