A intolerância religiosa é um fenômeno mundial e tem raízes profundas na história, remontando aos primeiros registros de sociedades organizadas.
Desde a Antiguidade, civilizações como a egípcia, a mesopotâmica e a greco-romana presenciaram episódios de perseguição e conflito em nome da religião. Inicialmente, essas civilizações adotavam múltiplas divindades e rituais, e, embora existisse alguma tolerância religiosa, a imposição da religião oficial ou de cultos específicos por governantes era comum.
Com a consolidação de monarquias e impérios, a religião passou a ser vista como uma forma de controle e de legitimação do poder, especialmente em contextos de teocracia. Assim, divergências religiosas começaram a ser vistas como ameaças à ordem estabelecida, originando episódios de repressão e perseguição.
Durante o Império Romano, um exemplo clássico de intolerância ocorreu contra os cristãos, que, ao se recusarem a adorar os deuses romanos e o imperador como divindade, foram perseguidos, torturados e executados. Posteriormente, com o crescimento do cristianismo e sua adoção como religião oficial do Império no século IV, a perseguição passou a ser direcionada aos pagãos e, mais tarde, a outras dissidências cristãs, como os arianos. Esse ciclo de repressão demonstrou como a intolerância religiosa já despontava como um instrumento político, em que a exclusão ou eliminação de crenças diferentes daquelas dominantes era um método de preservação da unidade política e cultural.
A Idade Média trouxe novos conflitos e expandiu a dimensão da intolerância com as cruzadas, guerras religiosas empreendidas pelos cristãos europeus contra muçulmanos no Oriente Médio e na Península Ibérica. Esse período foi marcado pela ideia de “guerra santa”, em que a luta contra infiéis era justificada como um dever religioso. Durante as cruzadas, não apenas muçulmanos foram alvos de violência, mas também comunidades judaicas e heréticos (aqueles que professavam crenças distintas da Igreja oficial). O massacre de comunidades judaicas na Europa e a perseguição a muçulmanos e cristãos orientais refletiram a expansão da intolerância para além das fronteiras locais, tornando-se uma questão de interesse internacional. Na mesma época, a Inquisição foi estabelecida para perseguir heresias, o que resultou em torturas e execuções que marcaram a história como um dos períodos mais cruéis da intolerância religiosa.
Na era moderna, as guerras de religião na Europa entre católicos e protestantes, principalmente na França, Alemanha e Inglaterra, são outro exemplo emblemático de como a intolerância religiosa pôde se tornar um fator de devastação social e econômica. As guerras, como a Guerra dos Trinta Anos (1618–1648), causaram milhões de mortes e devastaram regiões inteiras, em um conflito que misturava poder político com disputas religiosas. A Paz de Vestfália, que encerrou a Guerra dos Trinta Anos, foi um marco importante, pois trouxe o princípio da tolerância religiosa em certos territórios europeus, embora não tenha solucionado a questão em escala global.
Com o Iluminismo no século XVIII, surgiram ideias de liberdade religiosa e de separação entre Igreja e Estado, que encontraram respaldo em documentos importantes como a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França. Essas ideias influenciaram o desenvolvimento de sistemas jurídicos mais inclusivos e tolerantes, que reconheciam a liberdade de crença e religião como um direito fundamental.
Na atualidade, a intolerância religiosa no mundo contemporâneo continua a ser um desafio significativo. Em países do Oriente Médio, por exemplo, conflitos envolvendo sunitas e xiitas, ou mesmo conflitos entre muçulmanos, cristãos e outras minorias, têm resultado em guerras civis e violências múltiplas, que levam à migração em massa e ao agravamento da crise humanitária. A perseguição a minorias religiosas também é observada em regiões da Ásia, onde grupos étnico-religiosos, como os muçulmanos uigures na China e os “rohingyas” em Mianmar, sofrem discriminação e violência. Esses conflitos evidenciam que a intolerância religiosa é, muitas vezes, instrumentalizada por governantes e grupos políticos para justificar medidas repressivas ou de limpeza étnica.
