É necessária autorização judicial para exame dos dados armazenados em um smartphone?: Uma breve análise do RHC n. 51.531/RO, do Superior Tribunal de Justiça

16/05/2016

Por Kelvin J. Bressan - 16/05/2016

I - Introdução

No dia 19 de abril de 2016, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 51.531/RO para declarar como ilícitas as provas obtidas a partir do celular do paciente sem prévia ordem judicial. A decisão, disponibilizada no site do Tribunal no dia 9 de maio de 2016, recebeu a seguinte ementa:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A PERÍCIA NO CELULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. 1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial.2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos.

II - Sobre o caso

O Recorrente foi preso em flagrante após a Polícia Militar encontrá-lo na posse de 300 (trezentos) comprimidos de ecstasy, remetidos a ele, supostamente, pela via postal[1]. Apreendido seu aparelho celular, as informações contidas no dispositivo (fotos e conversas pelo aplicativo whatsapp) foram acessadas pela Autoridade Policial sem prévia autorização judicial.[2]

Instado, o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia assentou ser “[...] válida a transcrição de mensagens de texto gravadas no aparelho celular apreendido com o paciente por ocasião de sua prisão em flagrante pois estes dados não gozam da mesma proteção constitucional de que trata o art. 5º, XII” (Habeas Corpus n. 0007083-93.2014.822.0000, 2ª Câmara Criminal, Relator Des. Valdeci Castellar Citon. Data do julgamento: 6/8/2014).

III - O refinamento do precedente gravado no HC n. 91.867/PA, do Supremo Tribunal Federal, e o panorama internacional sobre a questão.

Julgando fatos ocorridos no ano de 2004, o Supremo Tribunal Federal entendeu inexistir coação ilegal no fato de a Autoridade Policial, desprovida de qualquer ordem judicial, ter procedido à análise do registro telefônico de dois celulares após a prisão em flagrante de um suspeito.[3]

Cientes de tal precedente, os Ministros expressaram em seus respectivos votos que a atual quadra do desenvolvimento tecnológico permite que um smartphone armazene uma imensa quantidade de informações sobre a vida privada do seu proprietário, não se resumindo, como nos idos de 2004, ao simples registro de ligações e agenda de contatos. Nas palavras da Ministra Maria Thereza de Assis Moura (p. 2 do seu voto):

[...] existe uma infinidade de dados privados que, uma vez acessados, possibilitam uma verdadeira devassa na vida pessoal do titular do aparelho.

É inegável, portanto, que os dados constantes nestes aparelhos estão resguardados pela cláusula geral de resguardo da intimidade, estatuída no artigo 5º, X, da Constituição. A proteção dos dados armazenados em aparelhos celulares, portanto, é ínsita ao direito fundamental à privacidade.

O Relator, Ministro Nefi Cordeiro, equiparou a proteção aos dados armazenados no aparelho celular à que gozam o sigilo bancário, telefônico e de correio eletrônico, ou seja: somente podem ser acessados por prévia e fundamentada decisão judicial (p. 5-6 do seu voto).

O Ministro Rogério Schietti Cruz bem lembrou que existem dois tipos de dados protegidos quando se acessa o aparelho celular: aqueles já gravados no aparelho e os que eventualmente sejam interceptados durante o manuseio (p. 7-8 do voto).

Os citados Ministros levaram a discussão para o cenário internacional ao apresentarem o entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, representado pelo caso Riley vs. California (573 U.S. 2014), no sentido de que é exigida ordem judicial prévia para que a Autoridade Policial possa acessar os dados de um aparelho celular apreendido (p. 4 e p. 9-10 do respectivo voto, na ordem de citação).

A Ministra Maria Thereza foi além e mencionou recente decisão proferida pela Suprema Corte do Canadá (R. v. Fearon, 2014, SCC 77, 2014, S.C.R. 621) legitimando o acesso da polícia aos dados armazenados em um celular independentemente de autorização judicial, desde que: a) a prisão tenha sido lícita; b) o acesso aos dados ocorra incidental e imediatamente após a prisão, demonstrada a necessidade da medida em relação à persecução penal (v.g. proteger a autoridade policial, o suspeito ou o público; preservar elementos de prova; e/ou descobrir novas provas caso a investigação possa resultar impedida ou prejudicada significativamente); c) via de regra, apenas e-mails, textos e fotos e chamadas telefônicas sejam verificadas; d) a Autoridade Policial reporte como e quais dados foram acessados, aplicativos verificados, duração e extensão do exame.

Ainda, trouxe à baila o entendimento do Tribunal Constitucional Espanhol (Sentencia 115/2013) – semelhante ao do Supremo Tribunal Federal no HC n. 91.867/PA – que, ao valer-se do princípio da proporcionalidade, considerou como uma “ingerência leve” a consulta da agenda telefônica de um celular abandonado por suspeitos em fuga. O Tribunal, porém, deixou claro que uma análise mais aprofundada dos dados encontrados no aparelho implicaria em maior rigor na ponderação.

Finalmente, a Ministra fundamentou seu voto em um juízo de proporcionalidade entre a garantia geral de segurança pública (art. 144 da Constituição Federal)[4] e o direito à privacidade (art. 5.º, X, da Constituição Federal), consignando não verificar urgência ou excepcionalidade que permitisse à Autoridade Policial ter acesso imediato aos dados constantes no smartphone do Recorrente, de modo que (p. 7 do voto):

Diante da situação concreta posta no presente recurso, para a validade da obtenção dos dados caberia às autoridades policiais realizar imediatamente a apreensão do aparelho e postular ao Poder Judiciário, subsequentemente, a quebra de sigilo dos dados armazenados no aparelho celular. Não tendo assim procedido, a prova foi obtida de modo inválido, devendo ser desentranhada dos autos, nos termos do artigo 157 do Código de Processo Penal.      

IV - Conclusão

Numa perspectiva geral, andou bem o Superior Tribunal de Justiça em sua decisão. O reconhecimento de que os dados armazenados em um smartphone devem integrar a proteção à intimidade de toda e qualquer pessoa é, sem dúvida, um necessário e acertado avanço.

Todavia, não se pode ignorar a “carta coringa” presente no voto da Ministra Maria Thereza de Assis Moura por conta da utilização do princípio da proporcionalidade (R. Alexy) como critério de decisão. Nas palavras da Ministra (p. 7 do seu voto):

Não descarto, de forma absoluta, que, a depender do caso concreto, caso a demora na obtenção de um mandado judicial pudesse trazer prejuízos concretos à investigação ou especialmente à vítima do delito, mostre-se possível admitir a validade da prova colhida através do acesso imediato aos dados do aparelho celular. Imagine-se, por exemplo, um caso de extorsão mediante sequestro, em que a polícia encontre aparelhos celulares em um cativeiro recém-abandonado: o acesso incontinenti aos dados ali mantidos pode ser decisivo para a libertação do sequestrado.

Não ignoramos a gravidade da situação posta pela Ministra, porém, adiantar um juízo de proporcionalidade parece, no mínimo, temerário, mormente em tempos de crescentes desejos punitivistas, abrindo margem para atuações abusivas disfarçadas de “proporcionais”.

Ademais, como bem leciona Lopes Jr[5], o conceito de proporcionalidade é francamente manipulado e “[...] serve a qualquer senhor”. Com o fito de objurgar direitos fundamentais do réu, esse pensamento opera em um reducionismo binário de interesse público x interesse privado, vendo a sociedade como um ser gigantesco e superior da qual todos os homens dependem e devem obediência, deixando de lado a atual complexidade das relações sociais, constituindo-se, pois, em uma visão autoritarista e que não pode mais ser aceita.

Vale colacionar outra importante observação do professor Lopes Jr[6]:

[...] em matéria penal, todos os interesses em jogo – principalmente os do réu – superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensão de direitos fundamentais (portanto, “público”, se preferirem). Na verdade, são verdadeiros direitos de todos e de cada um de nós, em relação ao (ab)uso de poder estatal.

Para finalizar, caro leitor, gostaríamos de compartilhar um exemplo da “sutileza” com que a violação ora combatida pode ocorrer[7]:  Direito à privacidade sumariamente violado.


Notas e Referências:

[1] O paciente foi denunciado pela prática dos crimes previstos nos arts. 33 e 35 da Lei 11.343/06 e art. 329 do CP.

[2] Pela dinâmica do caso, muito embora não mencionado nos votos, é possível supor que as informações obtidas seriam utilizadas para provar a ocorrência do crime previsto no art. 35 da Lei n. 11.343/06.

[3] [...] 2. Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial - violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Art. 6º do CPP: dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal. Ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito (dessa análise logrou encontrar ligações entre o executor do homicídio e o ora paciente). Verificação que permitiu a orientação inicial da linha investigatória a ser adotada, bem como possibilitou concluir que os aparelhos seriam relevantes para a investigação. [...]. (Habeas Corpus n. 91867, Relator Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma. Data do julgamento: 24/4/2012. Sem grifos no original).

[4] Foram citados, ainda, dispositivos das Leis n. 9.472/97 e 12.965/14 (p. 6 do voto).

[5] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 596-597.

[6] LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 34.

[7] Infelizmente, a violação à privacidade foi apenas um dos incontáveis “desvios” (nos faltam palavras para descrever o que se passou na abordagem policial) registrados.


Kelvin J. Bressan. . Kelvin J. Bressan é Bacharel em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC. Advogado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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