Drogas, por que legalizar? A interferência do Direito Penal na questão das drogas. Parte 4 – Questões controversas do art. 28 da lei 11.343/06

11/07/2016

Por Rodrigo Darela de Souza - 11/07/2016

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3Parte 5Parte 6, Parte 7Parte 8, Parte 9

4 Questões controversas do art.28 da lei de drogas (Lei 11.343/06)

O usuário de Drogas, após décadas de intensos debates e estudos, propugna-se que deve ser tratado e não mais punido pela rigidez do direito penal, pois a criminalização do usuário afronta princípios penais, como a alteridade e lesividade, e princípios constitucionais, como autonomia da vontade (princípio implícito), pois, atinge apenas sua esfera individual. Porém, a lei 11.343/06, em seu artigo 28, define crime o ato de:

Art. 28: Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviço à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. (BRASIL, 2006)

Muito se discutiu acerca da natureza jurídica deste artigo, se houve uma descriminalização, despenalização, “abolitio criminis” ou uma infração “sui generis”. Porém, o STF se manifestou em 2007, afirmando que a conduta descrita no art. 28 trata-se de despenalização, mantendo-se então a conduta como criminosa. Foi através do Recurso Extraordinário 430105RJ (julgado em 2007), que pronunciou-se o Supremo nesse sentido.

Gomes (2007, p.147) faz uma crítica veemente ao posicionamento que propugna pela despenalização, pois, segundo este:

Se as penas cominadas para posse de droga para consumo pessoal são exclusivamente alternativas, não há que se falar em crime ou contravenção (por força do art. 1º da lei de introdução ao Código Penal). O art. 28, consequentemente, contempla uma infração sui generis (uma terceira categoria que não se confunde nem com crime nem com a contravenção penal).

Continua Gomes (2007, p.147), dizendo que “o fato deixou de ser criminoso (em sentido estrito), houve uma descriminalização formal, porém, sem a concomitante legalização [...] mas a posse da droga não foi legalizada”. Reforça sua teoria dizendo que é infração “sui generis”, não só porque as penas cominadas não conduzem à prisão, senão também porque normalmente a transação penal impede outra por prazo de cinco anos. Em relação ao usuário, isso não acontece.

Assim, a lei 9.099/95, que traz algumas espécies de penas alternativas, não é aplicada ao usuário, pois, este pode ter várias transações penais dentro do prazo de cinco anos, de modo que caracterizaria um caso “sui generis”.

Importante fazer algumas observações acerca do posicionamento do STF. Crime ou contravenção são espécies do gênero infração penal, que são sancionadas com uma pena ou uma medida de segurança, estas, espécies de sansão penal.

Se houve uma despenalização no crime descrito no artigo 28 da Lei de Drogas, logo não há possibilidade de aplicação de qualquer pena, então, poderemos questionar se deveria haver uma medida de segurança a ser aplicada para continuar sendo descrita a conduta como criminosa. Não é o que acontece, pois, advertência, prestação de serviço à comunidade ou medida educativa não são espécies de medida de segurança, que segundo o Código Penal são:

Art. 96. As medidas de segurança são:

I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;

II - sujeição a tratamento ambulatorial.

Parágrafo único - Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta. (BRASIL, 1940)

Por óbvio, ainda assim seria impossível aplicação de medida de segurança, tendo em vista ser imputável o agente que pratica tal conduta, sendo somente por exceção a inimputabilidade em casos extremos de dependência.

Importante salientar que existem posicionamentos que afirmam ser a despenalização uma suavização da resposta penal, com penas alternativas, segundo o art.5º, XLVI, alínea “d” da CF/88, e que é o posicionamento do STF no julgado de 2007:

Art. 5º, XLVI: A lei regulará a individualização da pena e adotará, dentre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

 (BRASIL, 1988, grifo nosso)

Ora, o próprio inciso 5º XLVI indica outras formas de “pena”. Logo, equivoca-se o STF afirmando que houve despenalização. Poderia então alegar, no máximo, uma descarceirização.

