Entre a libertação de Barrabás e a redução da idade para maioridade penal: Por que temer os cidadãos de bem? – Por Maurilio Casas Maia

04/06/2015

Quando se trata de debater a redução da idade de maioridade penal, paixões e extremos vem a lume. Poder-se-ia aqui argumentar diversas questões de ordem técnica [1] – tais como os itens bem levantados em nota técnica pela CONAMP  e ANADEP  –, e estatística [2], ou mesmo apelar para o número de entidades que não concordam com a referida redução [3]. Entretanto, o presente texto não se destina, em primeiro plano, aos juristas, ou aos seguidores do Law and Economics. Na verdade, busca-se dialogar com o “cidadão de bem” e com aqueles responsáveis por sua “formação intelectual”, motivo pelo qual o presente diálogo buscará instaurar um (re)início dos debates reflexivos.

Pois bem. É preciso lembrar que atacar os sintomas é um paliativo e isso pode ser contraproducente em determinados contextos. Ademais, utilizar-se dos remédios inadequados é medida geralmente desastrosa. Nessa senda, questiona-se: conceder oportunidades (educação e trabalho, v.g.) não seria mais socialmente profilático do que a punição em presídios nos quais o potencial criminógeno de um indivíduo é reforçado? O resultado da punição prisional é (re)conhecido: reincidência penal e aumento das taxas de criminalidade.

Os discursos antecipatórios penais, criminalizadores e a expansão punitiva afloram nos seios institucionais e midiáticos. Dentre eles, a redução da idade para a maioridade penal é um dos focos da tentativa expansiva e colonizadora do Direito Penal máximo.

Sim, querem reduzir a idade da maioridade penal. Nada muito novo (A Proposta de Emenda à Constituição nº 171 é de 1993), mas se trata de uma recente e forte investida: no dia 31 de março último, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou a PEC nº 171/93 por um placar de 42 votos favoráveis contra 17 votos minoritários, abrindo-se o caminho para maiores debates na Casa Legislativa.

Com efeito, a supracitada redução, por certo, não virá para todos os filhos da sociedade. O Direito Penal possui seletividade incrustada. Seletividade policial, judicial – dizem os estudos de Criminologia. Soares e Guindani (2014, p. 120), por exemplo, registram que o foco do encarceramento tem sido jovens pobres de baixa escolaridade. Nesse diapasão, seria possível concluir, então, que os adoradores da redução da maioridade penal também almejam reforçar a expansão encarceradora?

Saberiam os amantes da redução da maioridade penal sobre a perversidade do sistema prisional brasileiro e de como ele funciona às avessas de sua finalidade legal? É bizarro: o sistema carcerário brasileiro, em sua maioria, é hoje uma afronta “viva” à Constituição – nada de dignidade, nada de (res)socialização.

Gomes e Albuquerque (2014, p. 85), ao tratarem sobre o medo e a mídia, ponderam que os meios de comunicação possuem farto material destinado a legitimar propostas punitivas. Os sobreditos autores registram o raciocínio formado a partir de notícias destinadas ao espetáculo: “O adolescente é mais um dos inimigos da sociedade”.

Aliás, na sociedade do medo e do espetáculo, as notícias aterrorizantes e espetaculosas chegam aos lares e encontram os “cidadãos de bem que clamam por mais punição”. Ah, os cidadãos de bem... Muitos deles, imbuídos da mais inocente bondade, arvoram-se na busca de salvação e limpeza social, como bem lembram Morais da Rosa e Khaled Jr. (2014, p. 59). É preciso indagar novamente: “Quem nos salva da bondade dos bons?” (MARQUES NETO, 1994).

