Por João Paulo Orsini Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem - 12/09/2016
A partir da condenação judicial definitiva, a principal consequência para o condenado é a execução da pena. Seja qual for a natureza da pena, a condenação deve ser executada nos limites da legalidade e dos direitos fundamentais. No entanto, outros efeitos complementares poderão advir de uma decisão desfavorável. Tratam-se dos efeitos secundários da condenação, ou, como denominam alguns, efeitos extrapenais[1], pois incidem, conforme o caso, nos âmbitos cível, administrativo, político, trabalhista[2].
Esses efeitos, expressos no Código Penal (mas também encontrados em lei especial) de modo taxativo e, por isso, não poderão ser ampliados pelos togados, podem ser genéricos (art. 91) e específicos (art. 92). Neste ensaio, interessa-nos apenas estes, aplicados, desde que diretamente relacionados ao crime praticado e com a devida fundamentação do juiz quando do édito condenatório (art. 92, parágrafo único).
A perda de cargo (posição jurídica decorrente de aprovação em concurso público ou de nomeação em razão da confiança de outrem para o exercício de certas funções, atribuições ou competências), de função pública (ligação jurídica entre o Estado e seus agentes destinada à prática de interesses públicos considerados essenciais) ou de mandato eletivo (tempo em que o candidato eleito poderá ficar de posse de algum cargo) poderá ser determinada pelo juiz ao aplicar pena de privação de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, quando o crime for praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública (CP, art. 92, I, a). Atente que não basta se tratar de servidor público, sendo preciso comprovar que o crime praticado tem relação com o cargo, função ou mandato exercido. Para tocar com as mãos, se um fiscal de trânsito agride sua esposa, no ambiente do lar, e é condenado por violência doméstica (CP, art. 129, § 9º), o ilícito nada tem a ver com sua função pública. Por outro lado, se esse fiscal exige propina para deixar de aplicar multas de trânsito, e é condenado (violação de dever funcional) por corrupção passiva (CP, art. 317), poderá ser exonerado (independente de possível responsabilização administrativa), salvo se a pena aplicada for inferior a um ano.
Entretanto, não apenas a prática direta de crime contra a Administração Pública pode ensejar o efeito, senão também sua realização indireta, configurando, por exemplo, um abuso do cargo, da função ou do mandato exercido pelo servidor público. Assim, por exemplo, com a utilização indevida dos computadores do órgão da Administração Pública onde trabalha para fazer cópias ilegais de softwares (Lei n. 9.609/1998). No último caso, também, a pena imposta na sentença não poderá ficar aquém de um ano para possível incidência do efeito.
Deve-se atentar que, para alguns contextos, a perda do cargo, embora por decisão fundamentada do juiz, pode depender da realização de nova condição. Assim, por exemplo, em contexto que envolveu membro vitalício do Ministério Público, condenado pelo crime de corrupção passiva (CP, art. 317), a perda do referido cargo somente pode ocorrer depois do trânsito em julgado de ação civil proposta para esse fim (art. 38, § 2º da Lei n. 8.625/1993). A respeito: “em se tratando de normas legais de mesma hierarquia, o fato de a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público prever diferenciadas regras das do Código Penal para a perda de cargo, em atenção ao princípio da especialidade, deverá prevalecer o que dispõe a lei orgânica” (STJ, 5ª Turma, REsp n. 1.251.621/AM, rel. Min. Laurita Vaz, DJ 12-11-2014).
O mesmo efeito específico poderá decorrer quando for aplicada pena privativa de liberdade acima de quatro anos pela prática de qualquer outro crime não arrolado entre os funcionais (CP, art. 92, I, b). Imagine-se, por exemplo, uma extorsão de dinheiro de presos por policiais militares ou em condenação destes pela prática de lesão corporal seguida de morte. Nesses contextos, também se exige a motivação na decisão (STJ, 6ª Turma, REsp n. 138.392-1/RN, rel. Min. Maria Thereza de Assis, DJ 25-6-2015).
