É juridicamente impossível a desconstituição judicial da Defensoria Pública em sua atuação institucional

02/12/2015

Por Bruno de Almeida Passadore - 02/12/2015

No presente estudo, abordaremos caso exposto em sítios eletrônicos especializados, nos quais foi trazido julgado da justiça federal da 4ª região em que se considerou acusado defendido pela DPU em processo-crime indefeso, afastando a atuação defensorial e, por consequência, tendo sido nomeado defensor ad hoc para promover aludida defesa[1].

Dada a limitação de espaço, não abordaremos a questão relativa a presença ou não do suposto estado de indefesa, mas tão-só a que diz respeito à nomeação de advogado dativo em referidas situações.

Ao lidar com a atuação do Ministério Público – cujo raciocínio mostra-se plenamente aplicável à Defensoria Pública –, é absolutamente natural a percepção de que a lei/Constituição atribui determinada atividade ao órgão ministerial, como, por exemplo, a acusação pública. Há, neste aspecto, o interesse objetivo da instituição em determinado fim, não havendo, por outro lado, comprometimento do necessário desinteresse subjetivo do agente responsável pela atividade do órgão[2].

Aliás, veja-se que apesar do comprometimento objetivo, viável a arguição de impedimento e/ou suspeição do membro do Ministério Público, como bem estabelece o art. 104[3] e 258[4] da lei processual penal, sendo, inclusive, dever funcional do membro do órgão ministerial declarar-se suspeito ou impedido quando for o caso, como estabelece o art. 43, VII, da L. 8.625/93[5] (Lei Orgânica do Ministério Público).

Sobre a questão, esclarece CABRAL:

“O Ministério Público e a Administração Pública, pelo fato de agirem em prol de um interesse público material (ainda que um interesse geral, público), têm suas atuações pautadas por interesse objetivo e desinteresse subjetivo, porque, apesar de imparcialidade, falta-lhe impartilidade. Objetivamente, por vezes, atuam em favor de um interesse por uma determinação normativa que é atribuída à função destes órgãos. Mas isso, frisa-se, não implica necessariamente em comprometimento de sua imparcialidade […]”[6]

Assim, como frisa o autor, apesar de imparcial, o promotor de justiça/procurador da república carece de impartialidade, algo que se mostra necessário à atividade jurisdicional. Quer-se dizer com isto que a qualidade de parte é, em determinadas circunstâncias, característica inarredável da própria divisão de competências dentro e fora do processo, muito embora isto não prejudique a imperiosa imparcialidade do agente atuante, como corolário do princípio da impessoalidade.

Denota-se, portanto, que a divisão funcional se relaciona a uma aptidão extrínseca, e referente às atribuições distribuídas a cada um dos sujeitos processuais envolvidos, ainda que não o seja na qualidade de parte, como é o caso da Defensoria Pública, órgão que em muitos casos atua como representante processual de determinado litigante. Tal situação é, a toda evidência, distinta da avaliação acerca da capacidade ou imparcialidade do agente que exerce as funções atribuídas a determinado órgão. Trata-se aqui de qualidades intrínsecas, pessoais, e inerentes aos agentes[7].

Assim, caso em determinada localidade haja atividade defensorial em prol da população vulnerável em casos criminais nos quais o acusado não tenha defesa técnica constituída, cabe à Instituição a referida atuação. E exclusivamente a ela.

Não haverá ausência de imparcialidade ou incapacidade da Instituição, porém, não se nega que isto será possível em relação ao membro da Defensoria Pública, o qual, tal qual os membros do Ministério Público podem ser suspeitos ou impedidos de atuar em um caso concreto.

Esta situação se mostra clara quando há atuação defensorial em prol de ambos os litigantes, situação não rara na seara de família. Em tais hipóteses é plenamente viável a atuação da Defensoria Pública nos interesses do autor e do réu concomitantemente, havendo, por outro lado, a garantia conferida ao cidadão de atuação de membros distintos, dado o claro impedimento de um mesmo defensor público, que atua nos interesses do autor, também atuar em favor do réu[8].