Por isso, é difícil de entender a posição do STF de manter a conduta como criminosa e despenalização do artigo, pois, tal dispositivo, trata-se de pena restritiva de direitos, e prestação social alternativa é uma espécie de pena restritiva de direitos, por força do art. 43 do Código Penal, que estabelece a prestação de serviços à comunidade como uma espécie de pena restritiva de direitos. Logo, não houve então uma despenalização, isso porque a prestação social alternativa é uma espécie de pena, conforme art.32 c/c com o art.46 CP:

Art. 32 - As penas são:

I - privativas de liberdade;

II - restritivas de direitos;

III - de multa. (BRASIL, 1940, grifo nosso) 

Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação da liberdade.

§ 1º A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado.

§ 2º A prestação de serviço à comunidade dar-se-á em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais.

§ 3º As tarefas a que se refere o § 1o serão atribuídas conforme as aptidões do condenado, devendo ser cumpridas à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho.

§ 4º Se a pena substituída for superior a um ano, é facultado ao condenado cumprir a pena substitutiva em menor tempo (art. 55), nunca inferior à metade da pena privativa de liberdade fixada. (BRASIL, 1940, grifo nosso) 

Assim, a prestação social alternativa está incluída no Título V do Código Penal (Das Penas), não deixando, portanto, de se configurar uma espécie de pena, de modo que não pode ser considerado despenalizado aquilo que é considerado pena pelo Código Penal. Importante observar também que o art. 46 CP requisita condenação superior a seis meses para esta modalidade de pena, algo impossível, pois o art. 28 não prevê penal alguma.

Observa-se também que não se pode considerar crime aquilo que é despenalizado, pois não existe crime sem pena, que, além de ser um vácuo inócuo sem qualquer sentido, que torna a intervenção penal arbitrária e viola o princípio da intervenção mínima. Este é o caminho mais importante a ser observado, pois, de acordo com a teoria constitucional do pós-positivismo, os princípios são inclusos dentro da norma, portando, com força vinculante, conforme já abordado.

Assim, em conflitos entre regras e princípios haverá prevalência do princípio sobre a regra, de modo que sua observância é vinculada. Isso gera, portanto, a inconstitucionalidade do artigo, em vista de afrontar não apenas um princípio (intervenção mínima), mas vários princípios constitucionais penais (lesividade, alteridade etc...).

Outra observação refere-se ao fato de a lei não explicar o que é droga, deixando para a ANVISA tal papel. Portanto, trata-se de uma norma penal em branco, preenchida por um ato administrativo, portanto infralegal, e por ser infralegal é uma norma penal em branco heterogênea. É a portaria de número 344/98 da S.N.V.S (Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária) que define drogas.

Quanto ao crime tipificado no artigo 28 da nova lei, ampliou-se o rol em relação à lei 6.368/76, incluindo quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou leva consigo droga para consumo pessoal, tendo por base a ideia de que a referida conduta traz consigo um inerente risco social, colocando em perigo a saúde pública no sentido de que o usuário ou dependente, mesmo que a transporte ou realize qualquer das condutas com o objetivo do consumo próprio, está sempre psicologicamente predisposto a disseminar o vício a outrem.

No entanto, entende a lei que a lesão social deste usuário é menor e menos marcante do que aquele que pratica o crime de tráfico, por exemplo, o que explica o porquê da “pena” mais leve.

Poderíamos questionar que, se, ao trazer consigo “drogas”, o usuário está predisposto a disseminar o vício a outrem, logo, o mesmo pensamento deve ser atribuído ao tabaco e ao álcool, pois a lógica é a mesma, tornando incoerente a intervenção penal num caso, mas não noutro.

Mas pode ser ainda pior, pois aquele que entrega, ainda que gratuitamente, drogas a outrem, pratica o delito de tráfico (artigo 33 da referida lei), tornando inválida a fundamentação da posse de drogas para consumo pessoal, baseada na ideia de que o consumidor está “predisposto a disseminar seu vício a outrem”, e que as drogas poderiam cair em mãos alheias, pois, se assim fosse, não seria então drogas para consumo pessoal, mas sim para consumo alheio.

Santos e Figueiredo (2012) afirmam que é crime de mera conduta, os verbos núcleo do tipo, trazer consigo, transportar [...], portanto, não necessita de prova do perigo concreto, lembrando que crimes de mera conduta têm acentuada crítica de parte da doutrina pátria, pois não há fato praticado para merecer intervenção penal, pois não houve lesão ou ameaça ao bem jurídico, violando o princípio da ofensividade da conduta.