Mas nem só de bondade vive o cidadão de bem. A expansão punitiva almejada pelos aqui abstratamente chamados cidadãos de bem, muitas vezes, encontra suas raízes no medo proporcionado pela sociedade do espetáculo – realmente, a culpa não é dos corpos celestes. Como dita Bauman (2008, p. 173), o medo estimula a ação defensiva, enraizando-se em nossos propósitos e rotina diária. Assim, paradoxalmente, propõe-se o cárcere daqueles causadores de medo (os temidos) a fim de libertar para a vida os que sentem temor (os medrosos?). “Em nome do bem manipulam a insegurança constitutiva do sujeito” (ROSA; AMARAL, 2014, p. 158) e os resultados nefastos se espalham – sendo a PEC n. 171/1993.  Em verdade, em uma sociedade constitucional-democrática, dever-se-ia, antes de qualquer outra coisa, temer o medo infundado que aprisiona seres humanos. Nesse contexto, Rosa e Amaral (2014, p. 105) ainda denunciam que a etiquetação entre os “bons cidadãos” e os seus “inimigos” acarreta o risco de restrições indevidas sobre as garantias penais e processuais em nome da proteção dos primeiros – os cidadãos de bem, os “good citizen”.

Oportunamente, registra-se que The good citizen (o bom cidadão ou cidadão de bem) foi um periódico político mensal dos Estados Unidos publicado entre 1913 e 1933, o qual propugnava, entre outras ideias nada pluralistas, a supremacia branca, lastreando as ações da Ku Klux Klan.

Então, não poderia causar estranheza a seguinte indagação: “Por que tenho medo dos cidadãos de bem?” Muitas atrocidades na história humana foram produzidas declaradamente sob o pálio de uma suposta bondade e dos temores descabidos.

Pois bem, os adolescentes – mormente os pobres – não sofrem pressão somente por conta do discurso midiático legitimador da redução da imputabilidade penal. Isso porque a violência estrutural repercute na violência institucional (ANDRADE, 2003, p. 292), reforçando-se o sistema de opressão e injustiça social em relação às classes desprestigiadas economicamente. Em verdade, os adolescentes são, no momento, um dos gigantes de Dom Quixote. E os leitores sabem bem: na realidade, os gigantes, frutos de alucinação, são moinhos de vento... Ah, o quixotismo penal...

Ora, porque os esforços midiáticos, institucionais e dos “cidadãos de bem” não açoitam também impiedosamente a raiz do problema? Sim, ataque-se a falta de educação, a ausência de saúde e de oportunidades – eis as verdadeiras causas de tanta “monstruosidade” social imputadas aos adolescentes. Então se justifica a redução da maioridade penal por conta da necessidade de correção do adolescente? “Ok”. Então por qual motivo não tratam de clamar também por um sistema socioeducativo que, de fato, eduque e (res)socialize?

Seria muito difícil ao cidadão de bem perceber que o atual sistema prisional (e até mesmo o socioeducativo) somente reforça a necessidade de mais polícia, mais acusação, mais defesa e mais julgamento (condenatório)?

Ou a ideia é realmente alimentar e retroalimentar o sistema punitivista estatal, o qual perderia importância e força a partir do momento em que o cidadão não lhe demandasse mais serviço, seja porque foi regenerado ou mesmo porque seu acesso às oportunidades lhe apartou da brutal necessidade de ser subjugado pelo já referido sistema punitivo?

O ciclo vicioso precisa ser rompido. Mais educação, mais oportunidades e dignidade são palavras de ordem pública, humanística e constitucional.

A presente reflexão é curta, mas voltada para os amantes da expansão punitivista e criminalizadora. Trata-se aqui de um breve escrito destinado principalmente a quem almeja – “para o bem dos cidadãos de bem” – tornar o presídio um depósito de adolescentes e um colegial formador de péssimos adultos.

O discurso expansivo da criminalização não pode estar legitimado sob o custo da opressão e incompreensão social alheia.

O clamor libertador de Barrabás não pode ser repetido em desfavor dos adolescentes. Não se queira crucificar a adolescência pobre em favor de um estado que não os (res)socializa. Não se pretenda também lavar as mãos na vala comum da omissão.

Seria possível agora entender, “por que temer o cidadão de bem”?

Alguém os avise, por favor, “a prisão causa malefícios, não só ao condenado, mas também à sociedade” (VALOIS, 2013, p. 113).

