Discurso de justificação da pena

16/06/2015

Por Salah Hassan Khaled Junior - 16/06/2015

 (Leia aqui: Parte 1 / Parte 2 / Parte 2.1 / Parte 3 / Parte 4)

De todos os autores discutidos nesta série de colunas, Faria Costa é sem dúvida o que causa maior perplexidade e que certamente exigirá uma desconstrução mais cuidadosa do que os limites de uma coluna permite.[1] Representante da excelência típica dos penalistas portugueses, Faria Costa é um erudito e um acadêmico de primeira linha. Não é um mero dogmático: conecta o universo jurídico-penal com outros saberes e oxigena a discussão sobre os fundamentos da pena a partir de conexões com a antropologia, a filosofia, a história e a hermenêutica filosófica.

E apesar de tudo isso, não só não foi capaz de romper com o justificacionismo como propôs uma robusta releitura da retribuição, que embora possa merecer respeito pela consistência da construção, não escapa da armadilha que é a tentativa de legitimação do que é ilegitimável por definição.

Faria Costa não esconde o jogo. Coloca as cartas na mesa logo no princípio da argumentação. Propõe uma função neo-retributiva de fundamento onto-antropológico para justificar a existência das penas de forma consistente e poderosa.[2] Nesse sentido, ele se diferencia de todos os autores anteriormente discutidos, que rejeitam a retribuição e abraçam diferentes leituras preventivas, como tivemos a oportunidade de observar.

De qualquer modo, para que o leitor não interprete mal o que é dito, é importante deixar claro que a questão aqui é de escolhas: de posicionamentos político criminais e de estratégias condizentes com tais posicionamentos. Não se trata pura e simplesmente de certo e errado, mas de tomada de posição. Sendo assim, também não escondo o jogo: lamento que alguém ainda possa comprometer seu tempo – ainda mais um acadêmico com a erudição de Faria Costa – com uma tarefa tão odiosa como a justificação da pena. Não que isso faça necessariamente de mim um abolicionista, caso um leitor apressado queira etiquetar. Não assumo integralmente o rótulo, ainda que tenha manifesta simpatia pelo abolicionismo. Mas decididamente penso que a pena deve ser assumida como realidade concreta de violência a ser contida e que estrategicamente é preciso renunciar aos projetos de legitimação, que invariavelmente acabam sendo catalisadores de destruição.[3] No caso de Faria Costa, a argumentação chega a causar aflição, já que o autor acerta inúmeras vezes, mas acaba igualmente sucumbindo à crença na bondade do poder punitivo, como também sucumbem Roxin, Hassemer e Ferrajoli, como discutido anteriormente. Mas nele há algo mais. Impressiona o quanto ele é agudo no aspecto de justificação. Certamente muito mais ousado do que qualquer outro autor contemporâneo, salvo melhor juízo.

Faria Costa refere que o problema da pena exige uma conexão entre direito penal e filosofia penal. Ele inclusive rejeita os normativismos exacerbados típicos de funcionalismos autopoiéticos, conducentes a inúmeros problemas. Para ele, o problema da pena é metajurídico. Quanto a isso, não é possível discordar: decididamente o problema da pena exige argumentos que extrapolam o âmbito jurídico. Mesmo autores que escolhem ignorar esses aspectos inevitavelmente acabam se referindo a eles, visto que todos os discursos sobre a pena remetem a realidades externas ao aspecto normativo, referindo finalidades comprováveis (ou não) na prática, como já discutido nesta série de colunas.

Faria Costa considera inadequada a acusação de metafísica e irracional que é feita ao princípio da retribuição. Ele expõe que o debate sobre a pena costuma ser apresentado a partir de uma oposição entre retribuição (rotineiramente relacionada à tradição, passado e conservadorismo e, logo, com conotação pejorativa) e prevenção (associada a progresso, futuro e visão aberta, com conotação positiva). Faria Costa demonstra – diga-se de passagem, acertadamente – que foram muitos os Iluminismos e que a retribuição também fez parte do horizonte compreensivo moderno. A tarefa por ele empreendida é mais do que clara: o autor está propondo o resgate da retribuição no contexto contemporâneo.

Será a retribuição passível de redenção? O juízo, como sempre, é do leitor. A minha opinião já foi assinalada desde o princípio desta exposição. Mas vejamos como Faria Costa constrói o argumento. Por mais que se possa discordar das conclusões, é preciso dizer reconhecer que a retórica é formidável.

Faria Costa indica que rotineiramente dizemos que o Direito Penal é sancionador, sendo direcionado para o crime, que é entendido como um mal, ou seja, um desvalor comunitariamente assumido. E qual é a resposta que é dada à prática deste mal? Um outro mal: a pena. Sendo assim, ele pergunta: mas neste caso não será o direito penal um instrumento de potenciação do mal, que promoveria uma verdadeira adição de males?

Uma leitura de deslegitimação poderia facilmente caminhar em tal direção. Mas para Faria Costa, este não é um caminho aceitável, já que o que ele propõe é uma justificação "poderosa" para a pena. Sendo assim, para ele é inevitável concluir que a pena não deve ser percebida como um mal.

E como deve ser compreendida então?

