Sancionada pelo Presidente da República e publicada no DOU em 24.02.2022, a Lei n. 14.304/22 veio com o propósito de vedar a divulgação, a publicação ou a disseminação, em redes sociais ou em quaisquer outros meios de divulgação digitais, eletrônicos ou impressos, do registro visual da prática de infração que coloque em risco a segurança no trânsito, alterando, em consequência, o Código de Trânsito Brasileiro.
Ocorre que a nova lei foi praticamente vetada integralmente pelo Presidente da República, restando apenas um único dispositivo que entrará em vigor após o período de “vacatio legis” de 180 (cento e oitenta) dias, acrescentando o § 2º ao art. 281 da Lei n. 9.503/97.
Situação curiosíssima em que, ao invés de um veto total, se optou por uma grande quantidade de vetos parciais, de modo que apenas um dispositivo ficou remanescente, de pouca importância, frustrando completamente a intenção do legislador.
É inegável que, nos dias atuais, temos assistido a um festival de postagens, em redes sociais, de vídeos mostrando pilotos de motos e motoristas de veículos em situações perigosas e de risco, infringindo flagrantemente as normas de trânsito e praticamente incentivando os demais usuários das redes a se comportarem de maneira diversa, muitas vezes em verdadeira incitação ao crime ou apologia de crime ou criminoso.
Essa exacerbada visibilidade e necessidade de exposição pública de comportamentos pessoais é uma das características que movimenta o sucesso das redes sociais, onde indivíduos compartilham publicamente desde momentos íntimos familiares até desgraças alheias e pessoais, ora criando um mundo de fantasias em que tudo é belo, admirável e permitido, ora chamando para si a comiseração pública em busca de um apoio psicológico que melhor seria buscado em consultórios de profissionais especializados.
Os dois primeiros artigos da nova lei tinham a seguinte redação:
“Art. 1º Esta Lei veda a divulgação, a publicação ou a disseminação, em redes sociais ou em quaisquer outros meios de divulgação digitais, eletrônicos ou impressos, do registro visual da prática de infração que coloque em risco a segurança no trânsito e altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro).
Art. 2º É vedada a divulgação, a publicação ou a disseminação, em redes sociais ou em quaisquer outros meios de divulgação digitais, eletrônicos ou impressos, do registro visual da prática de infração que coloque em risco a segurança no trânsito.
Parágrafo único. Excetuam-se do disposto no caput deste artigo as publicações de terceiros que visem à denúncia desses atos, como forma de utilidade pública.”
As razões dos vetos, calcadas em manifestação do Ministério da Infraestrutura, dão conta de que “a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade ao restringir a liberdade de expressão e de imprensa, em afronta ao inciso IV do caput do art. 5º, e ao § 1º do art. 220 da Constituição. Isso porque veda a divulgação, a publicação ou a disseminação de qualquer infração de trânsito, ainda que não intencional, representando a disposição ‘infração que coloque em risco a segurança no trânsito’ conceito muito amplo, pois a ausência de gravidade de tal conduta não justifica o cerceamento almejado.”
O art. 3º da lei, também vetado, assim dispunha:
“Art. 3º As empresas, as plataformas tecnológicas ou os canais de divulgação de conteúdos nas redes sociais ou em quaisquer outros meios digitais, ao receberem ordem judicial específica quanto à divulgação de imagens que contenham a prática de condutas infracionais de risco de que trata esta Lei, deverão tornar indisponíveis as imagens correspondentes no prazo assinalado, bem como adotar as medidas cabíveis para impedir novas divulgações com o mesmo conteúdo.
Parágrafo único. No caso de descumprimento do disposto no caput deste artigo, aplicam-se as sanções previstas nos incisos I e II do caput do art. 12 da Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014.”
No veto, que também se fundou em manifestação do Ministério da Infraestrutura, afirmou-se que “a proposição legislativa incorre em vício de inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, tendo em vista que ao estabelecer que as empresas, as plataformas tecnológicas ou os canais de divulgação de conteúdos nas redes sociais ou em quaisquer outros meios digitais deveriam adotar as medidas cabíveis para impedir novas divulgações com o mesmo conteúdo, impõe à plataforma obrigação de ‘censura prévia’ do conteúdo postado pelo usuário, em descompasso com os princípios estabelecidos pela Lei nº 12.965, de 2014 - Marco Civil da Internet, com a garantia constitucional do devido processo legal e com o direito à de liberdade de expressão, entre outros, em violação ao disposto nos incisos IV, IX, X, XII e LV do caput do art. 5º da Constituição. Além disso, o cumprimento desse dispositivo seria impraticável, dado que ainda não existem instrumentos técnicos eficazes e tecnologia desenvolvida que permitam que as plataformas sociais e os provedores de aplicação de internet possam cumprir a determinação de impedir novas divulgações do mesmo conteúdo excluído pela decisão judicial, tendo em vista que aponta especificamente o endereço eletrônico que é o objeto da decisão, o que não possibilita bloqueio, em abstrato, de novas postagens, em outros endereços, ainda que com o mesmo conteúdo. Por fim, ainda que fosse possível tecnologicamente impedir nova disponibilização de novo conteúdo anteriormente excluído, tal medida demandaria análise humana para verificar se a divulgação não estaria em contexto diverso da mera apologia à conduta delituosa, como, por exemplo, ao ser disponibilizado em contexto jornalístico ou acadêmico, o que ensejaria elevado ônus ao particular para execução da medida.”
Se prestarmos bastante atenção nos argumentos que fundamentam os vetos, até se pode entender que as razões se alicerçam na liberdade de expressão e de imprensa, rechaçando-se a censura nas redes sociais ou em quaisquer outros meios de divulgação digitais, eletrônicos ou impressos e não permitindo que as plataformas sociais e os provedores de aplicação de internet impedissem novas divulgações do mesmo conteúdo excluído pela decisão judicial, não bloqueando novas postagens, em outros endereços, ainda que com o mesmo conteúdo.
Ocorre que, paralelamente a isso, há que se evitar a incitação, pelas redes sociais, da prática de crimes de trânsito, não se permitindo que usuários façam apologia de crimes da mesma natureza e de criminosos que os pratiquem.
Essa, entretanto, é uma responsabilidade das plataformas sociais e dos provedores de aplicação, que já realizam descaradamente uma censura prévia e/ou “a posteriori”, de conteúdos que, ao seu critério absolutamente discricionário, violam as “normas de uso” ou “as diretrizes da comunidade”, sem qualquer tipo de direito ao contraditório e ampla defesa por parte dos usuários. E essa censura é feita, em grande parte, por pessoas e não apenas por computadores e algoritmos, como muitos acreditam.
Assim, a nova lei, não obstante contenha algumas doses de flertes com a censura e com o cerceamento da liberdade de expressão, reúne méritos bastante interessantes, na medida em que busca por cobro à divulgação, à publicação ou à disseminação, em redes sociais ou em quaisquer outros meios de divulgação digitais, eletrônicos ou impressos, do registro visual da prática de infração que coloque em risco a segurança no trânsito, punindo o usuário que assim agiu e chamando à responsabilidade as redes sociais e provedores de aplicação de internet.
Por fim, mesmo que a nova lei tenha tido praticamente todos os seus dispositivos vetados, ainda é possível a punição dos infratores de trânsito que divulgam ou têm divulgadas as suas esdrúxulas peripécias nas redes sociais, na medida em que cumpre às autoridades policiais e de trânsito e ao Ministério Público identificá-los e levá-los às barras dos tribunais para a necessária e exemplar punição, nos termos da lei de trânsito já em vigor.
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