Direitos constitucionais para índios imigrantes: a encruzilhada dos Warao

28/08/2017

Por Fernando César Costa Xavier – 28/08/2017

O que o Estado brasileiro deve fazer em relação aos índios venezuelanos da etnia Warao que se encontram no Brasil? Essa pergunta, embora não esteja posta de forma clara no debate público, pode aparecer a qualquer momento para os juízes e formuladores de políticas. E é importante antever as dificuldades para respondê-la a contento.

Embora as estatísticas neste caso sejam muito imprecisas, estima-se que cerca de 600 indígenas Warao estejam vivendo atualmente em território brasileiro. O número pode ser [bem] maior, já que a maioria deles se encontra indocumentada e indiferente ao controle migratório.

No meio do fluxo de migrantes venezuelanos que há alguns anos têm se deslocado através da fronteira norte do Brasil, pelo Estado de Roraima, esses indígenas se destacam não tanto pela quantidade (pois são poucos em comparação aos milhares de imigrantes venezuelanos não indígenas), mas pelas peculiaridades que envolvem a sua condição jurídica. Não há qualquer outro caso notório de imigração de indígenas originada de territórios distantes das fronteiras nacionais. Essa novidade gera muitas incertezas no âmbito legal, em especial sobre as eventuais responsabilidades específicas do Estado acolhedor em relação a eles.

Os Warao são originários do delta do rio Orinoco, da região costeira abrangida pelo nordeste da Venezuela (Estados Delta Amacuro, Monagas e Sucre) e parte do noroeste da Guiana. Para conseguirem chegar à fronteira com o Brasil, eles caminharam centenas de quilômetros, durante meses; muitos deles percorreram o trajeto descalços e desnutridos.

Segundo dados da Polícia Federal em Roraima, a primeira leva de Waraos chegou à capital de Roraima ainda em 2014[1], embora somente na segunda metade de 2016 o fluxo tenha se intensificado ao ponto de ser “sentido” em Roraima. Eram então contingentes formados principalmente por mulheres adultas e idosas, algumas trazendo consigo os filhos pequenos. A maioria delas rapidamente se fixou nos semáforos do centro de Boa Vista, onde pedia esmolas e ocasionalmente vendia peças de artesanato. Foram desde logo reconhecidas como um grupo migratório distinto, que não se parecia em nada com os hippies vindos da Venezuela e que tradicionalmente também ocupavam os semáforos da cidade. As mulheres Warao não se pareciam nem com os outros venezuelanos, nem com os indígenas locais. Usavam vestidos floridos típicos e falavam pouco ou nada de espanhol.

Desde que chegaram os primeiros contingentes, passaram a ser registrados casos de deportação pela Polícia Federal, em ações que iniciaram já em 2014 e continuaram pelos dois anos seguintes. Consta do Parecer Técnico 208/2017[2], solicitado pelo Ministério Público Federal, que 33 Waraos em situação de rua foram deportados em 2014; 54 em 2015; e 445 de janeiro a outubro de 2016. Em todas essas vezes, após deportados, eles retornaram, com a maioria absoluta permanecendo em situação migratória irregular.

A ação de deportação mais controvertida ocorreu em fins de 2016. Nas primeiras horas do dia 09 de dezembro desse ano, houve uma ação em que a Polícia Federal, após identificar cerca de 450 venezuelanos Warao em situação clandestina vivendo em abrigos improvisados ou nas ruas, colocou-os em um ônibus para levá-los à fronteira e devolvê-los à Venezuela. Antes de chegaram ao destino, contudo, uma decisão liminar da justiça federal impediu a deportação coletiva. Não foi uma decisão fácil, uma vez que a legislação até hoje vigente (Lei 6.815, de 1980) não contém qualquer regra proibindo retiradas compulsórias coletivas, diferentemente da nova legislação que entrará em vigor em novembro deste ano (Lei 13.445, de 2017), que contém regra vedando expressamente situações arbitrárias de deportação, repatriação ou expulsão coletivas[3].