Estatísticas recentes indicam que a intolerância religiosa é uma questão persistente: de acordo com o relatório do “Pew Research Center”, o número de restrições governamentais e sociais à religião aumentou globalmente, com regiões como Oriente Médio, África Subsaariana e partes da Ásia apresentando índices alarmantes. Em 2020, o relatório apontou que quase 80% da população mundial vive em países onde há restrições severas à prática religiosa, seja por leis estatais ou por pressão social.
Outro exemplo atual é o da Nicaragua. A perseguição religiosa contra cristãos na Nicarágua tem se intensificado, especialmente sob o governo de Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, que veem as vozes cristãs, em particular da Igreja Católica, como ameaças ao regime. Desde os protestos de 2018, quando muitos clérigos apoiaram manifestantes e ofereceram abrigo em igrejas, o governo passou a adotar medidas cada vez mais duras contra religiosos, incluindo prisões arbitrárias, confisco de propriedades da Igreja, restrição de atividades religiosas públicas e até desnacionalização e expulsão de líderes cristãos.
Um dos casos mais emblemáticos, na Nicaragua, foi o do bispo Rolando Álvarez, condenado a mais de 26 anos de prisão após se recusar a deixar o país junto com outros opositores políticos e religiosos. Em 2023 e 2024, as procissões públicas da Semana Santa foram proibidas, e atividades religiosas passaram a ser monitoradas, com forte repressão contra qualquer expressão pública de fé. Além disso, a intimidação atingiu emissoras religiosas, com o fechamento de rádios e canais de televisão ligados à Igreja, e organizações religiosas foram forçadas a encerrar suas atividades, muitas vezes tendo seus bens confiscados. Estima-se que centenas de ONGs, incluindo as de caráter religioso, perderam seu registro no país. O governo de Daniel Ortega busca desestabilizar a Igreja, difamando seus líderes como conspiradores e promovendo uma campanha de censura e controle, dificultando também a saída e entrada de religiosos no país, cenário que organizações internacionais e a ONU têm classificado como violações graves dos direitos humanos e, em alguns casos, como "crimes contra a humanidade" devido ao impacto social, político e humanitário causado pela repressão religiosa na Nicarágua.
No Brasil, a liberdade de culto e religião vem garantida no artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, como um direito fundamental e inalienável que assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção dos locais de culto e suas liturgias. Esse direito é um dos pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro, visando garantir o respeito à diversidade religiosa e cultural do país, e reafirmando que o Estado deve ser laico, não adotando qualquer religião oficial.
Essa garantia constitucional é composta de três dimensões principais: a liberdade de crença, o livre exercício do culto e a proteção do espaço e dos objetos sagrados utilizados em práticas religiosas. A liberdade de crença permite que cada indivíduo professe a fé que desejar, ou mesmo opte por não adotar qualquer crença religiosa, como expressão da autonomia da vontade e da dignidade humana. Por sua vez, o livre exercício do culto é um desdobramento natural da liberdade de crença, assegurando que as manifestações públicas ou privadas de fé sejam respeitadas, sem interferência indevida do Estado ou de particulares. A proteção aos locais de culto e às liturgias representa, nesse aspecto, um importante mecanismo contra a intolerância religiosa, garantindo que espaços sagrados e rituais específicos sejam preservados e respeitados, independentemente da fé professada.
A liberdade religiosa, nesse contexto, se insere no rol dos direitos fundamentais de primeira geração, caracterizados como direitos de liberdade e voltados para a proteção do indivíduo contra abusos e interferências indevidas. Além disso, a liberdade de culto vem reforçada por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em seu artigo 18, assegura o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião.
Do ponto de vista constitucional, a liberdade religiosa também se relaciona com outros direitos fundamentais, como a igualdade (artigo 5º, “caput”), uma vez que impede que qualquer pessoa seja discriminada em razão de sua fé ou ausência dela. A laicidade do Estado brasileiro, é bom que se diga, vem reforçada pelo artigo 19, inciso I, da Constituição, proibindo que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estabeleçam qualquer forma de vinculação entre religião e governo, preservando assim a neutralidade do Estado diante das questões religiosas.