Com pensamento divergente, Souza e Bersan (2013) protestam pela constitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas afirmando que:

A manutenção do denominado porte de entorpecente para uso próprio, atualmente aplicado à conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar encontra justificativa por não ser considerado um atentado contra a saúde individual daquele que pratica tal conduta, mas sim por considerar-se um atentado contra a saúde pública. Em que pese o fato do usuário da droga prejudicar sua própria saúde, não podemos nos olvidar de que a coletividade, como um todo, também é colocada em risco. O vício das drogas tem o potencial de desestabilizar o sistema vigente. Nessa linha de raciocínio, necessário se faz consignar elucidativa lição do eminente Vicente Greco Filho (2011): “[...] a punição do simples porte se insere, como parte no todo, no quadro geral e no ciclo operativo completo, da luta, com meios legais, em todas as frentes, contra o alto poder destrutivo do uso de estupefacientes e contra a difusão de seu contágio que alcançam o nível de manifestações criminosas tais que suscitam, em medida cada vez mais preocupante, a perturbação da ordem”. E continua o renomado autor (2011): “A razão jurídica da punição daquele que adquire, guarda ou traz consigo para uso próprio é o perigo social que sua conduta representa”. Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo, porque é fato decisivo na difusão dos tóxicos. Já vimos ao abordar a psicodinâmica do vício que o toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno. 

Assim, na visão dos autores, é plenamente constitucional o artigo 28 da lei 11.343/2006 e complementam afirmando que:

Como pode ser facilmente vislumbrado, o porte de substância entorpecente está relacionado aos riscos provenientes da droga frente à sociedade e à saúde pública. Assim, o argumento dos que entendem que o referido porte para consumo pessoal constitui uma autolesão, alegando em consequência a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, em que pese a sua força, data máxima vênia, não merece prosperar. 

Forte argumento em defesa de constitucionalidade de tal artigo, diz respeito ao fato de que não existe ataque ao princípio da alteridade ou da lesividade, afirmando que a conduta de consumir a droga não é incriminada, logo não haveria autolesão. Gomes (2007, p.110) por sua vez afirma que:

é preciso distinguir, prontamente, o usuário do dependente de drogas. Nem sempre o usuário torna-se dependente. Aliás, em regra o usuário de droga não se converte num dependente. Ser usuário de droga (como álcool) não significa ser toxicodependente (ou alcoólatra).

Logo, ao contrário de Vicente Greco Filho, Luiz Flávio Gomes não concorda que toxicômano é necessariamente um viciado que irá traficar para manter seu vício, além de estar predisposto a levar outros ao seu “inferno astral”.

Na verdade, é distorcida a visão que inclui todos os usuários de drogas como viciados e com tal predisposição. Aliás, apenas algo em torno de 10% dos usuários são dependentes, de modo que a esmagadora maioria (aproximadamente 90%) que usa substâncias psicoativas, utilizam por recreação sem ser toxicodependente.

É o que afirma Carl Hart (2014), neurocientista, professor adjunto nos departamentos de psicologia e psiquiatria da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Para os defensores da constitucionalidade do artigo 28, o bem jurídico tutelado é a saúde pública e não se criminaliza a autolesão.

O problema está no fato de que ninguém pode consumir drogas sem trazer consigo, salvo raríssimas exceções. Além disso, as drogas lícitas também poderiam atentar contra o suposto bem jurídico “saúde pública”, e não existe um critério que defina porque um é considerado lícito e outro ilícito.

Acreditar que usuário necessariamente levará consigo outras pessoas a consumirem drogas, o coloca em patamar semelhante ao traficante, pois aquele, consumindo ou não a droga, acreditar que levaria outras pessoas a consumirem, consubstanciaria na figura típica do art.33 da referida lei de drogas(tráfico), tornando incoerente a justificativa de criminalização do artigo 28.

Logo, mais uma vez, mostra-se incoerente tal artigo com impossibilidade de distinguir usuário de traficante, já que, mesmo gratuitamente, quem entrega droga a outrem pratica o crime de tráfico. É o que diz o artigo 33 da lei de drogas:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

Portanto, podemos perceber, claramente, que, por detrás do pretendido bem jurídico saúde pública, o que de fato subsiste no delito de drogas é uma tutela da moral, o que não é permitido em matéria penal por violação ao princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos.