Alguém poderia defender uma interpretação mais aberta e abrangente da categoria de “refugiado” para que, sendo abrangidos por ela, lhes seja aplicada a regra do art. 33, 1, da Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) que proíbe a deportação de pessoas para um país em que sua vida ou liberdade sejam arbitrariamente ameaçadas[4]. A situação de penúria e de privação de direitos básicos em que muitos dos Warao vivem atualmente na Venezuela poderia servir para reforçar a tese de que eles seriam, sim, refugiados, e por isso não poderiam ser devolvidos. Todavia, uma tal tese não encontraria apoio junto à literatura sobre o tema, pois a maioria dos autores entenderia que eles são migrantes, e não fugitivos de perseguições políticas.

E o caso é que após aquela tentativa não concretizada de deportação, pareceu cada vez mais improvável que seriam realizadas novas ações da Polícia Federal com vistas ao controle migratório dos Warao. De fato, não houve mais. A impressão corrente é que eles não serão mais devolvidos ao seu país, seja porque isso parece contrário às leis e ao precário precedente criado pela decisão liminar, seja parece um trabalho de Sísifo. O governo estadual de Roraima, aceitando como um fato estabelecido a permanência dos indígenas venezuelanos, chegou a criar um abrigo na periferia de Boa Vista para atendê-los de modo preferencial.

Em todo caso, essa primeira via, de devolver os Warao à Venezuela, embora não seja juridicamente impossível, certamente não é politicamente recomendável – ou mesmo viável. Insistir nela poderia significar uma ação irresponsável do Brasil em um dos temas mais sensíveis da agenda de governança global para a gestão migratória, o que o equipararia aos que não cumprem o dever de casa em matéria de direitos humanos de migrantes.

Então, se vão permanecer no Brasil por tempo indefinido, qual passa a ser a condição jurídica desses Warao à luz da Constituição brasileira? O acento deve então ser dado para a sua condição de indígenas ou de imigrantes? São, por assim dizer, “migrantes indígenas” ou “indígenas migrantes”?

Responder apressadamente que eles são as duas coisas não ajuda a esclarecer algumas dúvidas jurídicas postas. A principal talvez seja a de saber se eles seriam titulares dos direitos estabelecidos no artigo 231 da Constituição. Pelo menos na parte em que este artigo diz “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, parece não haver qualquer justificativa para colocá-los de fora da proteção constitucional; o termo “índios” poderia ser interpretado inclusivamente sem que isso parecesse uma concessão indevida.

Porém, se eles têm um direito constitucional à proteção cultural, como o Estado poderia realizar esse direito se os índios Warao estão concentrados na área urbana, em abrigos com instalações precárias ou mesmo perambulando pelas ruas das cidades de Pacaraima, Boa Vista ou Manaus? Não é exagero dizer que, nesse ambiente urbano, esses indígenas paulatinamente perderão sua identidade cultural e serão “assimilados” pela cultura não-indígena, em um processo certamente contrário ao interesse deles.

Essa segunda via, de admitir os Warao em território brasileiro, mas legá-los à própria sorte, permitindo que ingressem e fiquem em uma situação socialmente vulnerável, claramente não é compatível com o direito que se supõe reconhecido a eles. O contato involuntário com o meio urbano invariavelmente corrói a sua capacidade de auto-organização e a possibilidade de preservação a médio prazo de seus costumes, línguas, crenças e tradições. Esbravejar que eles aceitem isso ou voltem para a Venezuela não teria qualquer embasamento constitucional.

Se o Estado tem em relação a eles não apenas um dever geral de assistência básica, mas também o dever especial de protegê-los da iminente e progressiva perda da identidade cultural, como deveria proceder?

A dúvida é tão mais complexa porque os elaboradores da Constituição, ao incluírem a proteção cultural ampla como um direito para os índios, não devem ter imaginado o caso de indígenas estrangeiros migrando para o território brasileiro. É verdade que há etnias indígenas, como os Yanomami, que por habitarem região fronteiriça entre o Brasil e a Venezuela, transpassando com naturalidade as linhas demarcatórias entre esses países, são já velhas conhecidas do Estado brasileiro, o qual não enxerga dificuldade para assumir compromissos assistenciais em relação a esses indígenas que, em alguma medida, são também cidadãos brasileiros. Mas o caso dos Warao é distinto, peculiar. Seu território não faz, nem nunca fez, fronteira com o Brasil.