A passagem a seguir é bastante esclarecedora:

A estrutura normativa do direito, a estrutura normativa do direito penal, muito embora se mostre também e indiscutivelmente como dinâmica e historicamente situada, logo, de geometria variável, perfila-se dá mesma maneira com igual intensidade, através de um modo-de-ser que o seu segmento principal não pode deixar de ser visto como estabilização de conflitos. O direito penal avança e recua pelo conflito, pela ruptura. Pelos conflitos de valores. Pela violação, pela ruptura de valores comunitariamente assumidos como mínimo ético. O direito penal constrói-se, pois, entre outras coisas, pela resposta legislativa, historicamente legitimada, à conflitualidade e à ruptura violadora. Tal conflitualidade e ruptura violadora são expressões fenoménicas da perversão em que mergulha o nosso primevo modo-de-ser. A uma relação de cuidado-de-perigo de fundamento onto-antropólogico – que é aquela que é matricial ao nosso modo-de-ser com os outros – corresponde, no patamar da dimensão fenoménica, pura e dura, a relação ético-existencial de um "eu" concreto, de carne e osso, que, precisamente, pela sua condição, só pode ser se tiver o "outro", cuidar do "outro", cuidar de si cuidando do "outro" e cuidando este, cuidar de si. Só que essa relação de cuidado pode romper-se. E tantas vezes se rompe. Mais. De certa maneira, a relação só tem sentido se admitir a ruptura. Todavia, e ponderando meticulosamente tudo o que se acaba, por último, de afirmar, a ruptura dessa relação primeva constitui também uma perversão,uma inversão, um passar, um exceder, uma desconformidade, uma desmedida. Ora, é este lado negativo da relação que constitui o elemento ou segmento fundante para a existência de um crime. E esse momento de ruptura, de fractura, de convulsão no cuidado genésico só se refaz com a pena. A aplicação da pena, nesta compreensão fundante, repõe o sentido primevo da relação de cuidado-de-perigo. A nossa condição é sempre uma condição de perigo, enquanto manifestação, entre outros dados, de incompletude, de projecto, ser em aberto. Se somos tudo isso, não somos necessariamente acabamento, consumação, fechamento. Porém, a abertura, o projecto, a incompletude faz de nós seres' frágeis.  Seres de cuidado, Seres de cuidado-do-perigo. O "eu", por isso, para "ser", exige o cuidado do "outro". Mas se há cuidado é porque há um magma, uma turbulência que nos faz frágeis. Fragilidade dó "eu" para consigo próprio. Fragilidade do "eu" para' com o "outro'. Fragilidade do "eu" para com o mundo. E essa fragilidade assume dimensão de ruptura quando há um crime. Aí dá-se o desnudamento que exige a compensação de uma pena para que o equilíbrio se refaça. Porque também só desse "eu" posso ver, olhar e amar o "outro". Porque se não houver pena impossível reconstruir a primitiva relação de cuidado-de-perigo. A pena, se quisermos, assume assim, o papel da reposição, da repristinação, e, por conseguinte, da eficácia de um bem. Ou, se ousarmos ser ainda mais radicais, ela é um bem.

Evidentemente aqui surgiriam muitas oposições. Mas por uma questão de recorte, por ora irei delegar a interlocução ao leitor. A ideia de que a pena é um bem certamente motivaria inúmeras discussões, assim como outros pontos que serão enfrentados oportunamente.

Por ora basta dizer que para Faria Costa a pena não tem relação com a "natureza das coisas" ou com um “direito natural de tonalidade quase divina”. Assumindo a pena como um bem, ele considera que existe um direito a ser punido com a pena justa, que não se confunde com o direito à pena de Hegel, como não se confunde com um desencarnado imperativo categórico Kantiano.

Finalmente, ele também sustenta que o direito a ser punido com a pena justa não se confunde com a possibilidade de abrir mão do direito, uma vez que é um direito indisponível, verdadeira manifestação da dignidade da pessoa humana.

Hora de parar e respirar.

Aqui a tentação é grande: o autor parece se aproximar dos meus próprios pontos de vista, pelo menos dentro do que é possível em um horizonte imediato de ação. Se a pena é uma realidade concreta, que ela ao menos seja justa, ou seja, que tenha conformidade legal. Que respeite as leis de execução da pena de um dado país e, especialmente os direitos fundamentais do apenado.

Mas é preciso resistir ao artifício de sedução. Há uma grande distância entre a proposta de deslocamento da discussão dos fins para os meios e, logo, para um horizonte de redução de danos e a assunção de uma crença na pena enquanto bem dado a restaurar uma dada relação de cuidado-de-perigo pervertida. A distância é inequívoca e pode ser facilmente contemplada na conclusão do artigo do próprio Faria Costa.

Em apertada síntese trazida no corpo do texto, ele sustenta que o direito à pena justa é um direito especial, que:

a) é indisponível;

b) tem a natureza de um direito fundamental;

c) o seu sentido jurídico encontra-se na prossecução do bem da pena, rectius, no bem que a execução concreta da pena pode propiciar;

d) o limite está em que a sua plenitude de realização se atinge ou, consegue, precisamente, com o cumprimento integral da pena.

Como compaginar tais fundamentos com a realidade concreta da pena vivida? É a pergunta que não quer calar. O autor parece falar de outra pena, que certamente não é que conhecemos. E aqui não me refiro ao contexto catastrófico da América Latina, que daria ainda mais peso a essa consideração. E o mais curioso é que no final do artigo Faria Costa sustenta que a sua construção representa uma espécie de porto seguro diante do que pode representar o direito penal do inimigo.

Será?

Você decide.

Na próxima semana a dupla Salada Rosa ataca novamente, depois de um breve descanso.

Um abraço e até lá!


Notas e Referências:

[1] Como nas colunas anteriores, fica o alerta: o texto é apenas uma aproximação inicial. As diferentes teorias serão analisadas com maior fôlego em uma obra específica de Direito Penal que será publicada em 2016.

[2] COSTA, José de Faria. Linhas de direito penal e de filosofia : alguns cruzamentos reflexivos. Coimbra : Coimbra Editora, 2005.

[3] Ver trabalhos de Zaffaroni, Nilo Batista e Salo de Carvalho, todos fortemente recomendados.


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