A saúde pública é utilizada como subterfúgio, como fachada, para burlar a tutela da moral, o que é proibido, de modo que a confusão do que pode ser ou não considerado lícito ou ilícito em matéria de drogas, do que é considerado tráfico ou uso é muito confuso, justamente porque não se tem delineado claramente o bem jurídico tutelado pela norma, justamente pelo fato de que o que verdadeiramente há é uma tutela da moral. Por isso, a confusão.

Aliás, se realmente houvesse preocupação com a saúde pública, não haveria de manter a proibição, tendo em vista os malefícios que a proibição traz à saúde pública como um todo. É também, algo inconsistente diferenciar usuário e traficante, tendo em conta que, se todo usuário leva alguém a consumir drogas consigo, pratica este, portanto, o delito de tráfico, o que torna absolutamente incoerente a posição defendida pela constitucionalidade do artigo com tal premissa.

Apesar de haver alguns critérios para definir se o agente é usuário ou traficante, existe uma incerteza, uma verdadeira confusão, pois vai depender do grau de análise e subjetividade de cada juiz no caso concreto, o que dá margem para haver classificações diferentes em situações muito semelhantes. Gomes (2007, p.161) explica a diferenciação:

Há dois sistemas legais para decidir se o agente é usuário ou traficante: a) sistema de quantificação legal – fixa-se nesse caso o quantum diário para consumo pessoal; b) sistema de reconhecimento judicial ou policial – cabe ao juiz ou a autoridade policial analisar cada caso concreto e decidir sobre o correto enquadramento típico. A última palavra é a judicial, de qualquer modo, é certo que a autoridade policial (quando o fato chega ao seu conhecimento) deverá fazer a distinção entre o usuário e o traficante.

Vemos que esse subjetivismo leva muitas vezes alguns a serem considerados traficantes e, em casos extremamente análogos, haver classificação como usuários, tornando confusa a tipificação, pois existe falta de critérios precisos. Isso decorre, em última análise, muito possivelmente, do fato de tutelar-se materialmente a moral no delito de drogas, porém formalmente escondida sob a rubrica da saúde pública.

Os defensores da inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343 afirmam que, acima de tudo, a intimidade do ser humano deve ser preservada e, portanto, nenhuma norma penal será legítima no momento em que interferir nas opções pessoais ou impuser padrões de comportamento aos sujeitos.

O mesmo se deve ao fato que o direito penal deve proteger bens jurídicos, e padrões morais não fazem parte de tal perspectiva. Pode-se alegar que nenhum direito fundamental é absoluto, e de fato não o é. Portanto, na conduta de posse de drogas para consumo pessoal não existe um perigo direto, concreto e imediato a terceiros, de forma a ferir princípios penais e constitucionais tal proibição, pois, a liberdade, desde que seu exercício não extrapole sua esfera de atuação, é um direito absoluto, até encontrar limites no direito de outros.

Santos e Figueiredo (2012):

Considera-se que a incriminação do uso de drogas fere o princípio da lesividade e tudo que há de acordo com política criminal na matéria. Bizzoto et al.(apud ARAUJO, 2012) defende que  a inconstitucionalidade se dá porque o individuo é senhor de seu próprio destino, saúde e corpo, sendo por isso, a única pessoa competente para decidir o que ele acha melhor ou pior para si mesmo. Portanto, qualquer conduta que ameace violar a liberdade e o interesse do agente fere o princípio da lesividade. A infração penal só tem lugar quando se afeta bem jurídico de terceiro. É por conta desse principio que temos o exemplo da não criminalização das condutas da tentativa de suicídio, de dano a coisa própria e autolesão. A noção de descriminalizar a conduta do usuário de drogas, já tem aderência nas cortes supremas da Argentina e da Colômbia, porque paira o entendimento geral de que o sujeito só está fazendo mal a si próprio.

É inconstitucional, também, porque o simples porte de uma droga não pode ser considerado capaz de vulnerar a saúde pública, se revestindo, portanto, da mínima ofensividade ao bem jurídico tal conduta. Aliás, outro embate jurisprudencial e doutrinário, diz respeito à possibilidade de decretar a insignificância (bagatela) no crime do artigo 28 da lei de drogas.