Deve-se tomar cuidado para não confundir esse efeito específico com uma eventual pena acessória. Para ilustrar, o Decreto-lei n. 201/1967 estabelece a imposição, cumulada com pena principal, da inabilitação pelo prazo de cinco anos ao exercício de cargo ou de função pública, eletivo ou de nomeação, nos crimes de responsabilidade dos prefeitos e vereadores (art. 1º, § 2º). Com efeito, a extinção da pretensão punitiva com relação à aplicação da pena privativa de liberdade impede a aplicação da pena acessória (STJ, 5ª Turma, AgRg no REsp n. 1.381.728/SC, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJ 19-12-2013).
Recorde-se, ademais, que a perda do mandato parlamentar (senadores e deputados federais) exige a deliberação, mediante voto secreto, da maioria absoluta da respectiva Casa, mediante provocação da Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurando-se a ampla defesa (CF, art. 55, VI). Nos Estados e no Distrito Federal, aplicam-se aos deputados as mesmas regras[3].
A incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela e da curatela configura outro possível efeito secundário da condenação. Exige-se, nesse caso, que a condenação seja por crime doloso sujeito a pena de reclusão (CP, art. 92, II). Inferem-se, assim, duas exigências, a primeira atinente à modalidade de crime, excluindo-se os delitos culposos, e a segunda, referente à qualidade da pena cominada em lei, excluindo-se a detenção.
A primeira polêmica relacionada a esse efeito secundário, porém, refere-se à ausência de previsão do quantum de pena aplicada pelo togado na sentença condenatória. É suficiente comparar com as hipóteses anteriores. A lacuna poderá, em nosso juízo, ensejar até mesmo a não incidência do respectivo efeito, especialmente se sopesada a previsão do Código Civil que impõe a suspensão do exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão (art. 1637, parágrafo único). Ora, sendo a suspensão uma consequência menor que a incapacidade (ou perda) do poder familiar, e exigindo-se para aquele efeito uma condenação acima de dois anos, a única conclusão segura é que para condenações a pena privativa de liberdade por tempo igual ou inferior a dois anos não será possível decretar a incapacitação dos genitores (pai ou mãe) para o exercício do poder familiar, pois nem mesmo a suspensão ocorre nesses casos[4]. Arriscamos dizer que tampouco poderá ser decretada para condenação superior a dois anos enquanto a lacuna não for preenchida pelo legislador, sob pena de violação do princípio da legalidade. Por isso, recebemos com cautela a lição de Sebastião Feltrin e Patrícia Kuriki sobre a indiferença da pena efetivamente aplicada pelo juiz[5].
A segunda questão que se coloca se refere à extensão desse efeito a todos os filhos ou apenas àquele que fora vítima do crime. Em nossa opinião, o efeito limita-se ao filho que figurou como sujeito passivo do crime, a não ser que seja impossível que a extensão do dano não atinja os demais. Nesse sentido, extrai-se de precedente do antigo Tribunal de Alçada do Estado do Paraná: “[...] A declaração de incapacidade para o exercício do pátrio poder, como efeito de sentença criminal condenatória, tem caráter permanente com relação ao filho contra o qual foi praticada a infração penal, e também permanente para os demais, desde que a eles tenha sido estendido o gravame” (TACRIM, 1ª C.Crim., ACR N. 1531042, rel. Juiz Wilde de Lima Pugliese, j. 15-06-2000). Salvo equívoco, parece-nos que os Delmanto estendem a incapacidade aos demais filhos, se existentes, pois, ao comentarem a reabilitação, mencionam que “também para a incapacidade de exercício do poder familiar poderá o reabilitado exercê-los com relação a outros filhos, mas não com referência àquele contra quem foi o crime praticado”[6]. Não há sentido nessa extensão, porque, assim, haveria ofensa ao princípio da transcendência mínima da pena.
A tutela e a curatela estão regulamentadas nos arts. 1.728 a 1.783 do Código Civil e consistem em institutos jurídicos de proteção do menor e dos demais incapazes. O tutor e o curador são representantes que possuem responsabilidades, em especial sobre o patrimônio do tutelado e do curatelado. Assim, por exemplo, o tutor que se apropriar indevidamente de produto da herança do menor sobre quem exerce a tutela ou o curador que subtrair, para si ou para outrem, mediante violência, parte dos bens do interditado, além das condenações, respectivamente, por apropriação indébita e roubo, poderão perder sua condição jurídica.
