É necessário criminalizar o assédio moral? – Por Ricardo Antonio Andreucci

23/06/2016

As recentes imagens que circularam o mundo e viralizaram nas redes sociais, divulgadas pelo periódico chinês “People’s Daily”, nos remetem à indispensável tarefa de novamente discutir se haveria necessidade, no Brasil, de criminalização do assédio moral.

No vídeo é mostrada uma “ação motivacional” em um evento promovido pelo “Changzhi Rural Commercial Bank”, no qual oito funcionários são espancados com golpes de pau por não terem cumprido as metas estabelecidas pela instituição. Tudo sob o olhar dos demais funcionários, que constituíam a platéia, os empregados que ficaram abaixo da meta, cabisbaixos, respondem que lhes faltou superação, esforço, coragem.

Apenas para lembrar, o periódico “People’s Daily” é o maior jornal da China, sendo o veículo oficial do partido comunista chinês.

E no Brasil, como temos lidado com o assédio moral nas relações de trabalho?

Evidentemente que não se tem notícia, no Brasil, de espancamento de empregados que não cumpriram as metas estabelecidas pela empresa, mas, certamente, todos aqueles que militam na área trabalhista já tomaram ciência de absurdas situações de humilhação e vexame a que muitos empregados foram submetidos por seus empregadores e empresas, pelas mais diversas razões, inclusive por não ter alcançado as malfadadas metas impostas.

No âmbito indenizatório se tornou emblemática a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho do Estado do Rio Grande do Norte contra uma conhecida companhia de bebidas, que culminou com a condenação da empresa ao pagamento de indenização no valor de um milhão de reais por assédio moral (RO nº 01034.2005.001.21.00-6), com confirmação da sentença condenatória pelo TRT da 23ª Região. O caso envolveu trabalhadores que não conseguiram alcançar as metas estabelecidas pela empresa, os quais eram obrigados a pagar certas “prendas” como ouvir insultos, fazer flexões de braço, dançar na “boquinha da garrafa”, assistir a reuniões em pé, desenhar caricaturas num quadro, fantasiar-se e submeter-se a outras atitudes depreciativas.

O que muitas vezes não se tem notícia, entretanto, é de que o assédio moral é capaz de resultados mais devastadores que a guerra e que a violência que assola o cotidiano das grandes cidades.

Conforme já dissemos em outras oportunidades, o assédio moral é capaz de destruir um ser humano sem que haja uma gota de sangue sequer e sem qualquer gesto brutal contra ele, utilizando apenas o que se convencionou chamar de “violência invisível”, aniquilando moral e psiquicamente suas vítimas.

Essa “violência invisível”, devastadora, perversa e aparentemente insignificante se desenvolve através de gestos, palavras, ações ou omissões que instituem um processo que pode ter lugar na família, nas relações entre casais, nas empresas privadas e, inclusive, no serviço público, traduzindo mesquinho mecanismo de manipulação doentia, deixando a vítima incapaz de reagir e de perceber o alcance da destruição que a atinge.

Mais especificamente tratando das relações de trabalho públicas (serviço público) e privadas, MARIE-FRANCE HIRIGOYEN (“Assédio Moral: A violência perversa do cotidiano”. 5ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2002. p. 65) define o assédio moral como “toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se, sobretudo, por comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.”

O desgaste psicológico causado pelo assédio moral vem sendo estudado no mundo inteiro, sendo a Suécia, a Alemanha, os Estados Unidos, a Itália e a Austrália países pioneiros nesse campo, principalmente na área trabalhista, onde se traduz numa verdadeira “guerra psicológica no local de trabalho”, caracterizada pelo “abuso de poder” e pela “manipulação perversa”.