A questão polêmica é quando a prática de uma das condutas previstas do crime for cometida com o porte de pequena quantidade de droga. Alguns entendem ser fato atípico, pois não configura nenhum perigo social, pela lógica de que a ínfima quantidade possibilitaria apenas ao agente consumir, inexistindo o risco social de algum terceiro vir a ter acesso à droga. Sem o perigo social, inexiste crime.

Abaixo, algumas demonstrações de decisões judiciais que demonstram as disparidades de entendimento que provocam a discussão acerca da possibilidade ou não de aplicação do princípio da insignificância ou da (in)constitucionalidade do artigo:

TJRS: RECURSO CRIME Nº Nº 71003642618

Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais.

Relator: Edson Jorge Cechet

Julgado em 07/05/2012.

POSSE DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. ART. 28, "CAPUT", DA LEI 11.343/06. INEXISTÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE QUANTO AO DELITO. ABOLITIO CRIMINIS INOCORRENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AFASTADO. TIPO PENAL COMPOSTO. 1. Não há inconstitucionalidade a ser reconhecida quanto ao delito de posse de substância entorpecente. a disposição prevista no art. 28 da lei n. 11.343/06 busca coibir a difusão da droga, resguardando a saúde pública, sem afronta a qualquer das franquias constitucionais. 2. a lei n. 11.343/2006 não descriminalizou a conduta de porte de substância entorpecente para uso próprio, vindo apenas a cominar novas modalidades de sanção para o tipo penal previsto em seu artigo 28, inexistindo impedimento legal a que penas restritivas de direito sejam a única sanção cominada ao tipo penal. Conduta, por sinal, lesiva, por extrapolar a esfera da discricionariedade do indivíduo em causar dano próprio para atingir o coletivo. 3. princípio da insignificância afastado. A insignificância não está na quantidade da substância apreendida, mas na qualidade desta e na circunstância de perigo decorrente do fato. 4. a confissão espontânea sempre é causa atenuante da pena, a ser considerada na segunda fase de sua aplicação, autorizada, segundo entendimento da turma recursal, sua compensação com a agravante da reincidência. 5. impossibilidade de substituição da pena de prestação de serviços à comunidade por advertência como a mais branda das medidas previstas na legislação de regência, essa pena, que visa a incentivar o despertamento de uma consciência que desestimule a continuidade do uso de drogas, deve ser reservada àquele que não apresente envolvimento anterior nessa área, e não ao reincidente específico, como no caso. RECURSO PROVIDO EM PARTE. (Recurso Crime Nº 71003642618, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge Cechet, Julgado em 07/05/2012).

Outro julgado que defende a constitucionalidade do dispositivo:

TJMG: APELAÇÃO Nº nº 1.0223.05.167245-7/001

Rel. Des. Vieira de Brito.

Julgado em 09/10/2007.

APELAÇÃO - CRIME DE USO - ABSOLVIÇÃO - NÃO-CABIMENTO - PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA - INAPLICABILIDADE - APLICAÇÃO DA NOVEL LEI MAIS BENÉFICA - ADMISSIBILIDADE - ISENÇÃO DAS CUSTAS - POSSIBILIDADE. Não há que se falar em absolvição na hipótese se o conjunto probatório é firme e consistente em apontar a participação dos apelantes no crime narrado na denúncia, emergindo clara a responsabilidade penal de todos à vista da prova trazida aos autos. A pequena quantidade de droga não implica a aplicação do princípio da bagatela, mormente em razão de se tratar de delito que coloca em risco potencial a saúde pública e a sociedade. Condenado por crime de uso de tóxicos, nos termos do art.16 da Lei 6.368/76, deve-se aplicar a regra dos §§ 3º e 5º, do art. 28 da nova Lei Antitóxicos, por consistir lei penal mais benéfica. Em razão da Lei 14.939/03, no Estado de Minas Gerais, os assistidos pela Defensoria Pública fazem jus à isenção das custas processuais, nos termos do art. 10, inciso II, da aludida lei.” (TJMG – Ap. 1.0223.05.167245-7/001(1) – Rel. Des. Vieira de Brito – j. 09-10-07).

Por outro lado, alegando a inconstitucionalidade do artigo, afirmam as seguintes decisões:

jUIZADO ESPECIAL DE CAMPINAS-SP

Processo nº 2564/2013.

José Henrique Rodrigues Torres JUIZ DE DIREITO.

Sentença proferida 15/04/2014.

PORTE DE DROGAS PARA CONSUMO PESSOAL – ATIPICIDADE – INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.28 DA LEI 11343/2006 – JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DE CAMPINAS

O porte de drogas para consumo pessoal não é crime.  Trata-se de conduta atípica. É que o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso pessoal é inconstitucional, porque (1) não descreve conduta hábil para produzir lesão que invada os limites da alteridade, o que implica afronta ao princípio constitucional da lesividade, (2) viola os princípios constitucionais da igualdade, inviolabilidade da intimidade e vida privada, pro homine e respeito à diferença, corolários do princípio da dignidade humana, albergados pela Constituição Federal e por tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil, e (3) contraria os princípios constitucionais da subsidiariedade, idoneidade e racionalidade, que, no âmbito da criminalização primária das condutas, devem ser observados em um Estado de Direito Democrático. 

Ainda:

JUÍZO DA COMARCA DE CONCEIÇÃO DO COITÉ - BAHIA

Bel. Gerivaldo Alves Neiva  Juiz de Direito.

Sentença proferida em 17/05/2012.

POSSE DE DROGAS PARA USO PESSOAL - ATIPICIDADE - INCONSTITUCIONALIDADE DO ART.28 DA LEI 11343/06 – COMARCA DE CONCEIÇÃO DO COITÉ-BA.

Tráfico de maconha. Desclassificação para uso próprio pelo Ministério Público após a instrução. Inexistência de crime. Comprar e portar maconha para uso próprio não configura crime. Inexistência de tipicidade e inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei n° 11.343/06. Matéria em Repercussão Geral do STF. Só pode ser punido pelo tráfico quem o pratica. A Constituição Federal não pode ser ferida pela “guerra às drogas”. Absolvição do acusado. [...] A vontade e supremacia da Constituição devem permanecer como o norte e o esteio do ordenamento jurídico. Neste dilema – combate ao tráfico e respeito à Constituição – é papel de todos que lidam com o Direito buscarem soluções diferentes da simples condenação e encarceramento de milhares de jovens que muitas vezes vendem pequenas quantidades para manter a própria dependência ou que se tornam traficantes de verdade por falta de alternativas e oportunidades sociais. [...]. 

Interessante ainda, observar as recentes decisões de nossos juízes catarinenses, em especial, Juiz Maurício Fabiano Mortari (Autos n° 0004223-97.2015.8.24.0075) da comarca de Tubarão/SC, e do Juiz Alexandre Morais da Rosa (Autos n. 0000010-03.2015.8.24.0090), da 4ªVara Criminal de Florianópolis/SC.

Ambos protestam pela inconstitucionalidade do art.28 da lei de drogas. Mortari (fls.35-48 dos autos), afirma que:

o primeiro aspecto que deve ser abordado diz respeito à ausência de lesividade a direito de terceiros, não sendo possível para justificar a criminalização da conduta de portar entorpecentes adotar o discurso cômodo e simplista da lesão à "saúde pública" ou mesmo que se trata de um delito de perigo abstrato [...]. Isso porque a saúde pública não deve ser protegida pelo direito penal, pois antes de mais nada, deve ser promovida e estendida a todos os cidadãos por políticas públicas adequadas, inclusive no que se refere aos usuários de drogas que queiram ser tratados, sendo inviável pensar que toda a coletividade é atingida diante de uma pretensa potencialidade ofensiva da conduta de portar drogas para uso pessoal. [...] Na exata lição de Claus Roxin, a descriminalização é possível em dois sentidos: primeiramente pode ocorrer uma eliminação definitiva de dispositivos penais que não sejam necessários para a manutenção da paz social. Comportamentos que somente infrinjam a moral, a religial ou a political correctedness, ou que levem a não mais que a uma autopericlitação, não devem ser punidos num Estado social de direito. Pois o impedimento de tais condutas não pertence às tarefas do direito penal, ao qual somente incumbe impedir danos a terceiros e garantir condições de coexistência social. [...] Portanto, não se verificando na hipótese vertente a existência de uma conduta típica, evidente a impossibilidade de recebimento da denúncia por falta de justa causa. [...] Ante o exposto, REJEITO A DENÚNCIA oferecida contra Oswaldo Ângelo de Quadra Neto, com base no art. 395, III, do Código de Processo Penal, declarando a nulidade parcial sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06. (Grifo nosso).