Pois bem. Por expressa previsão legal (art. 497, V, do CPP)[9], bem como por iterativa jurisprudência[10], não se ignora a possibilidade de controle judicial acerca da (falta de) qualidade técnica da defesa de acusados em processos criminais – algo que não é objeto da presente discussão, como já exposto. Estas questões, por outro lado, envolvem eventual incapacidade do agente responsável pela defesa, que no caso em análise se tratava de membro da Defensoria Pública da União.

Não obstante, isso jamais se tratará de impossibilidade de atuação da Defensoria Pública, a qual, como dito, é a Instituição que nosso ordenamento jurídico atribuiu a função de atuar, entre outras situações, em casos nos quais haja interesse de hipossuficiente ou se trate de acusado em processo criminal sem defesa técnica, desde que, por óbvio, haja atuação de órgão defensorial na localidade – já que, como se sabe, a Defensoria Pública ainda não se mostra estruturada em todas as comarcas/seções judiciárias do país.

Tal qual em situação de imparcialidade de magistrado ou de membro do Ministério Público, a situação pessoal do agente da Defensoria Pública não se dirige à Instituição. Com efeito, se determinado magistrado, por qualquer razão, não deve atuar em determinado processo, esta circunstância não torna o Poder Judiciário incompetente para prestar a jurisdição na causa. Se determinado promotor de justiça está em situação de suspeição, permanece necessária a atuação do Ministério Público, caso o processo verse sobre uma das hipóteses de intervenção obrigatória. Do mesmo modo, portanto, ocorre em relação a qualquer circunstância que exija ou recomende a não atuação de um defensor público específico em determinada causa, quando, então, ele deverá ser substituído por outro agente que atue na causa presentando a Instituição.

Considerando, ademais, o teor do art. 134 da CF, mormente em seu parágrafo segundo,[11] a Defensoria Pública é configurada como um órgão constitucional autônomo, ou seja, não se submete em termos funcionais ou administrativos a nenhum outro órgão ou poder no que se refere à prestação de seus serviços[12], cabendo-lhe, portanto, planejar os caminhos que devem ser percorridos para que alcance seu mister constitucional[13].

Nesta senda, considerando de um lado a hipotética impossibilidade de atuação do membro da Defensoria Pública – seja por incapacidade técnica, seja por impedimento ou suspeição - aliada a dois outros fatores: (a) a atuação da Defensoria Pública da União nos juízos criminais federais de Curitiba e (b) a autonomia administrativa e funcional do órgão; temos como consectário necessário por parte do Judiciário, diante de aludida situação, o requerimento de diligências interna corporis, fosse através de ofício ao Defensor Público Geral da União, ou de representação à Corregedoria Geral da Defensoria Pública, para que houvesse a atuação de outro membro da instituição que não aquele impossibilitado. Afinal, se mostra juridicamente impossível a nomeação de advogado dativo já que se trata de atividade inerente à Defensoria Pública e a incapacidade, caso existente, se daria em relação ao membro do órgão defensorial.

Deste modo, a decisão da justiça federal de Curitiba, bem como do e. Tribunal Regional Federal da 4ª região, mostra-se cabalmente equivocada, esperando que tal posicionamento seja revisto tanto pela corte local, quanto pelos tribunais superiores, se o caso.


Notas e Referências:

[1]  http://www.conjur.com.br/2015-nov-15/defensoria-nao-discordar-acusacoes-apresentar-fundamentos, acesso em 18/11/2015.

[2] CABRAL, Antônio do Passo, Imparcialidade e Impartialidade. Por uma teoria sobre a repartição e incompatibilidade de funções nos processos civil e penal in Revista de Processo, coord. Teresa Arruda Alvim Wambier, ano 32, vol. 149 (jul/2007),p. 351.

[3]Art. 104.  Se for argüida a suspeição do órgão do Ministério Público, o juiz, depois de ouvi-lo, decidirá, sem recurso, podendo antes admitir a produção de provas no prazo de três dias.”

[4]Art. 258.  Os órgãos do Ministério Público não funcionarão nos processos em que o juiz ou qualquer das partes for seu cônjuge, ou parente, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, e a eles se estendem, no que Ihes for aplicável, as prescrições relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes.”

[5] “Art. 43. São deveres dos membros do Ministério Público, além de outros previstos em lei: […] VII - declarar-se suspeito ou impedido, nos termos da lei; […]”

[6] Ibidem, p. 351 – grifos adicionados.