A Constituição, no seu artigo 231, deixa claro que a melhor forma de proteger a cultura de um povo indígena é reconhecendo-lhe a posse permanente e o usufruto exclusivo da terra que tradicionalmente habitam. Demarcando e homologando terras indígenas às etnias que vivem nelas desde tempos imemoriais, o Estado garante que essas etnias estarão a salvo do mundo não-indígena, cuja dinâmica representa uma potencial ameaça à sua integridade cultural.

No caso dos Warao, entretanto, eles não habitam tradicionalmente, nem habitavam quando a Constituição foi promulgada (em 1988), qualquer pedaço de terra no Brasil. Seria forçoso, portanto, dizer que eles teriam direito a terras ou, o que dá no mesmo, que o Estado brasileiro teria obrigação de demarcar em favor deles qualquer terra, seja pela teoria do indigenato, seja pela do fato indígena (fixado pelo STF na Pet 3388 / RR).

Buscando uma solução conciliatória, o governo do Estado de Roraima chegou a tentar, em março de 2017, que os Warao tivessem experiências de interação com indígenas brasileiros residentes em aldeias situadas longe do perímetro urbano[5]. Chegaram a realizar uma visita, intermediada pelas autoridades estaduais (incluindo a Secretaria Estadual do Índio), à comunidade Canauanim, situada a 30km de Boa Vista, onde residem os índios da etnia Wapichana[6].

Embora essa experiência de interação entre as etnias não possa ser considerada um fracasso, ela evidenciou que problemas não tardariam a ocorrer. Em termos sócio-culturais, há tantas diferenças entre os índios brasileiros e venezuelanos que tentar integrar estes em comunidades indígenas já estabelecidas e com uma organização social particular os deixaria em uma posição tão marginal e passiva quanto estariam em qualquer outro ambiente estranho, inclusive no meio urbano. Além disso, em termos legais, haveria ainda protocolos a seguir, como a necessidade de consulta prévia às comunidades que pudessem ter qualquer interesse em receber esses “estrangeiros”. E a possibilidade de terras demarcadas e homologadas por decreto para etnias específicas serem ocupadas por novas etnias provavelmente exigiria a edição de novos decretos executivos, os quais certamente seriam contestados jurídica e politicamente.

Essa terceira via, de serem “integrados” a aldeias indígenas locais, igualmente não seria adequada, pois não lhes asseguraria proteção à integridade cultural e poderia mesmo criar situações de tensão social interétnica.

Nenhuma das três vias, ou cenários, que podem ser cogitados para resolver a situação de desamparo dos Warao no Brasil, têm chances de ser aceitas como satisfatórias ou justas. Há dificuldade para se imaginar outras alternativas que consigam suplantar os variados impasses jurídicos e políticos que o caso deles envolve. Não é demasiado dizer que esses índios venezuelanos estão em uma encruzilhada.


Notas e Referências: 

[1] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Parecer Técnico/SEAP/6ªCCR/PFDC Nº 208/2017, p. 23.

[2] Disponível em: <http://csbbrasil.org.br/downloads/parecer-tecnico-n208-2017.pdf>

[3] Lei 13.445/2017, art. 61: “Não se procederá à repatriação, à deportação ou à expulsão coletivas”.

[4] Art. 33 (Proibição de expulsão ou de rechaço): “1. Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.

[5] Cf. em: <http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2017/03/indios-refugiados-da-venezuela-terao-interacao-cultural-em-aldeias-de-rr.html>.

[6] Cf. em: <http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2017/03/indios-refugiados-da-venezuela-tem-1-dia-de-visita-em-aldeia-de-roraima.html>.


Fernando César Costa Xavier. Fernando César Costa Xavier é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB) e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: fxavier010@hotmail.com. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Warao Kids // Foto de: Erik Cleves Kristensen // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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