A inabilitação para dirigir veículo automotor é o último efeito específico previsto no art. 92 do Código Penal. Sabe-se que a condução de alguns veículos não exige a habilitação, como os de propulsão humana (bicicleta) e os de tração animal (carroça). Portanto, o legislador se refere àqueles que a exigem e, em especial, embora não necessariamente, aos automotores (Anexo I da Lei n. 9.503/1997).
Cumpre, desde já, informar que a inabilitação para dirigir veículo automotor não se confunde com as penas cominadas aos crimes da Lei n. 9.503/1997. Para alguns destes, além da pena privativa de liberdade, também há cominação da “suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”, classificada como pena acessória[7] e, portanto, um efeito primário da condenação. De acordo com o art. 293 da Lei de Trânsito, “a penalidade de suspensão ou de proibição de se obter a permissão ou a habilitação, para dirigir veículo automotor, tem a duração de dois meses a cinco anos”. Essas medidas poderão ter a duração de dois meses a cinco anos – aplicação sempre proporcional à privação de liberdade (STJ, 5ª Turma, AgRg no HC n. 271.383/RJ, rel. Min. Jorge Mussi, DJ 25-2-2014) – a contar da entrega da condução, após devida intimação (art. 293, § 1º). Durante o tempo em que o agente, por efeito da condenação pelo crime de trânsito, estiver preso em estabelecimento próprio, não se inicia a execução da pena acessória (art. 293, § 2º).
A inabilitação para conduzir veículo automotor, por sua vez, como efeito secundário da condenação, aplica-se apenas se o veículo é utilizado como meio para a prática de crime doloso (quando alguém, dolosamente, atropela a vítima com o objetivo de matá-la). Porém, em nosso juízo, cumpre ao juiz demonstrar inequivocamente os motivos da eventual inabilitação, pois, por exemplo, não nos parece adequado decretar esse efeito em caso de uso do veículo para prática de contrabando ou como meio de transporte da vítima de sequestro (STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp n. 152.225-2/PR, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 18-5-2015).
Finalmente, por quanto tempo ficará o condenado inabilitado? O art. 92, III do Código Penal não traz nenhum prazo para a duração desse efeito extrapenal. Não se trata, no entanto, de previsão inconstitucional, porquanto deverá ser interpretada conjuntamente com a regra do parágrafo único do art. 93 do Código Penal, de sorte que persiste enquanto não confirmada a reabilitação do condenado[8].
Notas e Referências:
[1] Busato, Paulo Cesar. Direito penal, 2013, p. 995.
[2] Prado, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, v. 1, 2004, p. 669.
[3] Delmanto, Celso et al. Código Penal comentado, 2011, p. 354.
[4] Martinelli, João Paulo Orsini; De Bem, Leonardo Schmitt. Lições Fundamentais de Direito Penal, 2016, p. 892.
[5] Feltrin, Sebastião Oscar; Kuriki, Patrícia Cristina. Código Penal e sua interpretação, 2007, p. 465.
[6] Delmanto, Celso et al. Código Penal comentado, 2011, p. 357.
[7] De Bem, Leonardo Schmitt. Direito penal de trânsito, 2015, p. 208.
[8] Delmanto, Celso et al. Código Penal comentado, 2011, p. 357.
. João Paulo Orsini Martinelli é Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre e Doutor em Direito Penal (Universidade de São Paulo), Pós-Doutor em Direitos Humanos (Universidade de Coimbra), Advogado Criminalista, Coordenador-adjunto no IBCCRIM no Rio de Janeiro. .
Leonardo Schmitt de Bem é Professor Adjunto de Direito Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano, Itália. Doutor em Direitos e Liberdades Fundamentais pela Universidad de Castilla-La Mancha, Espanha. Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra, Portugal. Coautor do livro (entre outros): Lições Fundamentais de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2016, 1008p.
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