[7] Ibidem, p. 347.

[8] Veja, por exemplo o art. 4-A, V, da Lei Complementar 80/94 (Lei Orgânica da Defensoria Pública): “Art. 4º-A.  São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos: […] V – a atuação de Defensores Públicos distintos, quando verificada a existência de interesses antagônicos ou colidentes entre destinatários de suas funções.” E, igualmente, o dever do membro da Defensoria Pública, tal qual do Ministério Público, de declarar-se suspeito ou impedido quando o caso: “Art. 129. São deveres dos membros da Defensoria Pública dos Estados: […] VI – declarar-­se suspeito ou impedido, nos termos da lei; […]”

[9] “Art. 497.  São atribuições do juiz presidente do Tribunal do Júri, além de outras expressamente referidas neste Código: […]V – nomear defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso, podendo, neste caso, dissolver o Conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a constituição de novo defensor; […]”

[10] Por todos: “A colidência de teses defensivas é apenas invocável, como causa nullitatis, nas hipóteses em que, comprovado o efetivo prejuízo aos direitos dos réus, a defesa destes vem a ser confiada a um só defensor dativo, eis que – consoante adverte a jurisprudência do STF – ‘Não se configura a nulidade, se o defensor único foi livremente constituído pelos próprios acusados’ (RTJ 58/858 – RTJ 59/360 – 69/52 – RTJ 88/481 – RTJ 110/95). A indisponibilidade do direito de defesa – que traduz prerrogativa jurídica de extração constitucional – impõe ao magistrado processante o dever de velar, incondicionalmente, pelo respeito efetivo a essa importante garantia processual, cabendo-lhe, inclusive, proclamar o réu indefeso, mesmo naquelas hipóteses em que a ausência de defesa técnica resulte do conteúdo nulo de peça produzida por advogado constituído pelo próprio acusado.” (STF - HC 70.600/SP, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 19/04/1994, Primeira Turma, DJE de 21/08/2009.)

[11] “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. […] § 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.”

[12] A respeito, frisa-se o entendimento do E. Supremo Tribunal Federal nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.056, ao declarar a inconstitucionalidade de normas do Estado do Maranhão que submetiam a Defensoria Pública do aludido ente federado à estrutura administrativa do Poder Executivo, cuja ementa é a seguinte: “CONSTITUCIONAL. ARTS. 7º, VII, 16, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 8.559/2006, DO ESTADO DO MARANHÃO, QUE INSEREM A DEFENSORIA PÚBLICA DAQUELA UNIDADE DA FEDERAÇÃO NA ESTRUTURA DO PODER EXECUTIVO LOCAL. OFENSA AO ART. 134, § 2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ADI PROCEDENTE. I – A EC 45/04 reforçou a autonomia funcional e administrativa às defensorias públicas estaduais, ao assegurar-lhes a iniciativa para a propositura de seus orçamentos (art. 134, § 2º).  II – Qualquer medida normativa que suprima essa autonomia da Defensoria Pública, vinculando-a a outros Poderes, em especial ao Executivo, implicará violação à Constituição Federal. Precedentes. III – ADI julgada procedente.” (STF – ADI 4056, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 07/03/2012). Em igual sentido, tem-se a ADI 3.569, igualmente analisada pelo Supremo Tribunal Federal, em 02/04/2007, em julgado relatado pelo Min. Sepúlveda Pertence e que considerou inconstitucional lei estadual pernambucana que vinculava a Defensoria Pública local à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos.

[13] Cf. SOARES DOS REIS, Gustavo Augusto; SZEIBIL, Daniel Guimarães; JUNQUEIRA, Gustavo, Comentários à Lei da Defensoria Pública. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013, p. 40/41.


Bruno de Almeida Passadore. Bruno de Almeida Passadore é Defensor Público do Estado do Paraná, titular da 44ª Defensoria Pública de Capital, com atribuição perante as Varas da Fazenda Pública de Curitiba. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e mestrando em Direito Processual Civil pela mesma instituição. .


Imagem Ilustrativa do Post:  As cores da lei // Foto de: Ricardo // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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