Por Marta de Oliveira Torres – 24/04/2016
Só ele sabe no que pensou quando estava de olhos fechados. Só eu sei no que penso. Penso nele.
Agora você sabe o que penso.
Penso na “Escola de bem-te-vis”, de Cecília Meireles, que viveu de 1901 a 1964. Nessa crônica, a diva conta que em seu primeiro livro de inglês se lia: “Dizem que o sultão Mamude entendia a linguagem dos pássaros”. Quando ela ouvia um gorjeio nas mangueiras e ciprestes, logo pensava no sultão e nessa linguagem que ele entendia. Quando eu ouço um gorjeio nas mangueiras e ciprestes, logo penso em Cecília Meireles e no sultão Mamude. E fico tentando entender o que os bem-te-vis falam. Cecília notou que, enquanto o pai ou professor “ensinava com a mais pura dicção: ‘Bem-te-vi!’ – o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: ‘Te-vi!’”, sendo o mau exemplo logo seguido com graça pela classe. Passadas algumas gerações, tinham os avós, num fraseado clássico como se fosse em latim ou sânscrito: “Bem-te-vi! Bem-te-vi!” . Depois, respondiam os filhos “Te-vi! Te-vi”. “Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família!) E passaram a responder, por muito favor, “Vi! Vi!” Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jato...” (MEIRELES, p. 96).
Assim está parecendo o discurso do Congresso Nacional quando o tema é Direitos Humanos. Na constituinte de 1988, diziam meio contrariado um breve “Bem-te-vi”. Aos poucos, passaram a encher a Constituição de reformas, os tribunais a dar interpretações restritivas, os doutrinadores a criar teorias classificatórias colocando as normas constitucionais de direitos em situação meramente programáticas (sem vinculação determinante ao administrador), e então gritam como se existisse de fato “Te-vi”. Todavia, já há um tempo, os congressistas anunciavam dizer somente “Vi” e agora, abertamente, arrancam as penas do “Bem-te-vi” e o matam sob tortura. Não querem nem “Vi”.
O que pensamos, quando externamos, passa a nos vincular a uma “tradição de pensamento”. Se em futuras gerações não mais existirem “Bem-te-vis”, ao menos foram lembrados no livro de inglês de Cecília Meireles, no livro dela, e nessa publicação. Cada um, seja qualquer função na sociedade, está se vinculando a toda manifestação de vontade por si expressada. O conteúdo e a forma. Cada pássaro canta diferente, com conteúdos diferentes. Cada um constrói a representação do que se importa.
“Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente – quem sabe? – uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis” (MEIRELES, p. 97).
Vivemos com padrões de comportamentos que têm gerado profundas desigualdades econômicas e sociais, desarmonias coletivas, cansaço generalizado (exceto de um ínfima, mínima, insignificante porcentagem da população mundial). E se o “Bem-te-vi” não se fizer mais ecoar? Como faremos sem nem ao menos a ilusão do “Bem-te-vi” em nossas vidas? Qual a tradição que passaremos às futuras gerações?
Será que viveremos só de saudade, tão cedo?
Notas e Referências:
MEIRELES, Cecília. O que se diz e o que se entende (Crônicas). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
. Marta de Oliveira Torres é Defensora Pública do Estado da Bahia, atriz no Teatro Fórum Rui Barbosa, fotógrafa, poetiza, mestra em Relações Sociais e Novos Direitos pela UFBA. . .
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