Direito Penal Secundário e Contravenções Penais: o Paradigma da Insignificância em contraposição ao Direito Administrativo Sancionador (Parte 1) – Por Ricardo Antonio Andreucci

31/03/2016

Leia também a Parte 2 e a Parte 3.

I – INTRODUÇÃO.

A moderna ciência penal não pode prescindir de uma base empírica nem de um vínculo com a realidade que lhe propicie legitimidade.

Também não pode renunciar a um dos poucos conceitos que lhe permitem a crítica ao Direito Penal Positivo: o bem jurídico penal.

Entretanto, o maior problema a ser enfrentado é a fixação concreta dos critérios pelos quais se deve proceder à seleção dos bens e valores fundamentais da sociedade, uma vez que somente os bens jurídicos fundamentais devem ser objeto de atenção do legislador penal.

É bem verdade que os valores a serem escolhidos variam segundo o modelo de sociedade, sendo um reflexo necessário de sua estrutura. O Direito Penal deve ser instrumento do Estado Democrático e Social de Direito.

Inegavelmente, a valoração do bem jurídico condensa aspectos sociológicos, axiológicos, ideológicos e normativos, que integram a sua unidade conceitual.

O bem jurídico é contextualizado na história da criminalização no direito penal brasileiro e nas suas origens, para que se possa atingir um diagnóstico seguro dos câmbios estruturais e valorativos que reorganizam o sistema punitivo, em face, exatamente, da valoração do bem jurídico, como núcleo atrativo dos valores vigentes na sociedade.

Todos esses pontos atingem o maior grau de condensação na Constituição Federal, que reúne, hoje em dia, na categoria de direitos fundamentais, um elenco significativo de bens jurídicos que devem ser tutelados pelo direito penal, estabelecendo, inclusive, entre eles, uma graduação axiológica, que pode ser medida pelo conteúdo da norma constitucional, que em determinados casos atinge elevado nível de cogência e imperatividade.

Para melhor proteger estes direitos, a doutrina busca um consenso a respeito de qual seja um núcleo comum capaz de definir os bens jurídicos constitucionalmente protegidos, do que resulta a possibilidade, inclusive, de concluir a existência de bens jurídicos permanentes a reclamarem a tutela do estado através dos tempos, como a vida, a liberdade, o patrimônio etc

O bem jurídico deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico desenhado na Constituição Federal e com o princípio do Estado Democrático e Social de Direito. Portanto, a ordem dos valores constitucionalmente relevantes constitui o paradigma do legislador penal infraconstitucional.

Nesse cenário, surge a problemática do Direito Penal Secundário, como conjunto de normas de natureza punitiva que constituem objeto da legislação extravagante, contendo, muitas vezes, o sancionamento de ordenações de caráter administrativo, conflitando frontalmente com a tendência moderna de considerar as contravenções penais maculadas pelo paradigma da insignificância, como corolário de um Direito Penal Moderno.

Efetivamente, ao se destacar a natureza administrativa de algumas normas do Direito Penal Secundário, se confere uma nova e moderna roupagem às contravenções penais, que voltam a ocupar seu espaço na tutela de bens jurídicos por meio da busca por prevenção dos indeterminados perigos de violação dos direitos subjetivos.

II – O DIREITO PENAL COMO MEIO DE CONTROLE SOCIAL. 

