Por Cyro Marcos da Silva – 14/05/2015

No princípio era o Verbo. E se há “no princípio” é porque não é eterno, perspectiva , pois, criacionista, portanto, ex-nihil, fazendo-se “carne’- encarnando um campo e habitando entre nós, sendo assim, por si mesmo.

É Lacan quem nos lembra à página. 41 do Seminário XX que o Gênesis, “não nos conta nada mais que sobre a criação, que sobre significantes eu diria. Sobre significante em ato.

No princípio não está pois o sujeito, este vem depois, a partir da cadeia de significantes, no intervalo, a partir da fenda e refenda, a partir de alienar-se primeiramente ao campo Outro dos significantes e de daí e aí encontrar condições de separação / separação de objeto, constituindo-se pois em sua “natureza”, se assim pudéssemos nos expressar, “natureza” única possível que nada mais é que sua divisão.

O sujeito não é assim, portanto, dado de saída, nem vem a ser dado em essência, em substância, entificável; não se topa com um sujeito assim, assim. Sua categoria é de suposto, é de desaparecimento, divisão entre vir e ir, instantaneamente, deixada sua notícia pelas formações inconscientes, pelos lapsos, pelos atos falhos, pelos sintomas, pelos sonhos. É deste sujeito encontrável apenas nestes estranhos lugares, constantemente estranhável, vindo sempre do Outro, é deste sujeito que fala a Psicanálise, que a Psicanálise se põe a escutar. Este sujeito é portanto suposto, é dividido, é evanescente, não entificável, não posto em substância, é até mesmo fruto da desertificação de uma essência, de um desser, pelo descer do desfiladeiro dos significantes. Se o Verbo se fez carne, o sujeito só é exilado dela, à imagem e semelhança do verbo que representa.

Deste sujeito, o Direito quer guardar uma certa distância. Sabe que pode topar com ele a qualquer instante, mas não sabe como tratar com o mesmo. Este lhe é estrangeiro, não falam a mesma língua, têm origens e trajetórias diferentes. O sujeito dividido, no entanto, não desocupa o campo, aí está a trazer embaraços até onde não mesmo é levado em conta, e sobretudo por isto. O sujeito de que o Direito nos fala é o sujeito de direitos e o sujeito de deveres. O sujeito de direitos tem sua descrição dada pela via da instância do eu, imaginária, consciente, moldado segundo o ordenamento jurídico vigente. É a pessoa que via de regra é capaz, tem pleno gozo de suas faculdades mentais, é consciente, entende o caráter criminoso ou não de seus atos e é capaz de determinar-se de acordo com este entendimento. Tem direito à vida, à integridade física, corpórea, à sua imagem, à sua honra, à sua moradia digna, à saúde, a isto, aquilo e aquil’outro. Tem também seu elenco de deveres, uma lista de obrigações de dar, fazer e abster-se diante de determinadas situações. Enfim, é acreditado como regulável, normatizável, passível de proteção jurídica e exortado ao cumprimento de modelos de ações que lhe garantem estar representado por significantes mestres, tais como cidadão livre, proprietário, possuidor, detentor, sucessor, marido, mulher, filho, criança, adolescente, consumidor, autor, réu, litisconsorte, indiciado, contribuinte, etc.., etc.., tudo regido por uma ética kantiana do imperativo categórico, tendo com pano de fundo reminiscências de uma ética dos bens. Ora se vê jungido a comportar-se de determinada forma, plausível e idealizadora de um modelo que a todos sirva, praticando e agindo diante do outro como seria idealizável para o outro  diante de si; ora deve pautar sua conduta e seus atos para o bem do outro, exortado a amá-lo como a si mesmo, com referências explícitas e pré-determinadas do que seria, sem dúvida, o bem do outro, como no caso da criança e do adolescente. Enfim, este sujeito editado pelo figurino jurídico tem modelos a seguir , é prêt à porter, sem grandes permissões para que algo da criação, ali, naquele mundo jurídico, surja. Aliás é até advertido, ao ingressar num processo onde estas questões encontrarão espaço de provocação, de que “o que não está nos autos, não está no mundo”. Portanto, o mundo restringe-se aos autos. Estou pois a dizer que o sujeito, no mundo jurídico, já encontra uma listagem pronta de significantes mestres, como acima exemplifiquei que o representem para que apareça sempre, se possível, sem trazer notícias de sua divisão. Quanto aos significantes do saber, o Outro se exaure a suar sua camisa para dar conta de qualquer irrupção malvinda neste campo. As legislações se sucedem em cascata, aos borbolhões, prevendo todo o possível, rastreando toda e qualquer ameaça do contingente, para abortá-la na nascente, fornecendo assim, este grande Outro do Direito, um saber suposto inesgotável que venha dar conta, o máximo possível, de qualquer facticidade provável, editando de maneira prévia uma regulação meritória para a mesma. Desta forma, estamos vendo assim a extenuação jurídica em vários campos, sobretudo o penal e o de família, logo aí, campo das surpresas ¾ pondo o legislador, detentor do saber ¾ (é dito comumente que o legislador é sábio) a legislar, mas já com pretensões de legislar aquilo que seria um exclusivo assunto de lençóis. Cansa-se pois, o Direito, inutilmente, tentando dar conta do gozo, tentando migrar o gozo para os significantes do saber, não do saber do gozo, mas do saber que paradoxalmente, dele não quer saber, pretendendo regulá-lo com leis escritas, ignorando o impossível do gozo. Quando não é isto que ocorre, dá-se a foraclusão da questão. Do gozo não se quer saber, preconizando, como já dissemos que o não estão nos autos não está no mundo, confessando assim o ordenamento jurídico, que a vida tem tão somente a dimensão ficcional dos autos, esquecendo-se de que se a verdade, tem, como tem realmente, estrutura de ficção, ela, por outro lado, não é toda, se semi-diz e, como diz Lacan, no Sem.XVII é irmã do gozo, irmandade esta aferrada ao que de inacessível tem este gozo, que não cessa de não se escrever.