O ilustre Magistrado Rosa (2015), por sua vez afirma que:

não obstante a existência de manifestações no sentido oposto, entendo que a conduta abstratamente prevista no art. 28 da Lei de Drogas não consubstancia crime. Primeiro, porque, como expressa e taxativamente define a Lei de Introdução ao Código Penal, em seu art. 1º, “considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. Adotando-se, portanto, a conceituação formal de crime, verifica-se desde logo que a conduta do art. 28 do Código Penal não pode ser tida como tal, porquanto as sanções nele previstas não correspondem ao que dispõe a lei. Mas, para além disso, sob uma pespectiva material, a conduta criminosa pode ser caracterizada como aquela que ofende os bens jurídicos mais caros e indispensáveis à manutenção do convívio social. Na conduta prevista no art. 28 da Lei de Drogas, não se pode observar qualquer tipo de ofensividade social, sendo o único dano dela decorrente provocado ao próprio usuário – fato que não é objeto do Direito Penal. Destarte, diante dos princípios da lesividade e fragmentariedade, há que se reconhecer a conduta em questão como um indiferente penal. [...] Por todo exposto REJEITO a denúncia de fls. 33-36, com fundamento no art. 395, inc. III, declarando a nulidade parcial sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06, do Código de Processo Penal. (Grifo nosso).

Para o STF, são quatro os critérios a serem analisados para poder decretar o princípio da insignificância. São eles: a ofensividade mínima da conduta, a presença de nenhuma periculosidade na ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, e a inexpressividade da lesão jurídica.

Podemos observar de plano que a conduta descrita no artigo 28 da lei de drogas de fato é uma conduta minimamente ofensiva, pois ofende (lesa) apenas o próprio usuário; não há periculosidade na ação, pois não há violência empregada; há um reduzido grau de reprovabilidade, e verifica-se isso mais claramente com a manifestação de constitucionalidade, e um direito a manifestação pela marcha da maconha, declarado constitucional pelo STF (ADPF 187) em várias manifestações pelo Brasil afora, além do debate presidencial pela descriminalização das drogas, pauta no último pleito eleitoral de 2014.

Por fim, inexpressividade da lesão jurídica, pois a lesão produzida é referente ao próprio usuário, e afronta princípios como a lesividade criminalizar conduta que não ultrapassa a esfera do indivíduo. Além do mais, o bem jurídico saúde pública não é colocado em risco de modo a necessitar a proteção penal para resolução do conflito, afrontando a subsidiariedade.

Deste modo, verifica-se que o artigo 28 da Lei de Drogas preenche todos os requisitos para configuração do Princípio da Insignificância, e seu acolhimento leva a atipicidade material do fato, deixando de subsistir crime.

Gomes (2007, p.156) afirma que é aplicável sim o princípio da insignificância ao delito do artigo 28. Segundo ele:

Quando se trata de posse ínfima de droga, o correto não é fazer incidir qualquer uma dessas sanções alternativas, sim, o princípio da insignificância, que é causa de exclusão da tipicidade material do fato. Há duas modalidades de infração bagatelar própria: a primeira reside da insignificância da conduta e a segunda na do resultado. A posse de droga para consumo pessoal configura uma das modalidades de delito de posse (...) não existe nesse caso, conduta penalmente ou punitivamente relevante.

Após explanação referente ao usuário de drogas, passaremos então a analisar no próximo artigo, um breve resumo dos votos dos três Ministros que já proferiram seu voto no RE635659 (que está sendo analisado atualmente), julgando inconstitucional a tutela penal no porte de drogas para consumo pessoal.


* Artigo elaborado a partir da monografia apresentada para obtenção do título de bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. 06/2016.


Rodrigo Darela de Souza. . Rodrigo Darela de Souza é Graduado em História, Graduado em Direito, Especializado em Direito Penal e Processo Penal. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Drugs or Me // Foto de: Adrianna Broussard // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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