Outro alguém os alerte, por favor, “o modelo penal não pode ser considerado, diferentemente de outros campos do Direito, como um modelo de ‘solução de conflitos’ gerando, ao revés, mais problemas e conflitos”, como bem registrou a Doutora Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 292), com lastro em Louk Hulsman.

Cidadãos de bem, em vez de presídios em notório estado de inconstitucionalidade – vide ADPF n. 347 (STF), protocolada em 27/5/2015 –, clamem por efetivas oportunidades sociais aos adolescentes do Brasil.

ADPF-347


Notas e Referências:

[1] Nesse ponto, destacam-se somente dois dentre vários argumentos: (a) sem ingressar no debate dos internacionalistas sobre o monismo, ressalta-se que a PEC não passaria em um controle sério de convencionalidade – vide a “Convenção das Nações Unidas sobre direitos da criança”, incorporada ao ordenamento jurídico do Brasil pelo Decreto 99.710/1990 –, e constitucionalidade – partindo da tese de que o artigo 228 da Constituição seria uma cláusula pétrea ou de que a redução da idade de maioridade penal seria um vedado retrocesso social em termos de garantia de desenvolvimento da personalidade do adolescente enquanto ser em peculiar situação de desenvolvimento; (b) os menores infratores não permanecem impunes, pois respondem pelo sistema de apuração de atos infracionais perante o Poder Judiciário e, em casos extremados, podem até mesmo perder sua liberdade.

[2] Ressaltam-se aqui dois argumentos: (I) O índice de reincidência é muito menor entre os adolescentes egressos do sistema socioeducativo em relação aos egressos do sistema penitenciário dos adultos.  Essa conclusão é retirada de pesquisa apresentada na revista “The Economist” (abr. 2015), indicando que adolescentes punidos como adultos tem quase 35% a mais de chance de reincidir. Lógico que mais dados comparativos devem surgir na realidade brasileira, mas é possível localizar índices de reincidência em torno de 70% entre os egressos do superlotado sistema carcerário e, por outro lado, de 13 % entre os adolescentes egressos do sistema socioeducativo – vide o caso da Fundação de Atendimento Socioeducativo (CASE), em Pernambuco. Aliás, a revista Veja (27/5/2015) realizou pesquisa buscando comprovar que “os bandidos no Brasil saem da cadeia muito mais perigosos do que quando entraram” (p. 62-69). Ou seja, sem qualquer ironia ou jogo de palavras, a PEC n. 171/1993 é um potencial “estelionato social”, representando “um tiro no pé” da sociedade que somente verá o agravamento do problema da reincidência criminal, caso aprovada seja; (II) Conforme dados do Ministério da Justiça/Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN e da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, os crimes praticados por adolescentes e sua gravidade são muito menores em relação aos efetivados por pessoas adultas.

[3] Segundo notas técnicas da ANADEP e CONAMP, assumiram posição pública contra a redução da maioridade penal: (1) A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP); (2) o Conselho Federal de Psicologia (CFP); (3) o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); (4) a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); (5) o Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF); (6) Fundação ABRINQ – save the children; (7) a Comissão Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE); (8) o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União (CNPG); (9) o Fórum dos direitos da criança e do adolescente (FDCA); (10) o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA); (11) o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (FNDCA); (11) a Rede brasileira de centros e institutos da juventude; (12) a Associação Nacional dos centros de defesa da criança e do adolescente (ANCED); (13) a Rede de Defesa do Adolescente em conflito com a Lei (RENADE); (14) a Rede ecumênica da juventude (REJU); (15)  o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); (16) a Pastoral do Menor do Brasil; (17) a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS); (18) o Instituto Carioca de Criminologia; (19) o Conselho Nacional de Juventude (CONJUVE); (20) a Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP); (21) a Associação Juízes para a Democracia (AJD); (22) a Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP); (23) Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP); (24) o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD); (25) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH); (26) o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); (27) a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal (PFDC/MPF); (28) a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS); (29) a Presidência da República; (30) a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); (31) a Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude (ABRAMINJ).

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