Isso porque a vítima, que se torna alvo por resistir à autoridade e não deixar-se subjugar pelo autoritarismo do chefe, é sempre atacada, ultrajada, submetida a manobras hostis e degradantes no ambiente de trabalho, sendo que qualquer coisa que faça ou qualquer iniciativa que tome é voltada contra ela pelo agente perseguidor, geralmente o superior hierárquico - o chefe, levando-a a uma total confusão, que pode desencadear frustração, humilhação e depressão, e, em casos mais extremados, culminar em respostas fisiológicas (úlceras de estômago e duodeno, doenças de pele, doenças cardiovasculares, tonturas, emagrecimento etc) e comportamentais (crises de nervos, ansiedade, apatia, desinteresse pelo trabalho, desgosto), evoluindo para o suicídio ou tentativa de suicídio.  

O ponto de partida do assédio moral, segundo leciona MARIE-FRANCE HIRIGOYEN (ob. cit.), é o abuso de poder (superior hierárquico que esmaga seus subordinados com seu poder), “meio de um pequeno chefe valorizar-se”, evoluindo para as “manobras perversas” até a fase de destruição moral (psicoterror), que pode, inclusive, ter a conivência da empresa (ou do serviço público), que nada faz. Recusar a comunicação direta, mentir, manejar o sarcasmo, o desprezo, o cinismo, usar o paradoxo, desqualificar e impor o próprio poder são meios através dos quais o agressor (portador de traços narcísicos de personalidade – egocentrismo, necessidade de ser admirado, intolerância à crítica) desenvolve a “comunicação perversa”.

ALBERTO EIGUER (“Le Pervers narcissique et son complice”. Paris: Dunod. 1996) definiu os “perversos narcisistas” como “indivíduos que, sob influência de seu grandioso eu, tentam criar um laço com um segundo indivíduo, dirigindo seu ataque particularmente à integridade narcísica do outro, a fim de desarmá-lo.”

OTTO KERNBERG (“A personalidade narcisista”. In “Borderline Conditions and Pathological Narcissism”. New York. 1975), por seu turno, descreveu a patologia narcísica da seguinte forma: “As principais características dessas personalidades narcísicas são um sentimento de grandeza, um egocentrismo extremado e uma total falta de empatia pelos outros, embora sejam eles próprios ávidos de obter admiração e aprovação. Esses pacientes sentem uma intensa inveja daqueles que parecem possuir coisas que eles não têm, ou que simplesmente têm prazer com a própria vida.”

Os perversos narcisistas, portanto, como agentes do assédio moral, são indivíduos megalômanos, que enganam exibindo seus irrepreensíveis valores morais, invejando a vida que o outro tem. Apresentam-se como moralistas, dando lições de probidade aos outros, mas padecem de hipertrofia do ego e psico-rigidez, como forma de defesa contra a desintegração psíquica.

No campo legislativo, é bom que se diga, existem poucas previsões administrativas do assédio moral nas relações de trabalho envolvendo, inclusive no serviço público.

Na esfera federal, tipificando o assédio moral, já houve projetos reforma do Código Penal que não prosperaram. Mais recentemente, merece destaque o Projeto de Lei nº 3760/2012, de iniciativa do então deputado Edson Pimenta (PSD/BA) que, embora muito bem elaborado, não trouxe nenhuma disposição penal.

Percebe-se, nesse aspecto, uma tendência mundial no sentido de criminalizar o assédio moral, tal como aconteceu com o assédio sexual, penalizando aquele que, de qualquer modo, reiteradamente, depreciar, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, o desempenho ou a imagem do servidor público ou empregado, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.

Os precisos contornos da tipificação, entretanto, deverão ser objeto de acurada análise por parte dos legisladores, a fim de que se não perca o objetivo primordial da criminalização, evitando que um importante instrumento legal de contenção do assédio moral se transforme em excessivo e inaplicável dispositivo legal, a lado de tantos outros que assolam a legislação penal brasileira.


Curtiu o artigo???

Conheça os livros de Ricardo Antonio Andreucci!

Obras Andreucci


 

Imagem Ilustrativa do Post: HK OL // Foto de: Ding Yuin Shan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/90461913@N00/7420599090

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura