Por Juliana Vieira - 12/04/2016
Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? ou com sede, e te demos de beber?
E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? ou nu, e te vestimos?
E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te?
E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Mt 25, 37-40
Esses dias assisti a um vídeo compartilhado no facebook, (assista aqui) de um morador de rua sendo agredido por um vigilante, por ter, supostamente, TENTADO furtar [crime contra o patrimônio sem o uso da violência] telhas de um galpão abandonado. Contudo, apesar de chocante, este, infelizmente, não é um caso raro na nossa sociedade.
A prática da violência cometida por “cidadãos do bem” contra aqueles que por algum motivo (raça, opção sexual, classe ou conduta) são excluídos do convívio social, é comum desde a antiguidade onde se tem inúmeros relatos de apedrejamentos de pecadores, bem como a queima de bruxas.
No caso do vídeo, a violência foi praticada por um indivíduo que por algum motivo acreditou estar “fazendo justiça com as próprias mãos” e definiu na ocasião, que o bem jurídico tutelado naquele caso (telhas do galpão abandonado) valia mais do que a vida (maior bem jurídico que se pode ter, segundo a nossa Constituição) daquele dependente químico morador de rua.
Ao analisar o fato, indaga-se, o que diferencia o “cidadão do bem” de um criminoso, como assim o faz o professor Thiago M. Minagé em artigo publicado no ano passado:
Fato é, certas atitudes impensadas ou mal calculadas, mesmo na esperança da prevalência da bondade e boa fé, podem nos igualar ou até mesmo nos colocar em posição pior que a do próprio crime que pretendemos repreender. Assim nos tornamos tão criminosos como o próprio criminoso, nos restando uma indagação: Qual é a diferença entre um e outro mesmo? (MINAGÉ, 2015, WEB)¹
A solução para a redução da criminalidade e conseqüentemente da violência, não pode ser encontrada apenas no Código Penal, como equivocadamente muitas pessoas, inclusive juristas, acreditam. O problema é complexo e requer uma solução sociológica, resposta do Estado sim (Políticas Públicas efetivas), mas também da sociedade (conectando-se uns com os outros, aumentando a sensação de pertencimento).
Bauman explica brilhantemente em seu livro, Tempos Líquidos, que, o Estado falhou quando houve o divórcio entre poder e política, o que obrigou o Estado a subsidiar/terceirizar muitas das funções que desempenhava anteriormente (BAUMAN, 2007, p. 8)², aumentando a ausência do Estado perante a sociedade, e por tal motivo, o sentimento de insegurança por parte do cidadão, uma vez que este não se vê mais protegido pelo Estado e acaba vendo o outro como um inimigo.
E ainda, Bauman esclarece que não só o Estado, mas também a sociedade falhou, promovendo a divisão e não a unidade, quando diz que:
A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão de obra e de mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. (...) A "sociedade" e cada vez mais vista e tratada como uma "rede" em vez de uma "estrutura" (para não falar em uma "totalidade solida"): ela é percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de permutações possíveis. (BAUMAN, 2007, p. 9)
Ante a ausência do Estado e a falha da sociedade em promover a unidade, cresce consideravelmente a violência praticada por “justiceiros” e também, os linchamentos, onde uma multidão resolve punir um transgressor com violência, assassinando-o, na maioria das vezes, em via pública. Sobre os linchamentos, a professora doutora adjunta da Universidade Federal de São Carlos (SP), Jacqueline Sinhoretto analisa que:
Há uma crença socialmente disseminada de que a punição violenta é a que resolve. Se acredita que bandido bom é bandido morto. A violência policial é muito criticada e muito aceita. A polícia e a justiça têm que assegurar que os crimes sejam investigados e que essa solução venha a tempo de garantir a vida de quem está sendo acusado. E o policiamento tem que ser capilar, próximo da comunidade.
Hobbes afirma que os homens são maus por natureza, "homem é o lobo do próprio homem", vivendo em um estado de Natureza, sem regras, ate o surgimento do Estado com autoridade absoluta, por meio do contrato social, nascendo uma sociedade civil organizada para estabelecer a ordem, chamado estado social.
De outro vértice, Locke defende o estado natural como a ampla liberdade dos homens, devendo existir dentro da lei, sem prejudicar o outro. E com o surgimento do Estado, Locke afirma que se houve quebra de confiança no Estado ou se este não cumpriu com as suas obrigações, o povo pode se rebelar. Nessa linha, os justiceiros e os linchamentos seriam formas de se rebelar contra um Estado em que não se confia mais.