Nas precisas palavras de Santiago Mir Puig, “o Direito Penal constitui um dos meios de controle social existentes nas sociedades atuais. A família, a escola, a profissão, os grupos sociais são também meios de controle social, mas possuem um caráter informal que os distingue de um meio de controle jurídico altamente formalizado, como é o Direito Penal. Como todo meio de controle social, o Direito Penal tende a evitar determinados comportamentos sociais considerados indesejáveis, recorrendo, para isso, à ameaça de imposição de distintas sanções, caso tais condutas sejam realizadas; mas o Direito Penal caracteriza-se por prever as sanções mais graves – as ‘penas’ e as ‘medidas de segurança’ – como forma de evitar os comportamentos que julga especialmente perigosos – os ‘delitos’. Trata-se, pois, de uma forma de controle social cuja importância determinou, por um lado, a sua monopolização pelo Estado e, por outro, que se constituísse em uma das parcelas fundamentais do poder estatal que desde a Revolução Francesa considera-se necessário delimitar com a máxima clareza possível como garantia do cidadão. Daí que o poder punitivo, reservado ao Estado, só possa ser exercido de acordo com o previsto por determinadas ‘normas legais’, a serem aprovadas pelos representantes do povo nos países democráticos. Tais normas, que constituem o Direito Penal, devem determinar, com a maior precisão possível, que condutas podem ser consideradas constitutivas de delito e que penas podem sofrer aqueles que as realizam. É o que conhecemos como ‘princípio da legalidade’, e nisso consiste o caráter eminentemente formalizado que distingue o Direito Penal de outros meios de controle social.”[1]

Nesse sentido, o Direito Penal tem vários caracteres, de acordo com o posicionamento ético que se considere ao analisá-lo, e, para alguns doutrinadores, tem função protetiva do corpo social, na medida em que defende e tutela os valores fundamentais dos cidadãos, tais como a vida, a liberdade, a integridade corporal, o patrimônio, a honra, a liberdade sexual etc. Outros estudiosos consideram que o Direito Penal tem finalidade preventiva, visto que deve tentar motivar o criminoso a não infringir o sistema jurídico-penal, estabelecendo sanções às proibições fixadas. É a chamada função motivadora da norma penal, no dizer de Muñoz Conde[2]. Caso essa função motivadora não apresente resultado positivo, impõe-se ao criminoso a sanção penal, que se torna efetiva após o devido processo legal.

Nesse sentido, já estabelecia o mestre Heleno Cláudio Fragoso que a “função básica do Direito Penal é a de defesa social. Ela se realiza através da chamada tutela jurídica, mecanismo com o qual se ameaça com uma sanção jurídica (no caso, a pena criminal) a transgressão de um preceito, formulado para evitar dano ou perigo a um valor da vida social (bem jurídico). Procura-se assim uma defesa que opera através de ameaça penal a todos os destinatários da norma, bem como pela efetiva aplicação da pena ao transgressor. A justificação da pena liga-se à função do Direito Penal, que é instrumento de política social do Estado. O Estado, como tutor e mantenedor da ordem jurídica, serve-se do Direito Penal, ou seja, da pena e das medidas de segurança, como meios destinados à consecução e preservação do bem comum (controle social). A pena, embora seja por natureza retributiva, não se justifica pela retribuição nem tem qualquer outro fundamento metafísico”.[3]

De maneira praticamente uniforme na doutrina pátria, entretanto, tem-se considerado o Direito Penal ramo do Direito Público, valorativo, normativo, finalista e sancionador.

É pertencente ao ramo do Direito Público em razão de prestar-se à regulamentação das relações entre o indivíduo e a sociedade, visando a preservação das condições mínimas de subsistência do grupo social.

É valorativo, porque estabelece, por meio de normas, uma escala de valor dos bens jurídicos tutelados, sancionando mais severamente aqueles cuja proteção jurídica considera mais relevante.

É normativo, porque se preocupa com o estudo da norma, da lei penal, como conjunto de preceitos indicativos de regras de conduta e de sanções em caso de descumprimento.

É finalista, porque tem como escopo, como finalidade, a tutela dos bens jurídicos eleitos pela sociedade como merecedores de maior proteção.

Por fim, é sancionador, porque estabelece sanções em caso de agressão a bens jurídicos regidos pela legislação extrapenal (Direito Civil, Direito Comercial, Direito Tributário, Direito Administrativo etc.).

(continua...)

*Esta é a primeira parte de uma série de 3 artigos que serão publicados semanalmente nesta coluna.


Notas e Referências:

[1] MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: Fundamentos e Teoria do Delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. pgs. 33/34.

[2] MUÑOZ CONDE, F. Derecho penal y control social, Sevilla: Fondación Universitaria de Jerez, 1995, p. 30-32.

[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 2-3


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