Assim, o Direito desenha significantes mestres que representam o sujeito, fazendo tratos com sua fachada e, ainda, cospe em fornadas, significantes de saber ¾ leis, doutrinas, jurisprudências ¾ que regulem o laço deste sujeito com o Outro, Onde se situam então os resultados desta operação, ou seja a divisão deste sujeito, fruto de sua alienação e separação do Outro, bem como o gozo não possível de ser sugado por todos aqueles significantes do saber ?

Se posicionarmos o Direito como uma ciência que foraclui estas questões, ou como uma técnica que tenta lidar com o sujeito como se fora um objeto controlável, como o objeto traçado e previsto para as relações jurídicas que são dar, fazer e não fazer, estaremos distanciando o Direito de qualquer dimensão ética e aproximando-o ou de uma moral ou de uma ideologia onde se supõe um saber sem furo, do que seria bom para todos. Esta aí própria ética dos bens, em que o seu bem é o que assim é pensado para você, tendo com paradigma o bem do Mestre, o do detentor do poder.

Se se cai nesta hipótese, pode cair-se também na utilitarista, onde se pretenda o maior número de felizes, com felicidade traduzida em bens úteis para este fim, onde todos, para que a eles possam ter acesso, paguem o preço que tiverem que pagar. Isto já estamos vendo traduzido na voracidade do mercado à cata dos condenados a terem que ser felizes. Esta ideologia encontra guarida despistada nas normas que regem o Código do Consumidor, que, traduzindo este clima de protecionismo de raposa com galinheiro, vem cada vez mais desresponsabilizando o consumidor com seu consumo, o que se reflete até mesmo no campo das toxicomanias, onde se acham não mais os responsáveis pelo consumo dos tóxicos, mas aqueles sujeitos caídos nas redes de desresponsabilização ditada pelos significantes da medicina ou do direito: são doentes, são culpados ou inocentes.

Há ainda outros Mestres a quem o Direito pode estar a servir São variados os nomes do Pai, ou, “na casa de meu pai há muitas moradas”.