Ademais, em uma sociedade na qual compete ao Estado a aplicação das leis para estabelecer a ordem (segundo Hobbes), e a sensação de insegurança aumenta gradualmente perante a sua ausência em promover políticas públicas, segurança e participar dos conflitos da comunidade, esta se rebela através dos justiceiros, seguindo a linha do pensamento de Locke, beirando a barbárie, violando as normas vigentes para (supostamente) fazer justiça, sem legitimidade alguma, utilizando-se da autotutela, situação vedada pelo nosso ordenamento jurídico, salvo as exceções previstas no artigo 23 do Código Penal.
Esse fenômeno de violência em sociedade causada por justiceiros, “cidadãos do bem”, também é fruto do que Bauman chama de globalização negativa. Essa globalização que cada vez mais nos faz ver o outro como um inimigo, que alimenta a competição predatória entre os seres humanos, conecta o mercado mundial e os meios de comunicação, contudo, distancia de tudo aquilo que não tem preço, e sim, valor. Senão vejamos:
O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da "globalização negativa. (BAUMAN, 2007, p.30).
Com a globalização negativa, surgem os “excessos”, que são cada vez mais excluídos da sociedade, pelos integrantes desta e pelo Estado que não tem interesse em tirá-los do lugar onde se encontram. Os “excessos” ou, neste caso, os criminosos, segundo Bauman, fazem parte de uma subcategoria de excluídos, e são permanentemente marginalizados, considerados inadequados para serem “reeducados”, “reabilitados” e “reenviados a comunidade”, ou seja, temporariamente expulsos do convívio em sociedade, o que os faz serem mantidos longe da sociedade e dos “cidadãos cumpridores da lei” (BAUMAN, 2007, p. 76) Uma vez que não cabe à sociedade, apenas afastar tais indivíduos transgressores, esta tenta exterminá-los com suas próprias mãos ante a ineficiência do Poder Punitivo Estatal em saciar sua ânsia punitivista aliado à sensação de impunidade e insegurança.
Como bem disse Roberto Tardelli, “Tudo se justifica na guerra contra o crime, em que o inimigo precisa ser identificado, mas há de ser construído.” E conclui que “Algo começa a se quebrar dentro de nós. Dissolver-nos, dispersar-nos. Quando rompemos com a paz, o que nos sobra não é a guerra. É a barbárie.” (TARDELLI, 2015, WEB)³
Finalizando, Zygmunt Bauman nos diz que:
Embora as conseqüências mórbidas do lixo industrial e doméstico para o equilíbrio ecológico e para a capacidade de reprodução no planeta venham sendo ha algum tempo matéria de preocupação intensa (embora os debates tenham sido seguidos de pouca ação), ainda não chegamos perto de perceber e entender os efeitos de longo alcance das massas cada vez maiores de pessoas desperdiçadas no equilíbrio político e social da coexistência humana planetária. Mas é tempo de começar. (BAUMAN, 2007, p.35)
O inimigo já foi identificado, os excluídos pela sociedade são os mesmos punidos diariamente por ela e pelo Estado. A citação acima nos faz lembrar que temos que nos preocupar com o outro, como um ser humano digno de respeito e sujeito detentor de direitos fundamentais, devemos fazer a nossa parte em formar a estrutura de uma sociedade em busca de unidade, para que quando um cidadão se depare com o caso do morador de rua no vídeo citado alhures, ele veja a possibilidade de ajudar ao próximo em prol do seu bem-estar e da sociedade.
Afinal, para uma sociedade de maioria cristã, o tão esperado lugar no céu está reservado para os justos, aqueles que fazem para os pequeninos irmãos o mesmo que fariam para Ele. Os justiceiros de hoje, assim como os malditos à época de Jesus (Mt 25, 34-46) a fim de saciar sua ânsia punitivista, acabam por transgredir tanto a lei dos homens como a lei divina, “Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna.” (Mt 25, 46) Mas, ainda há tempo, é tempo de começar...
Notas e Referências:
http://justificando.com/2015/02/20/quando-nos-tornamos-criminosos-tanto-quanto-ou-pior-que-o-proprio-criminoso/ acessado em 26/02/2016, às 16:18.
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
http://justificando.com/2015/06/22/jo-soares-tem-que-morrer/ acessado em 26/02/2016 às 20:59.
. . Juliana Vieira é formanda do curso de direito da Faculdade Cenecista de Joinville e estagiária no Ministério Público do Estado de Santa Catarina. E-mail: julianadvieira_@hotmail.com . .
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