Na prática, a interpretação constitucional da liberdade de culto e religião tem sido objeto de diversos julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal, que, em suas decisões, tem reafirmado a importância da proteção a essa liberdade como elemento essencial para a democracia e para a promoção da tolerância em uma sociedade plural. Essas decisões incluem, por exemplo, a análise da constitucionalidade de símbolos religiosos em espaços públicos, como escolas e repartições, e a proteção das manifestações de religiões afro-brasileiras, frequentemente alvos de intolerância e preconceito.
Vele ressaltar, outrossim, que o art. 208 do Código Penal brasileiro tipifica o crime de "ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo", cominando pena de detenção, de um mês a um ano, ou multa. Este dispositivo protege diretamente o direito constitucional à liberdade de crença e de culto, previsto no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal, que assegura, como já foi dito, não apenas o exercício da fé, mas também a proteção aos locais de culto e às suas liturgias. A importância dessa proteção se intensifica em um contexto de pluralidade religiosa e cultural, no qual atos de intolerância e preconceito têm se tornado cada vez mais frequentes, com episódios amplamente divulgados na mídia nacional.
Trata-se de um tipo misto cumulativo, ou seja, agrupa condutas diversas que, em conjunto, violam o direito à liberdade religiosa e ao respeito que deve ser dispensado aos objetos e ritos de qualquer religião. As condutas típicas incluem o escárnio contra a crença ou função religiosa de alguém, o impedimento ou a perturbação de cerimônia ou prática de culto, e o vilipêndio de ato ou objeto de culto religioso. Ao ridicularizar ou zombar de alguém por sua fé ou função religiosa, o sujeito ativo agride valores individuais e sociais. A prática de impedir ou perturbar cerimônias é outro atentado punido pelo dispositivo, uma vez que viola a ordem e o respeito que devem envolver tais atividades, configurando, em última instância, uma ofensa à liberdade individual e coletiva.
Na interpretação do verbo "escarnecer" do art. 208, a ação de ridicularizar deve ter uma conexão clara com a fé de alguém, direcionando-se a crenças específicas ou funções religiosas. A figura do "vilipêndio", por sua vez, traz a noção de desprezo ou desdém com relação a objetos de culto, como imagens, altares e outros símbolos. Importante ressaltar que, em tempos de crescente intolerância religiosa, a prática de vilipêndio tem sido amplamente discutida no Judiciário brasileiro. Decisões recentes têm reafirmado a proteção constitucional ao sentimento religioso, inclusive aplicando sanções mais severas quando a violência acompanha tais práticas.
No Brasil contemporâneo, dados estatísticos apontam para um crescimento nas denúncias de intolerância religiosa, registradas no Disque 100, canal de denúncias do governo federal, que atende vítimas de discriminação e preconceito. Em 2020, por exemplo, foram registradas milhares de denúncias de agressões motivadas por razões religiosas, indicando um cenário preocupante.
Casos notórios de intolerância têm também chamado a atenção da mídia e da sociedade, como agressões a centros de umbanda e candomblé, ataques a templos evangélicos e igrejas católicas, e ofensas públicas a figuras religiosas, atos que refletem a persistência de preconceitos enraizados e reforçam a importância da tipificação penal e da punição rigorosa e exemplar.
Em suma, a intolerância religiosa representa, acima de tudo, um entrave ao desenvolvimento de sociedades pluralistas e democráticas, criando um ambiente de exclusão, de medo e de opressão, impossibilitando a construção de um convívio pacífico entre diferentes tradições religiosas e culturais. Além disso, em um mundo cada vez mais globalizado, a diversidade religiosa é inevitável e precisa ser tratada com respeito para assegurar a coesão social, sendo certo que o reconhecimento do direito à liberdade de crença é um avanço civilizatório que exige vigilância constante e compromisso de todos os setores da sociedade para que se construa um mundo mais justo e pacífico, onde o respeito às diferentes formas de fé seja verdadeiramente universal.
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