Diretas ou indiretas? O papel da Constituição no atual cenário político brasileiro

19/07/2017

Por Marlo Almeida Salvador – 19/07/2017

Sempre tive a convicção de que o impeachment promovido no ano de 2016 em face da presidente Dilma foi fruto de um arranjo político, juridicamente legitimado a partir da tipificação pueril do tão falado crime de responsabilidade.

Essa era a questão a ser debatida pelo Supremo em relação ao impeachment, mas, como muito se disse à época, as instituições estavam funcionando e o Supremo, uma vez mais, lavou as mãos.

A gambiarra jurídico-política vem nos cobrando um grande preço por conta do esfacelamento da dogmática penal promovido pelo tsunami político que vem devastando o Direito e com ele os incautos que acreditam que o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é.

Neste contexto, atravessou-se o processo de impeachment de forma amarga e dolorosa para todos os brasileiros, que com a definitiva deposição da presidente, passaram a enxergar uma esperança de dias melhores, não por conta do novo presidente, mas talvez por causa da aparente tranquilidade política que estava por vir, já que o governo deposto estava completamente inviabilizado tanto pelo Congresso quanto pela mídia. Seguimos.

Passado o impeachment, uma nova tempestade política tomou conta do país a partir das delações hollywoodianas dos irmãos do açougue, cujo envolvimento implicou diretamente o então presidente.

A partir disso e deixando de lado eventuais discussões acerca da validade dos indícios colhidos por gravações mediante as ditas ações controladas da PF, passou-se a cogitar, agora, o impeachment Michel Temer, como se a descoberta da corrupção, desta corrupção, e por consequência de sua saída, fosse sacralizar a política brasileira de uma vez por todas, assim como ingenuamente se acreditou e se fingiu acreditar com a saída de Dilma.

Como estopim de toda essa tensão, o Procurador Geral da República ofereceu denúncia em face do então presidente pela prática do crime de corrupção passiva, a qual está tendo sua admissibilidade analisada pela CCJ da Câmara dos Deputados.

Mas independentemente de quantos impeachment ainda vamos ter que suportar de forma vergonhosa, a verdadeira causa da corrupção, ao que parece, vem sendo deixada de lado pelo povo, pois a podre e antiga relação entre mercado e estado, seja pela lateral esquerda ou direita, pouco vem sendo enfrentada.

 Sobre essa relação promíscua do mercado com o estado, infelizmente, resta muito pouco ao ilusório controle popular.

A partir disso e para além da vontade popular, que legitimamente quer ver a governança livre de uma vez por todas dos escândalos de corrupção, é salutar refletir, por exemplo, sobre quem está por trás das intensas e reiteradas investidas que o país vem sofrendo desde 2013, com foco na desestabilização institucional? Quem patrocina isso? Quais os interesses envolvidos? Será que o povo tem noção da importância estratégica do Brasil no cenário geopolítico internacional?

Esta resposta talvez possa ser encontrada em Ferrajoli, quando então assevera a existência de uma profunda crise no paradigma constitucional, que segundo o autor, se manifesta em nível estatal e extra ou supra estatal, de poderes econômicos e financeiros descontrolados e desprovidos de limites, na subordinação a estes das funções políticas de governo e na agressão - levada a efeito por uma política tão impotente em relação ao capital financeiro quanto onipotente em relação às camadas sociais mais desfavorecidas - ao conjunto de direitos sociais e trabalhistas[1].

O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, declarou abertamente que a agenda da Câmara é do mercado[2], deixando claro e evidente a que interesses os ditos representantes do povo servem.

Diante de todos os escândalos de corrupção que estão imersas certas autoridades políticas, o caminho mais fácil as vezes nos parece ser o da devolução do poder para o povo pela via de atalho da tão aclamada eleição direta, mesmo inexistindo disposição constitucional.

Antes de falar na crise política que assola o país, portanto, é necessário se compreender o cenário geopolítico mundial e a posição estratégica do país como colônia historicamente subordinada aos países ditos desenvolvidos.

Apesar de nos parecer uma saída salutar de relegitimação do poder popular, a proposta que emerge das ruas parece ser mais um contragolpe do que uma saída legítima propriamente dita, pois se estará a ignorar o comando constitucional, por mais que a saída constitucional, pela via indireta, não nos pareça a melhor das saídas.

Mas se trata de um juízo moral acerca do parlamento que, embora mereça a devida atenção, deve ser enfrentado com ressalvas neste momento, pois por mais imoral que as casas possam ser ou parecer, também estão com a mesma legitimidade dada ao presidente, ambos eleitos pelo voto popular e direto, que os elegeram de acordo com o calendário eleitoral constitucional.

Respeito colegas e juristas que juntamente com as ruas clamam por diretas, mas a minha grande intriga é com a reserva constitucional e legal. Onde está esta previsão constitucional de diretas agora, no meio do jogo?

Na constituição não está e embora o atalho pareça ser bonito e glorioso, uma emenda constitucional casuística teria mais o condão de deslegitimar o que ainda resta da constituição[3], do que restabelecer a própria legitimidade popular e representativa do presidente.

Nem sempre a solução para convulsões sociais deve ser delegada ao povo e por isso a periodicidade do calendário eleitoral deve ser respeitada, salvo na hipótese de "recall", o que ainda não é o caso brasileiro. Talvez nos pareça uma alternativa futura a ser debatida.

Por mais curioso e polêmico que possa parecer, é necessário salvar o atalho que depôs Dilma como forma de salvar a Constituição, bem maior que deve se sobrepor a toda e qualquer pressão popular fora da Constituição.

Fora dela não há salvação e um fora Temer agora poderia representar também um fora definitivo à Constituição, considerando a esperança de um conserto político nas eleições de 2018.

Poderá ser mais uma chance à nossa democracia.

Um grande professor e constitucionalista sempre destaca em suas aulas ser perfeitamente possível se instaurar uma ditadura de forma democrática e/ou se instaurar um uma democracia através de um golpe de estado.

Onde nos situamos na fala do ilustre professor, apenas o tempo vai dizer.

Para se resguardar a constituição dos sucessivos ataques institucionais, é necessário se evitar o atalho pela via da moral popular, esta confundida com a moral midiática imposta pelas oligarquias de sempre.

A escolha não será fácil entre salvar o que ainda resta da constituição, sem as diretas, ou permiti-las neste momento de mal-estar social.


Notas e Referências:

[1] FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: O constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 12-13

[2] Disponível em: http://www.valor.com.br/politica/4985710/agenda-da-camara-e-do-mercado-sustenta-rodrigo-maia

[3] Neste sentido, ver: Os princípios e a desconstrução do Direito: o que ainda resta da Constituição Cidadã? Disponível em: http://emporiododireito.com.br/os-principios-e-a-desconstrucao-do-direito


Marlo Salvador

. . Marlo Almeida Salvador é advogado especializado em Direito Constitucional e graduado pela Universidade do Vale do Itajai – UNIVALI. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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