Podemos estar também assistindo à consagração positivista da lei pela própria lei ¾ dura lex sed lex. Obedeça-se a lei dentro da recomendação kantiana, dispensada qualquer manifestação da ordem do pathos, da ordem do se deixar afetar. Nisto Sade não poderia preconizar melhor. Goze-se como um legume! Seu Gozo vale e fala o meu!

O que pode a Psicanálise deixar pois como recado ao Direito? O que pode trazer a psicanálise para o Direito que não ameace colocar a psicanálise como uma pedagogia ou uma nova cartilha moral ou uma visão de mundo, como temia Freud? A psicanálise pode avisar o Direito algumas coisas:

a) que representado pelo sujeito de direito e sujeito de deveres, existe um sujeito de desejo, ou seja, diante de lei e normas que possam se esforçar em não permitir a emergência de um Outro lugar, de uma Outra cena, diante do impossível do desejo, pode haver um desejo do impossível a ser levado em conta. Neste aspecto o discurso da histérica pode nos prestar grande favor, ao interrogar aqueles tão pretensos e seguros significantes mestres.

b) que de nada adianta gritar ao imundo que o que não estiver nos autos não está no mundo, pois este imundo não é bonzinho nem sossegado. Não dá sossego, não reconhece seu lugar, - pois lugar é o que ainda não lhe foi dado - , ditará e regerá o enunciado do texto dos autos, queiramos ou não, retornará enquanto recalcado e enquanto não escutado, insistindo num retorno tanto mais contundente, quanto menos escutado foi. Será imundo enquanto não se fizer mundo, enquanto não se fizer autos, prevenidos nós desde já que há um sempre irredutível resto impossível se simbolizar. Não há deserto que se constitua sem oásis.

c) que nem o Direito nem a Psicanálise ofertam façanhas, proezas e milagres espetaculares. Há sujeitos que podem encontrar uma retificação, quer diante da Psicanálise que, na melhor das hipóteses propõe-se a isto, quer diante do Direito que, embora não se propondo a isto, pode, pela via de um processo, chegar a este ponto diante de certos sujeitos. No entanto, a canalhice, o mau caráter, os nunca respeitáveis, deverão encontrar diante dos operadores destas áreas uma resposta a seus atos que os contenha e os delimite em um campo onde não fiquem tão à vontade para destruir o Outro, seja referido ao campo do imaginário, o semelhante - (tão diferente) - , ou ao campo do simbólico, o instituído, o Outro que ultrapassa o outro. Isto porque tanto o Outro que não é total, absoluto; é furado e merece  portanto, da parte dos respeitáveis, a preservação necessária para que a vida continue. Neste momento a lei da pólis irá funcionar como ponto de basta, quando a lei do Desejo está desmentida. Quando esta estiver foracluída penso que o trato deve ser mais fino, mas da mesma forma,  preciso e  No entanto, aí não entrarei pois é uma outra larga e longa vereda.

Se a subjetividade é impossível sem que se leve em conta um campo Outro da legalidade, ou seja da lei do desejo, ou  dizendo de outra forma, de que é impossível a completude, o Um da união total, a relação absoluta, o indivisível, o total, o Mesmo, o “tem que dar certo”, por outro lado a legalidade tal com vista pelo Direito será inviável sem se levar em conta este exilado, este estrangeiro de si mesmo, esta habitante que tem um pé nos autos, no mundo, e outro fora dos autos, no imundo.

Só que, para que o operador do Direito possa levar em conta e vir a escutar o sujeito, ele deve estar suficientemente marcado pela legalidade Outra além da legalidade da pólis, terá que ter um certo saber dela, além do saber não sabido de que é portador, terá que estar um pouco mais com o pé na estrada que vai de Corinto a Tebas e de Tebas a Colono, terá que saber de oráculos, do impossível, de reinados e de morte.

Mas esta é outra história, e não é apenas bater ponto no consultório de analista que leva alguém do inferno sintomal e, da medusação perversa para uma visada avisada do desejo.

É preciso escrever sua letra (carta), assinar-se remetente e fazê-la chegar a seu destino.


Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira. No Facebook aqui                                                   

                             


Texto apresentado no II Encontro Nacional de Direito e Psicanálise.


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